São pelo menos cinco anos de formação, que se podem estender aos sete. Depois de um curso de seis anos, os médicos passam um ano no Internato de Formação Geral e outros quatro a seis anos (dependendo da especialidade) no internato de Formação Específica. Um período com elevado grau de exigência: entre os 25 e os 30 anos, e com um salário baixo, os médicos estão a receber formação ao mesmo tempo que assumem o tratamento dos doentes — muitas vezes com níveis de responsabilidade muito acima dos que seriam normalmente exigidos não fosse a carência de profissionais no SNS. Para além disso, têm de produzir artigos científicos e relatórios.
Um cocktail perfeito para o burnout grave que, segundo um estudo da Ordem dos Médicos, revelado a semana passada, afeta 25% dos cerca de 10 mil médicos internos do SNS — o triplo da prevalência nos médicos especialistas. Mais de metade dos jovens clínicos (55%) está em risco de desenvolver burnout. Ao Observador, duas médicas internas e um ex-médico contam como chegaram ao limite e a forma como ultrapassaram a situação, mudando de especialidade ou mesmo abandonando a profissão.
Um em cada quatro médicos internos tem sintomas graves de “burnout”
Francisca deixou o hospital, onde tinha “vidas nas mãos”
Francisca foi colocada fora de Lisboa, a sua área de residência, aos 26 anos, para fazer internato de Medicina Interna num hospital periférico, que opta por não revelar. Seguiu-se uma “má experiência”, logo no início da carreira, no 1º ano de internato. “Tinha demasiada responsabilidade para as minhas competências na altura“, conta a médica interna, revelando ter feito muitos procedimentos sozinha e sem apoio. Quando pedia ajuda, essa “era, muitas vezes, negada”, diz. “Tinha muita pressão em cima”, recorda. A falta de recursos humanos era notória, sublinha, acrescentando que “quase não podia gozar folgas”.
Para além disso, os limites legais de trabalho eram frequentemente ultrapassados. “Trabalhava imensas vezes de noite, era colocada a trabalhar em muitos fins de semana, nunca podia vir a casa”, diz Francisca, cujo apelido escolhe também não revelar. Perante o excesso de trabalho, e com cerca de cinco meses de trabalho em contexto hospitalar, os sintomas de burnout começaram a acumular-se, uns atrás dos outros. “Passava mais de 40 horas sem dormir, e quando chegava a altura de descansar também já não conseguia. Deixei de comer também”, admite.
Exausta, a médica começava a sentir-se “muito triste e diferente” e começou a apresentar sinais de despersonalização/desumanização, uma característica típica do burnout e que, segundo o estudo da Ordem dos Médicos, afeta quase metade dos internos — aliás, apenas 5% estão totalmente envolvidos no seu trabalho, uma percentagem cerca de quatro vezes inferior à de outros países e apenas 16,5% considera a relação entre a vida pessoal e profissional equilibrada.
“Chegou a um ponto em que não me sentia ligada aos doentes. Chegava às 8h e às 8h20 já tinha visto todos os doentes da enfermaria, estava completamente desconectada. Não sentia vontade de trabalhar nem ligação emocional com os doentes”, recorda Francisca.
Para além disto, a médica interna enfrentou também a chamada síndrome do impostor, um distúrbio psicológico em que alguém tem dificuldades em reconhecer as suas capacidades e estimula a auto sabotagem. “Sentia que não conseguia responder às necessidades dos doentes”, diz, apontando a instabilidade financeira como outro fator que potencia as dificuldades. “Muitos estão deslocados, a gastarem quase todo o ordenado a pagar casa. Sentem muita insegurança financeira”, sublinha.
Foi um ataque de pânico, em pleno serviço, que levou a médica a pedir ajuda. “Fui para casa e nunca mais voltei ao hospital. Tive apoio de um psiquiatra, de um psicólogo e de uma nutricionista”, recorda. Segundo o inquérito da OM, cerca de um terço dos médicos iniciou apoio psicológico ou psiquiátrico durante o internato.
Francisca esteve seis meses de baixa e decidiu não voltar a Medicina Interna. Mudar de especialidade implica iniciar o processo de formação do zero: uma decisão rara mas que se tem tornado cada vez mais frequente, garante a médica. “Comecei a receber mensagens de outros internos a pedirem ajuda, porque sabem que passei por uma situação extrema”, conta.
Aos 33 anos, está agora a cumprir o terceiro ano de formação numa especialidade não hospitalar com horários mais regulares e onde conseguiu encontrar maior estabilidade. “Tive a sorte de ficar num sítio excelente, com bom ambiente profissional, em que as horas extra são compensadas e em que não há tanta pressão relativamente aos doentes”, diz. “Nos hospitais, temos vidas nas nossas mãos“.
João abandonou a Medicina e critica falta de preocupação com os internos
“Às vezes penso que poderia estar numa especialidade mais clínica — o que sempre quis — mas já aceitei que não irá acontecer”, confessa Francisca, que diz não ter ficado minimamente surpreendida com os resultados do inquérito levado a cabo pela Ordem dos Médicos e que identifica as três especialidades com maior nível de burnout: Anestesiologia (32,4%), seguida de Cirurgia Geral (29,7%) e Medicina Interna (28,9%).
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Já João Dias, viu o sonho de infância — o de ser médico — desmoronar-se durante o internato em Oncologia no IPO do Porto, onde começou a evidenciar sintomas de burnout. João estava esgotado, tinha uma carga horária excessiva mas acreditou que a situação iria melhorar quando se tornasse especialista. “Enquanto se é interno há a perspetiva de que é temporário, até acabar a formação”, diz ao Observador. Mas não seria assim. Em meados de 2021, e já a trabalhar como oncologista especialista, os sintomas exarcebaram-se, muito por causa do aumento exponencial do número de doentes que chegavam ao IPO, e cujas doenças oncológicas tinham ficado por diagnosticar ou tratar devido à pandemia de Covid-19.
