Naquele dia 11 de abril de 2011 o padre Arsénio e a sua companheira, Cristina — a mulher com quem nos últimos meses procurara a casa ideal –, chegaram à conservatória em Peniche convictos de que tinham feito a melhor escolha: um terreno de cerca de 5500 m2, em Autoguia da Baleia, com licença para construirem a moradia com que sempre sonharam, uma casa de piso térreo de cerca de 250 m2 e com piscina interior.
O negócio seria celebrado apenas em nome de Arsénio Isidoro e o cheque de 60 mil euros que usou nesse dia para pagar até era de uma conta dele. Mas, segundo o Ministério Público, o dinheiro que reuniu dias antes para aquele pagamento vinha de uma das seis instituições particulares de solidariedade social que geria sempre com Cristina – uma mulher casada e licenciada em gestão de empresas.
A casa – cuja construção acabaria por nunca ficar concluída devido ao atraso das prestações que iriam perfazer os 210 mil euros – foi apenas um dos bens que o Ministério Público (MP) encontrou que terá sido adquirido pelo casal com dinheiro de doações feitas a estas instituições ligadas à Igreja, por particulares, por empresas e até pela Segurança Social. Além deste património, os investigadores da Polícia Judiciária descobriram que o Porsche usado nas deslocações do casal também terá sido financiado da mesma forma, assim como um barco, duas motas de água, milhares de euros em roupa e, até, marisco.
Dinheiro que, acusa o MP, apesar de saberem não lhes pertencer, foi usado para “satisfação das necessidades pessoais e pagamento de despesas de caráter supérfluo por eles assumidas, como sendo viaturas desportivas de terra e mar, marisco e roupa de luxo”, lê-se no despacho de acusação que ao longo de uma centena de páginas descreve como os arguidos centralizavam as contas numa só instituição e como transferiam dinheiro para as suas próprias contas com justificações de obras de caridade que nunca existiram.
Nas contas descritas no despacho de acusação, que tem mais de um ano, e que o Jornal de Notícias deu conta esta segunda-feira, o casal ter-se-á apoderado de mais de 797 mil euros até março de 2016, quando foi descoberto. Nas contas de Arsénio Isidoro terão entrado mais de 334 mil euros e nas de Cristina mais de 253 mil. Tudo dinheiro que, a haver condenação pelos crimes em coautoria de abuso de confiança e de branqueamento de capitais, terão que devolver.
Entre as 25 testemunhas que serão chamadas a depor no julgamento — que ainda não está marcado –, há quem ateste como ambos contactaram uma agência imobiliária para propor vender uma moradia e comprar outra. E como o casal andou a visitar casas para comprar num Porsche, que acabaria por vender por quase metade do preço. Também a compra e venda deste carro foi escrutinada pelo MP — o padre Arsénio terá usado um cheque de 10 mil euros de uma instituição, assinado por Cristina, para juntar ao pagamento de um sinal de 65 mil euros que pagaria no stand da Porsche em Lisboa. Durante quatro anos, o padre foi pagando prestações de cerca de mil euros até decidir rescindir o contrato de locação e vender o carro por 50 mil euros, em 2014, refere a acusação.
Ele na presidência e ela na contabilidade de seis IPSS
O Ministério Público não descreve como o padre Arsénio e Cristina se conheceram, mas o mais provável é ter sido na Ramada, onde ambos trabalharam juntos. Durante anos, porém, ambos dividiram funções em pelo menos seis instituições de solidariedade social: ele na presidência ou na direção, e ela na parte da contabilidade.
Arsénio e Cristina partilhavam funções no centro comunitário e paroquial de Ramada. Fundado em 1997, com fortes ligações à paróquia Nossa Senhora Rainha dos Apóstolos da Ramada, Odivelas, este centro oferecia à data serviços de creche, centro de dia, jardim de infância, apoio domiciliário. Arsénio era o presidente e ela começou como diretora de serviços e depois passou a tesoureira.
