Mário Tomé tem 75 anos. Este domingo, discursou na convenção do Bloco de Esquerda como militante de base. Mas teve um papel importante na história da extrema-esquerda portuguesa. Foi líder da UDP, deputado e representou a esquerda militar radical e revolucionária derrotada no fim do PREC (Processo Revolucionário Em Curso). Nasceu em Estremoz. Fez o liceu na Guiné-Bissau. Seguiu a carreira militar e combateu na Guerra do Ultramar com entusiasmo, até discordar e se tentar demitir. Foi condecorado. Esteve como ajudante de campo do general de extrema-direita Kaúlza de Arriaga, em Moçambique. Esquerdizou-se depois do 25 de Abril. A sua unidade foi cercada pelos comandos no dia 25 de novembro e os três mortos do confronto acabaram com a revolução.
Agora coronel, mais conhecido como major Mário Tomé, reconhece que foi entusiasmado para a guerra. Os mortos não o impressionaram. A revolução marcou-o mais do que os combates em África. Recebeu o Observador para uma entrevista de vida em sua casa, na avenida Almirante Reis, em Lisboa, onde cuida da sua mulher que está doente e com a mobilidade afetada e que depende dele para o quotidiano. Um regresso ao passado.
A guerra é o que mais marca a vida de um homem. Ficou mais marcado pela Guerra Colonial ou pela revolução?
O que me marcou mais foi a revolução do 25 de Abril e o PREC.
Mais do que a experiência da guerra e das suas comissões em África?
A guerra marcou-me relativamente, porque não se pode esquecer que não fui um mobilizado. Quando fui para a Academia [Militar] era para ser oficial e fazer a guerra. Portanto, o quadro que tinha na cabeça era esse. Fazer a guerra era o decorrer natural da minha escolha. Não me afligiu muito. É evidente que, quando começou a saturação — e com a saturação começou a minha tentativa de alargar horizontes –, aconteceu o 25 de Abril. A guerra marcou: longe da família, com combates, mortes, mas fazia parte do meu quadro profissional e mental.
Nessa época, qual era o seu quadro mental? Acreditava na defesa do Ultramar português?
Eu não sou de crenças. Eu não acredito. Havia quase um entusiasmo de ir para a guerra. Na primeira comissão, eu e outros da minha estirpe íamos entusiasmadíssimos para a guerra. Não fomos mobilizados nem obrigados, não fomos tirados às famílias. Do ponto de vista político, ainda era uma indefinição. Nessa época, era aquilo que lia.
E que é que lia?
Lia o Italo Calvino, lia o Augusto Abelaira, lia o Steinbeck. Essa leitura dava-me uma forma de estar no mundo ainda não definida, mas pelo menos já a elaborava uma capacidade de crítica em relação ao que vivia. No caso do fascismo, a tropa — a tropa em geral, não era eu –, em relação à PIDE tínhamos aversão, tirando os que eram da PIDE lá da tropa. A tropa era contra a PIDE, a não ser depois na guerra…
Em que a PIDE dava as informações…
Era o único serviço de informações, porque o Exército não tinha um serviço de informações para uma guerra daquelas. Era a PIDE que estava junto das populações, que tinha os seu bufos, os seus agentes, essa gente toda.
Quando foi para a guerra, era mais movido por esse espírito de aventura do que pelo império?
O império, isso nunca me disse nada. Defender a pátria… Não tinha um pensamento crítico organizado, e isso não me dizia nada. A tropa é a tropa, é a malta. É o que a gente tem de fazer, vamos a eles e tal, aquela conversa. “É para já”, era o lema da primeira companhia que comandei, na Guiné. Já nessa altura, a seguir a essa primeira comissão, quando não estava na guerra estava na Escola Prática de Cavalaria a dar instrução. O que dizia aos jovens que iam lá tirar o curso de oficiais milicianos, era: “Vamo-nos preparar para vocês não morrerem. Vão para lá, são obrigados a ir, é preciso é que não morram e voltem. Aqueles que quiserem desertar — falava mesmo assim — desertam”. E depois até dizia: “Se quiserem a minha ajuda, eu ajudo, mas quem cá ficar vai fazer o que eu quero, o que eu mando, para saírem daqui como deve ser….”
