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Medo, preocupação, cautela, urgência ou sede de vingança? Em relação à reeleição de Donald Trump, o estado de espírito em Teerão divide-se. O primeiro mandato na Casa Branca mostrou que a política externa isolacionista do Presidente norte-americano termina no Irão, onde prefere exercer uma política de máxima pressão. Agora, Trump rodeia-se de “falcões” — nomes na sua administração com políticas firmemente anti-Irão e pró-Israel. O próprio Trump não é tão claro e durante a campanha chegou a dizer que quer que “o Irão seja bem-sucedido”. Perante a imprevisibilidade dos próximos quatro anos, o regime iraniano prepara-se.
Mas não é unânime que tipo de preparação deve ser. De um lado, está o executivo, mais moderado e disponível para o diálogo com o Ocidente. “O Irão não será demovido com ameaças, mas responde ao respeito”, escreveu Javad Zarif, conselheiro do Presidente Masoud Pezeshkian, no dia a seguir às eleições, apelando a Trump que cumprisse a promessa de ser “contra a guerra”. Do outro, está o círculo do ayatollah Ali Khamenei, o líder supremo. Os seus conselheiros também apelam à negociação, mas são menos tímidos e deixam ameaças de uma escalada se Washington decidir pressionar.
Além disso, o contexto regional da relação Washington-Teerão é radicalmente diferente do que era há quatro anos, uma vez que essa escalada já está em curso. Israel abriu frentes de guerra em Gaza e no Líbano, visando destruir o Hamas e o Hezbollah, grupos terroristas alinhados com o Irão. Israel e Irão também trocaram ataques diretos, embora mais contidos. Israel — a quem Trump já prometeu apoio — não cede nos seus seus objetivos. O Irão recusa deixar que Israel esmague o Hamas e o Hezbollah e se torne a potência regional. A relação entre Trump e Teerão terá de passar, inevitavelmente, por Telavive. Então, como mantém o Irão o seu desejo de diálogo com os EUA? “O regime iraniano está preso entre a espada e a parede“, argumenta Mohammed A. Salih, investigador sobre o Médio Oriente no Foreign Policy Research Institute.
Trump não é bem vindo, mas o Teerão não quer hostilidades abertas. Como se equilibram as diferentes visões?
A disponibilidade do Irão para negociar não surgiu com as eleições norte-americanas. Ali Akbar Velayati, um dos conselheiros mais próximos do ayatollah Ali Khamenei, já tinha afirmado que Teerão estava disponível para cooperar com “qualquer Estado ocidental que tratasse o Irão com respeito”. No dia a seguir às eleições, Zarif repetiu que o “respeito” era essencial para encetar negociações. Já o ministro dos Negócios Estrangeiros, Abbas Araghchi, dirigiu-se diretamente a Trump, pedindo “máxima sabedoria” em vez de “máxima pressão”.
Agora, vários responsáveis iranianos argumentam que a sólida vitória eleitoral de Trump lhe dá uma margem para negociar um acordo na região. O Irão deve aproveitar essa oportunidade para sinalizar novamente a sua disponibilidade para diálogo, aproveitando-a a seu favor, explica Alex Vatanka, diretor do programa do Irão no Middle East Institute (MEI) em Washington.
Os especialistas em política externa iraniana justificam esta postura com o facto de Teerão ter menos capacidades militares e económicas do que tinha em 2016. Reconstruir a sua rede de milícias regionais, as reservas de mísseis balísticos e o programa nuclear “exige fundos que o Irão não tem”, relata Vatanka ao Washington Post. Além disso, o Irão está a perder poder e influência na região, fruto dos ataques israelitas contra os grupos alinhados: Telavive afirma ter destruído quase totalmente as lideranças do Hezbollah, no Líbano, e do Hamas, na Faixa de Gaza.
O apoio e financiamento do chamado “Eixo da Resistência” configuram um desafio para a relação de Teerão com os Estados Unidos. “Os esforços diplomáticos atuais do Irão não estão orientados para a construção da paz”, resume Banafsheh Keynoush, investigadora no MEI. Ou seja, os políticos iranianos podem afirmar que não desejam confrontos, mas as palavras têm de ser seguidas de atos que as comprovem. É isso que está em cima da mesa em Teerão: decidir passos concretos que traduzam esta posição, relata Keynoush, citando pessoas próximas do governo iraniano.