Os dois chegaram a dar uma entrevista à revista municipal de Odivelas sobre os projetos que tinham para o centro paroquial. Assumiam-se benfiquistas. Num pequeno perfil, Cristina referia ter nascido em abril de 1966, ser licenciada em Gestão de empresas e ter mudado de vida aos 30 anos, quando começou a viver na Ramada. Já o padre Arsénio, sempre sorridente nas fotografias, afirmava ter nascido em 1973, no Carvalhal, a “aldeia mais bonita do Oeste”, no concelho do Bombarral. Entrara no seminário aos 18 anos e fora ordenado padre já com 27. Enquanto ela estava na paróquia há dez anos, ele estava há dois.
A PJ descobriu que algum do dinheiro saído desta instituição para as suas contas pessoais serviu, em 2011, para comprar joalharia (uma compra que ascendeu aos 1430 euros), para comprar roupa (há uma compra na Massimo Dutti de 1140 euros e uma outra na Globe de 1252) e até para gastar em restaurante e em hotéis.
Dinheiro de crianças e idosos usado em bens de luxo
Entre 2012 e 2015 ambos tinham também responsabilidades na Fábrica da Igreja da Paróquia da Ramada — onde este era padre. Assim como na Associação Protetora Florinhas da Rua, fundada em setembro de 1921 para acolher crianças entre os 3 e os 18 anos. Arsénio chegou à direção desta última em 2008 e Cristina à tesouraria três anos depois. Foi daqui que saiu o dinheiro para comprar o terreno onde começaram a construir uma casa.
Antes disso, Cristina trabalhara como tesoureira no Instituto de Beneficiência Maria da Conceição Ferrão Pimentel, em Abrigada (Alenquer) desde 2003 e, anos depois, o padre Arsénio foi escolhido para presidir à instituição — nessa altura, já se conheceriam da Ramada. Neste centro, fundado em 1954, prestam-se serviços de centro de dia, apoio domiciliário, jardim de infância, creche, acolhimento de crianças em risco e atividades ocupacionais. O instituto “Sãozinha”, como é conhecido, chegou a ficar sem dinheiro para pagar subsídios de férias, salários e a semanada que normalmente entregavam aos miúdos. Já depois de 2016, com a saída de ambos, a direção viu-se obrigada a reduzir os recursos humanos, o que provocou uma degradação dos serviços.
Entre 2006 e 2015 o casal teve também funções na Casa do Gaiato em Loures – fundada em 1948 para acolher crianças e jovens abandonados, que vivam na rua ou em situação de risco. Quando Arsénio foi constituído arguido, a Casa do Gaiato emitiu mesmo um comunicado em que afirmava manter a “confiança” e a “solidariedade” no Padre Arsénio Isidoro “reconhecendo a sua imagem de exemplo e generosidade e fazendo votos para que, rapidamente, a justiça [clarificasse] o manto de suspeição sobre ele levantado”.
A investigação da PJ chegou ainda a São Tomé Princípe, onde foi pedida cooperação judiciária por causa da associação Ligar à Vida — uma associação de Gestão Humanitária para o desenvolvimento, criada em 2008, que apoiava projetos de cariz social, educacional, económico e ambiental em Portugal e países lusófonos. A maior parte dos fundos desta instituição vinham das outras instituições geridas por Arsénio e Cristina. O padre era o presidente desde a sua fundação.
Dinheiro circulava entre as várias instituições
“As operações de meios monetários”, descreve o MP, “encontravam-se contabilisticamente refletidas nas contas do Centro Comunitário e Paroquial da Ramada”. Assim, “os movimentos contabilísticos destinavam-se a suprir défices de tesouraria em instituições administradas, a efetuar pagamentos de responsabilidades de umas por outras entidades e provisionar as contas bancárias do arguido Arsénio Isidoro”, descreve a procuradora Maria Leonor Cardiga.
“Aproveitando-se do facto de, em conjunto, terem sob o seu domínio as instituições acima descritas, centralizaram a gestão financeira de todas no Centro Comunitário e Paroquial da Ramada, cujas operações de tesouraria concentravam os diversos fundos, gerindo-os como uma entidade única”, lê-se no despacho de acusação.
O julgamento do padre Arsénio e de Cristina, que estão em liberdade, ainda não está marcado. Ao Jornal de Notícias, o padre negou a acusação. Desde 2016, quando foi constituído arguido, que está afastado das funções sacerdotais, assim como das funções que tinha nas instituições.
Os bens dos dois arguidos foram arrestados pelo Estado.