Era duro?
Era duro e rijo na instrução. Depois da instrução dávamo-nos todos bem.
O que mais o marcou na guerra?
Nada especialmente…
Nem as mortes em combate?
As mortes em combate eram mortes em combate…
Não tinha estados de espírito?
A coisa que mais me marcou eu nem presenciei, não estava lá. Foi uma operação comandada pelo Matos Gomes — o escritor Carlos Vale Ferraz –, que tinha sido meu adjunto quando era alferes (ele e o Diniz de Almeida foram meus adjuntos em Moçambique). Estavam à espera que passasse um grupo da Frelimo, puseram umas armadilhas e estavam emboscados. Mas passou um grupo de pessoas e foi o ver se te avias. Morreu uma série de gente da população. Ele ficou muito impressionado com isso.
E como é que isso o afetou a si?
Quando ele me fez o relatório, marcou-me bastante. Pelo menos comigo, tínhamos um princípio que era a população ser intocável. Aquela coisa de abater população a dizer que podia lá estar um tipo da Frelimo, connosco não existia. Nisso era muito duro. Aliás, numa das primeiras operações que fiz no Niassa — aquilo já tinha sido batido pela Força Aérea e pela Marinha, três dias seguidos — ao pé do rio, encontrámos um homem morto. Mandei parar. “Vamos enterrá-lo!” “Ah, meu capitão”, tinha a malta a reclamar. “É um turra.” “Vamos enterrá-lo, não fica assim aqui, é um homem.” “Ah, mas não temos pás nem picaretas!…” “Mas têm as facas de mato! Então vá, força aí.” Arrisquei quase uma insubordinação. Mas não fizeram uma cova muito funda, confesso. Serviu como primeiro sinal para o comportamento futuro da companhia. Ficou clarinho com quem estavam a lidar e já sabiam como ia ser dali em diante.
Na Guiné diziam que ia para o mato sem G3 e chamavam-lhe O Catanas….
Não era na Guiné, era em Moçambique. Foi por duas razões. A primeira era que não preciso de G3 para nada. Se ia com dois pelotões — um capitão sai com dois pelotões no mínimo –, para que é que precisava da G3? Quando precisasse da G3 já não valia a pena. E depois a catana era mais leve…
Camaradas seus lembram-se de si e dizem que fardava bem, que era muito garboso a fadar: bota alta da cavalaria, casaco de cabedal…
Era um blusão verde da tropa… a tropa é muito verde… Uma pessoa quando farda tem de fardar como deve ser. Era uma questão de princípio de um militar. Obriga a hierarquia militar, e obriga os seus subordinados a fardar como deve ser. Botinha engraxada, cabelinho aparado, barba feitinha. Era muito rigoroso. Fora do formalismo, dávamo-nos todos muito bem.
Nunca teve stress pós-traumático.
Não.
Mas percebe os que tiveram?
Absolutamente. Então não percebo? Sobretudo o pessoal que esteve em situações terríveis. Estive em situações duras, mas nunca estive em situações terríveis. É lamentável que só recentemente o stress pós-traumático tenha passado a ser encarado com um mínimo de atenção e cuidado. As vítimas vão aumentando à medida que os anos passam. Destruiu famílias inteiras, foi muito duro. O que é lamentável, já agora, é que a Associação dos Deficientes da Forças Armadas tenha sido obrigada, já depois do 25 de Abril e durante o PREC, a lutas enormes para conseguir ser reconhecida. Foram perseguidos pelos Comandos, foram espancados. E a Polícia Militar, a terrível PM, é que lhes dava o apoio, quando eles cercaram o Palácio Belém a gente é que lhes ia fornecer o alimento e o apoio todo.