Aqui, surge a primeira dicotomia em Teerão: o equilíbrio entre política externa e política interna. Para além da fragilidade económica e militar, o regime enfrenta ainda pressões internas devido à repressão dos direitos civis, especialmente das mulheres. Há ainda a questão da estrutura do próprio regime, que passa sempre pelo ayatollah Ali Khamenei. Ali Vaez, diretor do projeto sobre o Irão no think tank norte-americano Crisis Group, argumenta que, aos 86 anos, o líder supremo já não tem capacidade para lidar com várias crises em simultâneo. “A República Islâmica parece frágil, porque que as ameaças contra ela são grandes”, declara à CNN.
Ali Akbar Velayati, o mesmo conselheiro que se mostrava disponível para negociar com o Ocidente, afirmou não acreditar “na boa vontade dos Estados Unidos”. A única diferença entre Trump e Biden é o facto de o primeiro dizer “abertamente” o que o segundo diz “em voz baixa”, argumentou. Mas a inimizade entre Khamenei e Trump vai mais longe do que Velayati deixa prever. Isto porque, em 2020, Trump mandou matar o general Qassem Soleimani, próximo do ayatollah. O assassinato continua a ser uma ferida aberta para Khamenei, que poderá querer “acertar contas” com o ex-Presidente, de regresso à Casa Branca.
Aqui surge a segunda dicotomia. Por um lado, o regresso de Trump não é bem vindo. Por outro, Teerão não tem capacidade para entrar em confrontos abertos. Estas dimensões podem ser definidas de outra forma: aprender com o passado, preparar para o futuro. “Os iranianos concluíram, talvez não abertamente, que cometeram um erro durante o primeiro mandato de Trump. Não sabiam como lidar com ele, rejeitaram-no e isso tornou mais fácil para os israelitas, os conservadores, os falcões, o convencerem que a forma de ter um acordo era sancionar os iranianos até à morte”, afirma Trita Parsi, fundador do think tank Quincy Institute, ao Politico.
Ainda assim, Teerão volta a olhar para o outro lado do mundo e para a Casa Branca. E surge a possibilidade de atirar a responsabilidade pelo futuro do Médio Oriente para as mãos de Donald Trump. “Trump não foi sábio da última vez. Mas pode ter ganho experiência e seguir um caminho mais construtivo”, sugeriu Ali Larijani, outro conselheiro do ayatollah na semana passada. Ao Observador, Banafsheh Keynoush, confirma esta posição: “Se o Irão modera ou não a sua posição, isso depende dos progressos que fizer nas negociações com os Estados Unidos”.
Os “falcões” do Irão, a política de “máxima pressão” e a imprevisibilidade de Donald Trump
Os pedidos iranianos de “respeito”, “diálogo” e “sabedoria” foram interpretados com cinismo por membros da equipa Trump. “É óbvio que eles estão assustados”, afirmou um membro da primeira administração Trump ao Politico, destacando algo que o Irão continua a negar: um alegado plano da Guarda Revolucionária Iraniana para matar Donald Trump durante a campanha eleitoral, a par de outras interferências nas eleições norte-americanas. “Nós lembramo-nos de coisas como tentarem matar-nos. Não interessa o quão simpáticos fingem ser nos círculos diplomáticos“, acrescentou a fonte anónima.
Brian Hook, antigo enviado de Trump para o Irão, foi mais decisivo e garantiu que a política de “máxima pressão” será para manter. Esta incluiu a retirada do Plano de Ação Conjunto (conhecido por P5+1, que envolvia EUA, União Europeia e Irão), que limitava o programa de energia nuclear de Teerão, a que se somou a imposição de pesadas sanções e a ordem para matar o general Qassem Soleimani. “Trump compreende que o principal responsável pela instabilidade no Médio Oriente é o regime iraniano”, afirmou Hook, em entrevista com a CNN, dois dias depois das eleições. Ainda assim, garantiu o objetivo não é uma “mudança de regime”.
