Marcelo e Costa não falaram na reunião dos especialistas em saúde com a elite política e nem conversaram de forma cúmplice durante o encontro, ao contrário do que tem acontecido noutras reuniões sobre o estado da pandemia. Pela primeira vez, não esperaram um pelo outro para sair, numa frieza notada por fontes presentes na reunião ouvidas pelo Observador. “Nas outras reuniões estavam sempre ali na cavaqueira, a conferenciar, e hoje nada“, contou uma fonte partidária. Passaram ambos as quatro horas e meia de reunião praticamente em silêncio. Resta saber se o mal-estar é de um com o outro ou com o modelo da reunião, que ambos criticaram no passado (tanto que as reuniões quinzenais acabaram por ser extintas) e que neste regresso não fugiram ao esquema habitual.
O palco principal deste encontro com os epidemiologistas acabou ser ocupado pelo presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, que subiu o tom para questionar o porquê de, no caso dos lares, “não se terem aprendido lições da primeira fase.” Também à porta fechada — segundo fontes presentes nessa parte da reunião — a diretora-geral de Saúde, Graça Freitas, admitiu que têm sido recolhidos “milhões de dados” pelos médicos nos inquéritos epidemiológicos, mas que essa informação não é tratada, o que faz com que haja um desconhecimento do “contexto” de infeção. Mas comecemos pela primeira intervenção à porta fechada.
Ferro Rodrigues pensou estar a falar em privado, mas, por erro da organização, os jornalistas que assistiram à reunião no Porto, numa sala ao lado do Auditório da Faculdade de Medicina, ouviram essa primeira pergunta, forte e ao ataque, do presidente da Assembleia da República. Ferro acabaria por fazer uma outra, num tom menos crítico, ao questionar os especialistas sobre o modelo seguido pelo Reino Unido, em que a preocupação não é testar assintomáticos, mas sim pessoas com sinais de terem contraído a doença.
A pergunta de Ferro sobre os lares, acabou por não ter uma resposta direta. “Foi um bocadinho surreal como ninguém respondeu”, assinalou ao Observador fonte presente na reunião. Isto porque os especialistas acabaram por dar apenas uma resposta genérica, depois de Bloco, PAN e CDS também terem manifestado preocupações com o caso dos lares. Os epidemiologistas responderam a todos que a evolução da pandemia foi “muito heterogénea”, que à partida pensaram que os lares iam ser ambientes mais controlados onde não entrava a pandemia, mas que isso não aconteceu. Os especialistas acabaram por dizer, segundo fontes ouvidas pelo Observador, que “não sabem o que fazer diferente“. A única solução é mesmo a vacina.
Silêncio de Marcelo e Costa durante a reunião que durou toda a tarde
Já Marcelo Rebelo de Sousa entrou mudo e saiu calado da reunião. “E a mostrar até alguma irritação“, descreve um dos presentes que diz que, ao contrário do que é habitual, o Presidente nem gracejou com os técnicos na despedida e saiu sem dizer nada, nem mesmo ao primeiro-ministro António Costa. “Notava-se, até pela forma como saiu e como esteve na reunião, que estava irritado. Não estava nos seus dias“.
“E quando nem fez intervenção, confirmou esse mal-estar”, disse um dos participantes habituais nestes encontros, que classifica esta reunião como inútil, tendo em conta que é apenas “descritiva”. “Não há um esforço dos especialistas para fazerem uma análise científica que possa apoiar a decisão política”, diz.
Este foi aliás um dos pontos que fez o primeiro-ministro exasperar-se numa das reuniões do Infarmed (a antepenúltima). Desta vez, o António Costa falou logo à entrada aos jornalistas, mas já não disse nada à saída e, tal como o Presidente da República, não fez qualquer intervenção ou pergunta durante a reunião à porta fechada.
E isto quando o país está a uma semana de entrar novamente em estado de contingência, com agravamento de medidas de contenção na semana em que arranca o ano letivo. Na reunião não foi feito qualquer plano para a frente, apenas se analisou o que se passou até aqui, falando de alguns exemplos no mundo, nomeadamente quanto ao regresso às aulas.