Acha que o país devia compensar melhor as pessoas que foram obrigadas a combater sem terem escolhido? Há aqui uma visão de direita e de esquerda. Qual é a sua?
Isso é uma pecha… Só pode haver uma visão. Fiz um artigo no outro dia por causa da comemoração do 10 de Junho no Terreiro do Paço. Não alinho na recuperação da mitologia fascista e colonialista. O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa tem de ter cuidado com isso. Não pode ser. Ao Presidente Sampaio escrevi uma carta aberta no Expresso, quando ele foi inaugurar um monumento aos que morreram pela pátria. O que é uma mentira. Temos de ver estas coisas com clareza. Temos de apoiar todos aqueles que lá sofreram. Não os apoiam, mas vão erigir um monumento aos que morreram pela pátria. Os que morreram foram vítimas do fascismo e do colonialismo. Não morreram pela pátria. A pátria eram os familiares deles, isso é que era a pátria, não eram os Mello, os Champalimaud, o Salazar ou o Marcello Caetano. Isso não é pátria nenhuma. Eles têm que ser apoiados enquanto seres que foram sacrificados, apoiados e bem apoiados e acabar com essa visão de esquerda e direita, isso é conversa da treta. Tem de se acabar com essa mitologia fascistóide, colonialista, que parece que querem repor e que nós, com o 25 de Abril, tentámos erradicar.
Marcelo Rebelo de Sousa fez mal em fazer ali o 10 de Junho?
Absolutamente, um disparate.
Não acha que já passou todo esse estigma?
Não passou nada. Pelos vistos não passou. O que é que passou?
Lembra-se do pai de Marcelo Rebelo de Sousa como governador em Moçambique, quando o Mário Tomé estava com Kaúlza de Arriaga?
Não. Quando estava no Niassa, nem sei quem eram esses tipos. Sabia quem eram os meus comandantes…
Quando foi para Moçambique, para ajudante de campo de Kaúlza de Arriaga [general de ultra direita], que tipo de relação teve com ele?
Uma relação muito normal de comandante para subordinado. Era o ajudante de campo dele — com o Paulo Castilho, o escritor e alto quadro da administração ligado à Europa. Ele era alferes miliciano e eu era capitão. Ele era urbano, delicado, era ambicioso e tinha aquela ideia que estes tipos todos tiveram, de que se podia ganhar uma guerra daquelas. E fez disparates por todos os lados. A Operação Nó Górdio foi um disparate absoluto. Fez uma série de disparates, de quem quer manter a todo o custo — como fazem os fascistas — o status quo, que lhes dá os privilégios e a vida que têm. Nem lhes passa pelas cabeçorras que a vida muda e se transforma e que as guerras de guerrilhas não se ganham.
Nessa fase, com Kaúlza, alguma vez se apercebeu de uma conspiração da direita do regime para preparar um golpe contra Marcello Caetano?
Não. Eu tinha acesso a tudo, normalmente. As relações dele com essa malta tinham outros circuitos, não sei. Nunca me apercebi disso. O tal golpe que depois o Fabião terá denunciado, isso não.
Tiveram algum contacto depois de ele ter sido presoa seguir ao 28 de setembro de 1974?
Não. Estávamos em campos totalmente opostos. Fui para o Kaúlza quando tinha acabado a minha comissão na Guiné. Estava na Escola Prática de Cavalaria. Um dia telefona-me o Filomeno Garcia, quando Kaúlza veio a Lisboa explicar a maravilha da operação Nó Górdio. Era o ajudante de campo dele e telefonou-me a dizer que estava há três anos em funções e queria sair dali. Pensou em mim, não sei exatamente porquê. Eu era um oficial garboso e condecorado na guerra e isso era tudo fator. O outro ajudante, o miliciano, o João Quintela, era amigo da minha mulher desde pequenino. É muito possível que ele tenha tido influência nisso e falado com o Filomeno. Só que eu tinha pedido a demissão das Forças Armadas…
Ainda na Guiné…
Sim, fiz um relambório político, na linguagem da época, a dizer que estava em desacordo com a guerra e contra o Governo. Foi uma coisa mesmo assim a provocar.