“Há aspetos do sistema – a maioria dos quais são transversais a todo o SNS – que fazem com que quase toda a exigência caia sobre os profissionais, porque o sistema em si quer lavar as mãos de responsabilidade”, sublinha João Dias, que acabou por, ainda em 2021, abandonar a profissão — uma decisão rara entre a classe médica. “A certa altura, deixou de fazer sentido o desequilíbrio entre grau de competência que me era exigido e o reconhecimento que era dado, em termos financeiros, de qualidade de qualidade de vida”, recorda.
“Algumas pessoas escolhem desistir e viver com os problemas do sistema. Isso ajuda a evitar o burnout, mas impede a melhoria do sistema porque não coloca pressão para a mudança. Para cada médico em burnout, há um número enorme de outros que se vão mantendo funcionais à custa de mecanismos psicológicos de defesa que não são os mais desejáveis, desde comunicação agressiva, evicção [não aceitação] de responsabilidade acrescida e até transferência de responsabilidade para os mais novos”, sublinha o ex-oncologista, que acabou por emigrar e hoje trabalha na Alemanha.
João Dias defende que a formação médica “tem de ser mais humanizada”. “Muitos serviços veem a existência de internos como um direito absoluto do serviço, e não como uma responsabilidade e um compromisso com a formação e educação. Há pouca preocupação com os internos. A cultura do ‘se eu sofri, os mais novos também podem sofrer’ também deve ser extinta rapidamente, para que as pessoas se possam focar nos problemas do sistema que levam à perpetuação de práticas abusivas. Problemas de sistema resolvem-se mudando o sistema, e não obrigando as pessoas a adaptar-se a um sistema disfuncional com a retórica do ‘sempre foi assim’”, realça o ex-médico, que recomenda aos internos que se sindicalizem e que criem comissões de internos. “Assumir responsabilidades excessivas sozinho é meio caminho para a exaustão e até responsabilização judicial”, alerta.
“Comecei a sentir-me fisicamente mal, tinha dores de cabeça, falta de apetite, tinha medo de fazer os turnos”, diz Sandra Mendes
No caso da médica interna Sandra Mendes, o internato da especialidade de Medicina foi “uma montanha-russa”. No segundo ano da formação, em 2021, em plena pandemia, as dificuldades aumentaram: a médica fazia cada vez mais turnos noturnos (sem a devido folga compensatória), o que era justificado pela falta de especialistas no serviço do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos. “Como temos sempre um número de médicos abaixo do recomendado, é difícil que as chefias nos concedam as folgas porque precisam que passemos visita aos doentes”.
“Quando fazíamos noites, isso implicava que, na manhã seguinte, estivéssemos a fazer o trabalho normal“, conta a médica, detalhando que trabalhava das 8h30 às 16h30 e depois entrava às 21h desse mesmo dia, para fazer um turno de mais doze horas. “É o normal num interno e muito desgastante. Fazemos mais de duas noites a cada semana”, sublinha.
No segundo ano, as responsabilidades aumentaram e Sandra começou a ganhar mais autonomia, o que potenciou o burnout. “Fazíamos turnos de forma autónoma, na urgência interna, por exemplo, que é um trabalho muito exaustivo em que ficamos responsáveis por todos os doentes internados”, apenas com o apoio de um médico especialista, relembra. “Foi aí, ao fim de três meses, que procurei ajuda porque estava sobrecarregada”, conta Sandra Mendes.
“Comecei a sentir-me fisicamente mal, tinha dores de cabeça, falta de apetite, nauseada, tinha medo de fazer os turnos. Eram sintomas que refletiam o cansaço e ansiedade que estava a sentir”, recorda a médica, acrescentando que também sentiu que não seria capaz de cumprir as tarefas que lhe eram exigidas.
Sandra garante que, no Pedro Hispano, tem uma boa relação com os formadores e foi precisamente a tutora que lhe sugeriu que procurasse ajuda. “Fui a uma consulta de Psiquiatria e comecei o tratamento”, recorda. A médica recusou a baixa médica que foi recomendada pelo psiquiatra e acabou se afastar do hospital, usando duas semanas de férias — de modo a iniciar a recuperação. “Muitos colegas não querem procurar ajuda e acabam por ficar muito desamparados e frustrados.”
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Hoje, com 29 anos, Sandra Mendes continua a fazer formação no mesmo serviço, no Hospital de Matosinhos, mas, entretanto, conseguiu controlar melhor os sintomas, diz, para além de ter evoluído como profissional. No entanto, os “fatores externos não melhoraram”, lamenta. Ao contrário de Francisca, Sandra nunca ponderou mudar de especialidade. “Seria um fracasso pessoal, é difícil não terminar aquilo a que nos propusemos”, afirma.
Para a médica, os hospitais têm de ter capacidade formativa para receber internos, de modo a proporcionarem “uma formação de qualidade”. “Isso permitiria que os internos adquirissem autonomia de forma gradual”, realça. Outra alteração necessária, diz a médica, é a contratação de mais médicos para o SNS. “Os hospitais não podem estar dependentes dos internos para fazerem escalas de urgência, quer externa quer interna”. “É extremamente desgastante quer para nós quer para os especialistas”.
Para além disso, acrescenta, os internos não têm tempo para a produção de artigos científicos e relatórios, que deveriam ser realizados durante o tempo do internato, mas que, frequentemente, são feitos fora do horário de trabalho.