Graça Freitas admite que não trata dados, Ventura ataca UE com Putin
Também à porta fechada, a diretora-geral de Saúde, falou para dizer que a vacina é uma prioridade e também não teve problemas em identificar grupos prioritários na altura de aplicar a vacina: os funcionários de IPSS, os profissionais de saúde e os grupos de risco. Mas Graça Freitas admitiu também que, apesar de serem recolherem muitos dados nos inquéritos epidemiológicos que fazem aos pacientes, essa informação não é tratada.
“São milhões de dados” que a DGS não tem conseguido tratar, queixou-se Graça Freitas segundo várias fontes que assistiram à reunião. Não assumiu os motivos para que isso acontecesse, mas ficou a ideia que não existem meios para extrair estes dados e trabalhá-los. A informação permitiria perceber melhor em que contexto ocorre a infeção, mas acaba por não ser utilizada nem estudada pela entidade.
Do BE tinha ouvido já, por exemplo, muita insatisfação sobre a caracterização de dados que o partido considera que “continua a ser pobre”, cingindo-se apenas ao sexo e à idades das pessoas, não distinguindo o contexto em que o contágio acontece, se é em família, se é no trabalho, segundo se queixou o deputado Moisés Ferreira durante a reunião.
Ainda assim, quem participou na reunião ficou a saber, pelo especialista em saúde pública Henrique Barros, que está a ser desenvolvido um estudo sobre os contextos de contágio e para tentar perceber quais são os que apresentam maior vulnerabilidade. O trabalho só deverá estar pronto dentro de três semanas, revelou o especialista na reunião privada.
Quanto à vacina, foi também uma preocupação do líder do Chega, André Ventura, que destacou que a União Europeia investe muito na vacina, mas está a ser ultrapassada por outras potências. Lembrou até que o presidente russo Vladimir Putin estava tão confiante numa vacina que até já a tinha administrado à filha. Mas o deputado também questionou sobre a segurança da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford — de que Portugal já encomendou 6,9 milhões de doses — e os especialistas, desta vez do Infarmed, recapitularam o longo processo de validação das mesmas para garantir que nunca seriam colocadas no mercado sem essa certeza.
Governo passou reuniões do Infarmed para formato PDF. Oposição diz que é pouco
Aulas faseadas nas escolas para reduzir contactos em 50%, defendem especialistas
André Ventura disse ainda ter depreendido da apresentação inicial que foi feita pelos vários especialistas que os alunos não começariam todos as aulas ao mesmo tempo, mas foi depois esclarecido que o que é defendido é que a solução possa passar por aulas em horários diferentes, com formatos alternados (entre presencial e videoconferência) para diminuir o tamanho das turmas e também que as salas de aulas não sejam partilhadas.
Não foi o único a falar sobre as escolas, com a deputada do PAN Bebiana Cunha também a levantar este assunto e a pedir medidas concretas a aplicar nas escolas, depois dos especialistas terem apontado a necessidade de reduzir contactos em 50%. Mas foi reencaminhada para o que já foi divulgado pela DGEST e pela DGS.
O líder da oposição, Rui Rio, também não fez qualquer pergunta, embora — ao contrário de Costa e Marcelo — tenha prestado no fim da reunião declarações aos jornalistas. Aliás, não houve ninguém do PSD que questionasse, desta vez, os especialistas durante o espaço que houve para essas intervenções.
O Infarmed não foi para o Porto, como um dia prometeu o primeiro-ministro (num processo longo e tumultuoso), mas os famosos encontros desta pandemia — conhecidos como “reuniões do Infarmed” — acabaram por subir até à Invicta, pelo menos por agora. Como nenhum dos principais responsáveis políticos não fizeram qualquer intervenção a encerrar a reunião, os participantes ficaram também sem saber quando se estima que volte a haver um encontro desta natureza já que as antigas reuniões quinzenais foram extintas. E, ao contrário do que é habitual, não ficou marcado uma data para um próximo encontro.