Mas não o puseram fora.
Nessa época não pensei nisto que vou dizer agora. Em 1972 eles já estavam numa situação complicada. As Forças Armadas começavam a dar sinais de ruptura ideológica e moral e de desgaste. E eles não podiam arriscar-se a arranjar uma referência ou um símbolo. Se eles me perseguissem de forma ostensiva, poderia ter-me tornado numa referência ou num símbolo. As coisas que acontecem nestas situações nem dependem da vontade do visado. Não me fizeram nada. Ao fim de um ano, a resposta que eles deram ao meu relambório foi: “Em referência ao seu requerimento: indeferido”. O Spínola, portou-se bem nessa altura. Tentou dissuadir-me…
Chamou-o para jantar no palácio do governador.
Chamou-me para jantar. E eu disse: “Desculpe, meu general, mas a decisão está tomada”. Sou um bocado como dizia o Sartre: o que é preciso é chegar ao ponto em que é impossível voltar atrás. É a minha maneira de estar.
E esteve várias vezes nessa situação de ser impossível voltar atrás?
Voluntária e conscientemente. Quando aceitei ser candidato a deputado pela UDP também foi assim. Nem pensei duas vezes, vamos embora para a frente. Mas, voltando atrás: o Spínola tentou dissuadir-me. “Vou assumir não a defesa da sua posição, mas do seu requerimento, para que seja tido em conta e seja visto”. Conversa… Tudo para tentar baixar a parada.
Mas a sua mulher teve influência na sua ida para trabalhar com Kaúlza.
Não, de maneira nenhuma. O Kaúlza é que disse um dia, no jornal Público, que eu era o tipo mais condecorado, o maior operacional de Moçambique, “mas a mulher dele é que era inteligente”.
O 25 de Abril apanhou-o em Moçambique. Saiu em que mês?
A 19 de julho…
Caiu em Lisboa com a revolução a acelerar…
Atenção, normalmente põe-se a revolução em Lisboa. A revolução começou lá. O que provocou o 25 de Abril? Foi a Guerra Colonial. Onde é que começaram as primeiras movimentações para acabar com a guerra? Foi lá. Aqui era o centro do poder deles e o nosso poder em construção. A propósito, tenho aqui um livro do coronel Jorge Golias, A descolonização da Guiné-Bissau e o Movimento dos Capitães. Isto é muito importante, porque foi na Guiné-Bissau que, pela primeira vez, a seguir ao 25 de Abril, se avançou para além das orientações. Depuseram o poder lá, entraram em contacto com o PAIGC e reconheceram a independência da Guiné logo a seguir ao 25 de Abril, quando o Spínola ainda andava a tentar que fizéssemos uma grande Commonwealth ou uma coisa parecida, no mau sentido, porque era uma federação…
Em Moçambique, qual era a sua participação? Que informação tinha sobre o golpe?
Pertencia à coordenadora do movimento. Tinha a informação toda que era possível ter. Não sabia quando ia ser o golpe, mas sabia que ia ser. Não tínhamos dúvidas. Quando foi o 16 de Março, um ou dois ainda hesitaram, mas a maioria disse que era para ir para a frente. Tinha a certeza que a gente ia ganhar isto. A guerra não é feita por generais nem por coronéis. É feita por capitães. Se os capitães dizem “Acabou a guerra”…
Participou numa conspiração, em Moçambique, para lançar uns panfletos de um avião, contra a expulsão do bispo de Nampula?
O bispo de Nampula foi um homem excecional a quem demos todo o apoio. Agora, essa do avião, estou convencido que sim. Estou farto de discutir isso. O coronel e historiador Aniceto Afonso — éramos os que mais mexíamos na coordenadora [do MFA em Moçambique] — diz que não se lembra nada disso. Eu tenho a certeza, mas a memória é tramada. Sempre tive essa memória. Estou a ver a gente a dar instruções, a falar com malta da Força Aérea para lançar panfletos de apoio ao bispo, mas o Aniceto diz que não. Ou isto foi feito e ele não reparou. Não sei. Se não deitámos, devíamos ter deitado e tínhamos feito muito bem em ter deitado. O bispo era uma pedra fundamental no movimento democrático e para a independência de Moçambique.
No seu caso concreto, quando é que começa o seu caminho para a esquerda?
Do ponto de vista das minhas leituras, começo com o processo do 25 de Abril. Na comissão coordenadora, estávamos permanentemente à procura de tudo o que havia. E íamos também aproveitar aquilo que o Estado-Maior também recolhia para saber o que se passava no mundo. Numa guerra, o Estado-Maior tem de saber o que se passa à sua volta. A incompetência não ia tão longe que eles não quisessem saber isso tudo. Servíamo-nos disso para também estarmos informados sobre que se ia passando. Isso ia dando base e alimento a uma nova perspetiva. Quando estamos numa situação complicada — estávamos todos na guerra –, começamos a pensar mais depressa e a tentar arranjar novas referências de pensamento. Recebíamos lá O Avante!. Lia O Avante!, do PCP, que era o jornal da esquerda militante.
Qual é o momento em que fica à esquerda do PCP? Quando chega a Lisboa, como é que vai para a Policia Militar?
Vou primeiro para a Escola Prática. Depois mandam-me para comissário político de Cavalaria 7, na Ajuda. E depois vou para a Polícia Militar quando Cavalaria 7 acaba, a seguir ao 11 de Março. Fico integrado dentro de Lanceiros 2. Éramos contactados pela esquerda. Havia outros que seriam pelos partidos de direita. A virgindade das Forças Armadas é uma aldrabice. Nem são virgens nem querem ser. Não podem usar a arma em defesa de um partido, mas depois diziam que só eram políticos os da esquerda. Os da direita não. Os do PS e os do PSD, esses não eram políticos, estavam a defender a pátria em permanência. Nós é que tínhamos a pátria em perigo porque pensávamos à esquerda. Havia nessa fase esses contactos todos: o Carlos Antunes, a Isabel do Carmo, o Raimundo Narciso. É assim que se faz. E naquela altura o Movimento das Forças Armadas era o factor político fundamental de todo o movimento. Fundamental é o povo, mas em termos de organização política era a tropa. Os partidos cresceram à sombra do MFA, tirando o PCP. E depois era pelo comportamento e pelas propostas… Comecei a ter simpatias claras pela UDP.
O que é que o seduziu? Achava o modelo de sociedade interessante, inspirado na Albânia?
Não era o modelo de sociedade que mais me atraía. Era a maneira de a malta trabalhar com os soldados e o gabinete de dinamização da unidade. Eu era segundo comandante e lidava com isso tudo. Para nós, para a UDP, não havia as cooperativas boas e as más. A Torre Bela não era má porque era o Camilo Mortágua. Aquela malta da UDP, onde houvesse movimento era onde queria estar. Não distinguia um movimento bom de um movimento mau. Era o movimento: era para a escola, para a ocupação do que estava a apodrecer ou que não era cultivado, a terra a quem a trabalha, estas coisas todas, slôganes da esquerda toda. Isso começou logo a clarificar o meu campo de intervenção. Depois fui convidado para deputado.
Arrepende-se de alguma coisa que tenha feito no PREC?
Não sou homem de arrependimentos. Nunca me arrependo de nada. O que fiz foi na altura, foi o que decidi, não tenho que me arrepender. No PREC, temos de pensar as coisas com cabeça. As forças da esquerda, o PS e o PCP, eram muito determinados pela sua adesão aos dois blocos imperialistas. Há quem diga que a União Soviética não era imperialista, mas funcionava como tal. A malta mais à esquerda estava mais solta. A UDP tinha a Albânia, que era o farol, mas era tão pequenina, porreira e tal, a resistir aos impérios todos e à China. Até já estava contra a China. Era uma referência romântica.
Acreditava na Albânia?
Eu não acredito…
Reformulando: parecia-lhe um modelo interessante?
Parecia-me que sim, pois claro.
Visitou a Albânia?
Sim, fui lá muito depois.
E desiludiu-se?
Nem me desiludi. A minha mulher é que sim. Ela é que era esperta — segundo o Kaúlza –, ela é que ficou assim: “Eh pá, mas isto não se desenvolve”. Não se desenvolve, estão aqui cercados, havia sempre essa desculpa. De facto estavam cercados e não tinham os apoios que teriam se tivessem aderido à dinâmica soviética ou chinesa, onde estiveram e depois saíram. Só separarem-se desses “paizões”, já era um sinal positivo e interessante.
Numa entrevista, chegou a dizer que tinha também uma visão crítica do PREC. Em que aspetos?
Isso são pormenores. Embora possa ter tido consequências mais ou menos graves, são pormenores. Considero que esses partidos ligados à União Soviética e ao império americano, mesmo a UDP e os outros, estavam ainda com referências da II Guerra Mundial, na forma de tratar a política. Isso é a grande crítica que faço a mim também, nessa altura. Não havia a perspetiva de que o mundo tinha mudado de forma brutal. Houve o Maio de 68, em que uma sociedade quase inteira em França se levantou, que o António José Saraiva classificava como crise da civilização burguesa. E depois foi tudo abaixo outra vez. Havia muita malta que esteve em França exilada, como os artistas: o Zé Mário Branco ou o Hélder Costa estavam lá no Maio de 68. Repare: durante o PREC, houve alguma referência ao Maio de 68? Praticamente não houve. Se calhar numa discoteca qualquer. Não houve uma referência política.
Se calhar toda a sociedade portuguesa era conservadora, incluindo o PCP…
Não é ser conservadora, só neste sentido: estavam ligados a uma teorização que se tinha tornado dogmática, de dogma. O Maio de 68 teve um efeito extraordinário. Acabou com o poder, entre aspas, das ideologias. O Maio de 68 foi contra as ideologias: estalinistas, maoístas, trotskistas. Foi contra as ideologias todas. Foram os estudantes e os operários que conseguiram pôr em marcha a maior greve da história da humanidade. Foi em França nessa altura. Isso não significou nada. Não percebemos que o mundo era diferente. Estávamos todos dogmatizados…
Na altura também não percebeu isso.
Não, nada. De maneira nenhuma. Isto é pensamento posterior. Mas era bom que este pensamento tivesse mais caminho, que o pessoal discutisse isto.
O coronel Vasco Lourenço costuma dizer que o regimento da Polícia Militar era o exemplo da “bagunça” das Forças Armadas. Não era?
Não. Primeiro, o 25 de Abril só foi possível pela bagunça das Forças Armadas. Foi um golpe…
Contra a hierarquia…
Foi contra as Forças Armadas. As Forças Armadas são a hierarquia. Sem hierarquia não há Forças Armadas, começa por aí. Rebentou-se com a hierarquia. E, ao rebentar com a hierarquia, deu-se a possibilidade do PREC, do movimento popular. As chamadas conquistas de Abril não teriam existido se não se desse cabo da hierarquia. Costumo dizer que o que eles queriam, incluindo o Vasco Lourenço, que é meu amigo, era o seguinte: o que vocês queriam era um 28 de Maio democrático. A malta substitui o poder central e depois vai tudo para os quartéis. Mas eles esqueceram-se que o mundo era outro…
Mas a história acabou assim.
Exatamente, com o 25 de Novembro. Porque não se percebeu, cá está… Os partidos da esquerda não perceberam que estavam noutra época, pós-II Guerra Mundial, em que a social-democracia tomou conta da Europa.
Voltando à “bagunça”, como é que tomavam as decisões no regimento da PM? Era em plenário?
Não, isso é um disparate total. Houve três ou quatro plenários na PM. As decisões eram tomadas pelo comando. Mais nada. Havia uma hierarquia na PM, como há em qualquer quartel. Eles é que lhe chamam bagunça. Mas era uma hierarquia que tentava que o comando fosse devidamente apoiado, informado, estimulado, criticado por órgãos que o próprio MFA contemplava: os gabinetes de dinamização. A própria Assembleia do MFA, o que era? Era o confronto com uma hierarquia formal.
Mas, para termos uma democracia ocidental, os militares tinham de ir para os quartéis…
Mas o que é uma democracia ocidental? É onde se põe o sol?
Uma democracia representativa…
E o papel do povo? É ali na sopa dos pobres?
Que regime devia ter nascido do PREC?
Um regime para o qual o próprio MFA tinha ideias, embora as tivesse posto em prática de forma errada. Na minha opinião, era um regime que seria a articulação da representação política e do movimento social, que é o que se pretende agora. São estes movimentos, em que o povo começa a querer ter um papel. Estou a falar de movimentos como o Podemos, que estão a surgir e a contrapor-se aos bandidos que mandam na Europa. Já viu o problema dos refugiados? Os crimes que se cometem? O que resultou da invasão do Iraque e do Afeganistão? Entraram por ali de armas na mão e viu o que criaram? O que está a surgir agora é a única coisa que se contrapõe à ascensão da extrema-direita. A máfia tinha honra. Estes gajos não. No outro dia estive a ver “O Padrinho”. Faziam propostas irrecusáveis, matavam o gajo, mas era com honra.
Acha que o Bloco de Esquerda é um bom continuador dessa perspetiva política?
O BE está no caminho de dar um contributo muito sério e positivo no sentido de as pessoas começarem a ter um papel mais ativo e com respostas politicas concretas para os seus problemas.
O BE aburguesou-se com este apoio ao PS? Vê isto com bons olhos?
Absolutamente. O PS precisou do BE para ser Governo. O BE, por outro lado, está a conseguir (creio eu, é a minha esperança), mostrar a muita gente do PS que a social-democracia, que eles dizem que é a sua base, só pode ter alguma proeminência se forem tomadas medidas radicais. As propostas radicais, nesta Europa e neste mundo, são as únicas que permitem aos sociais-democratas ter um papel decente. E o BE está a conseguir dar um contributo para resolver os problemas concretos das pessoas, atenuar as consequências do Governo anterior. Mostramos aos que têm um ideal social-democrata que a social-democracia ou envereda por um caminho de confronto radical com o status quo ou não tem papel.
Voltando atrás, ao 25 de Novembro: ainda agora, quando se comemoraram os 40 anos, continuaram as polémicas. Quem é que disparou primeiro no cerco ao regimento da PM? Os Comandos ou a Polícia Militar?
Não sei. Fui para a parada para parar o fogo. Tinha que tomar aquela decisão. Era um disparate total o que estava a acontecer. Já disse ao Vasco Lourenço: então matam-se três gajos porquê? Porque não saíamos às 8h10?
A ordem para se renderem tinha sido dada quando?
A ordem foi durante toda a noite. Dizíamos que não tínhamos de nos render, porque estávamos a cumprir as ordens do Costa Gomes, Presidente da República e comandante das Forças Armadas. Obviamente que também havia política nisto. “Estamos de prevenção rigorosa”, dizíamos, “Não podemos sair daqui”. Prometemos aos militares que só abandonávamos o regimento se fosse essa a vontade explícita deles. Era um processo político, político-militar.
O que aconteceu quando saiu para a parada?
Quando vou para a parada é nessa base: já tinha morrido gente, tinha de parar. Depois dali fomos para Belém. O Jaime Neves [dos Comandos] perguntou: “Quem é que disparou primeiro?” Foi quem mandou cercar uma unidade militar numa situação de prevenção rigorosa. Eles atacaram porque tinham que nos esmagar. A preocupação deles já não era política. O PREC estava já a diluir-se…
Costuma dizer que não ia haver uma guerra civil, que isso é um disparate. E os civis que estavam armados?
Isso não dava para fazer uma guerra civil. Eram as coisinhas que se fazem a fingir. Quem tinha a Força Aérea é que dominava. O PREC já estava esgotado, e o 25 de Novembro foi a bota cardada em cima desse quase esgotamento do PREC. Mas qual era a preocupação deles? A política económica? O problema deles eram as Forças Armadas, que eram três ou quatro unidades: Torres Novas, em Lisboa eram duas ou três, uma no Porto, e pouco mais. Mas essas, simbolicamente, eram uma referência permanente do movimento popular.
E a experiencia da prisão a seguir ao 25 de Novembro?
Era uma cela pequena, dois por três metros, um balde da merda e banho uma vez por semana. Estive lá de novembro a janeiro, em Custóias, antes de ir para Santarém. Fazíamos plenários à janela, elegíamos mesa e depois discutíamos.
Como conheceu a sua mulher?
Conheci-a na Escola Prática de Cavalaria. A namorada de um amigo e camarada de curso tinha uma amiga… Eu era para ir de fim de semana para Lisboa, mas lá fiquei e conhecemo-nos. Entretanto, tive um acidente de automóvel, bati com a cabeça, perdi a consciência. Fiquei em estado de choque e no hospital diziam que só chamava por ela. Depois disseram-lhe: “Tens de ir ver o Tomé, que ele só chama por ti.” E ela lá foi, numa de enfermeira. E a partir daí começámos a namorar.
Ela foi consigo a algumas comissões?
Foi a três comissões. Na primeira não era casado. Na segunda, o Bernardo, que é o meu filho mais velho, nasceu quando estava a atravessar o Equador. Recebi um telegrama a dizer: “O Bernardo nasceu”. Foi uma festa nessa noite: bagaço para os soldados, whisky para os oficiais e os sargentos. Era assim a hierarquia. Depois, em Moçambique, ao fim de um ano e tal, quando a minha zona começou a ficar melhor, ela foi para lá. Nós estávamos junto ao lago, era um sitio paradisíaco, foi uma sorte nesse aspeto. Na outra comissão, na Guiné, quando fui para perto de Bissau, a minha mulher também foi para lá, para casa dos meus pais [que tinham lá um comércio]. Ainda vivi lá em miúdo.
Os seus filhos o que fazem? Nunca sentiram o apelo da política, como o pai?
Não. A minha filha Carlota é médica. O Bernardo é investigador de física das partículas no LIP. Nunca fizeram política ativa, mas são progressistas. São pessoas da ciência, não podiam ser outra coisa.
Nunca fumou um charro mas comeu-o, não é assim?
Comi um charro. Foi numa festa ali da malta nova da UDP, do Bloco. Gosto da malta nova. A certa altura, insistiram muito para comer um bolo. Mas eu estava na cervejinha, não me apetecia o bolo… mas lá comi uma fatia. E vim-me embora para casa às 23h30 ou assim, e liguei a televisão. Depois comecei a sentir-me assim um bocado tonto. Já estava na idade de pensar em problemas cardíacos. Levantei-me e pimba, depois é que comecei a pensar… E no outro dia fui ter com o pessoal e perguntei-lhes se tinham posto matéria no bolo e a malta riu-se.