Pela sua própria voz, Trump afirmou durante a campanha eleitoral que queria ver o Irão ser bem-sucedido. “Só não quero que tenham uma arma nuclear”, declarou no podcast PBD. Já depois da sua reeleição, Elon Musk — que se tem assumido como braço direito do Presidente eleito — terá estado reunido com o embaixador iraniano junto das Nações Unidas.
Contudo, o que Donald Trump quer e o que a sua administração — onde estão conservadores, “falcões” e amigos de Israel — quer, pode não ser exatamente a mesma coisa. De Marco Rubio (nomeado Secretário de Estado), a Pete Hegseth (com a pasta da Defesa), passando por Mike Waltz (conselheiro de segurança nacional), as acusações contra Teerão repetem-se. “Não me parece que ninguém na equipa de segurança nacional de Trump partilhe o seu objetivo de alcançar um acordo mutuamente benéfico com o Irão”, argumenta Ali Vaez.
“Trump pode dizer que está disposto a negociar, mas também parece pronto a afastar-se disso e a explorar outros caminhos, se lhe parecer o rumo certo para a sua administração”, considerou Keynoush, questionada pelo Observador sobre o peso dos nomes escolhidos por Trump.
A “máxima pressão” que continua a ser posta em cima da mesa é uma condição inaceitável para o Irão: caso Washington decida pressionar o Irão, Teerão não vai negociar e escalar o conflito, argumentam especialistas. O que acontece quando uma força imparável encontra um objeto inamovível? Teerão recorre a uma velha ameaça: o nuclear.
O Irão quer armas nucleares? Executivo diz que não, mas o ayatollah não se compromete
Atualmente, uma fatwa — lei religiosa — imposta pelo ayatollah em 2003, impede o Irão de ter armas nucleares. Mas não impede programas nucleares ou a alteração da doutrina, tal como avisou o conselheiro Kamal Kharazi no início deste mês: “Se a sobrevivência estiver ameaçada, podemos reconsiderar a nossa política nuclear“, avisou. Quase 40 membros do parlamento iraniano já apoiaram publicamente que a doutrina nuclear seja revista.
Mas o executivo liderado por Masoud Pezeshkian, que entrou em funções no início deste ano, tem uma posição diferente no que toca à doutrina nuclear. O seu ministro dos Negócios Estrangeiros continua a garantir que o Irão não tem qualquer intenção de desenvolver armas nucleares. Esta semana, depois de uma visita ao Irão, a Agência Internacional de Energia Atómica confirmou que Teerão começou a limitar o seu abastecimento de urânio enriquecido, interpretado como mais uma concessão do governo.
Banafsheh Keynoush valoriza o peso do Presidente Pezeshkian: “Ele é importante, uma vez que a sua preferência é a de moderar a voz do Irão e ser paciente face a parceiros hostis. Como Presidente, a sua mensagem oferece oportunidades para Teerão de se aproximar [dos desafios] de uma nova forma”, argumenta ao Observador.
Assim, cria-se um braço de ferro entre o governo — mais moderado e disponível para o diálogo — e o círculo do ayatollah — com posições mais críticas dos Estados Unidos –, que, em último caso, é o único que tem o poder para alterar a doutrina nuclear iraniana. “O padrão no Irão é que governos pouco alinhados com Khamenei enfrentaram sérias crises de política externa”, aponta Mohammad Mazhari, cientista político e antigo jornalista em Teerão.
Perante esta realidade, o “trunfo” nuclear que os conselheiros de Khamenei apregoaram parece pouco seguro. Os Estados Unidos, por seu lado, podem ter uma opção alternativa para lidar com o Irão, sem “sujar as mãos”: Israel.
“Prendas” e “proxys”. Telavive a meio caminho entre Washington e Teerão
Relativamente ao conflito no Médio Oriente, há algumas certezas: Donald Trump declarou apoio inabalável a Israel; Israel quer acabar com a esfera de influência do Irão; o Irão continua a apoiar o Hezbollah e o Hamas e a manter de pé o “Eixo da Resistência”. Os especialistas notam que os Estados Unidos podem utilizar Israel para atacar o Irão de forma indireta: Washington entrega armas a Telavive para legítima defesa — Telavive usa-as contra Teerão.
“Não ficaria surpreendida se a administração Trump armasse Israel. Trump aprecia ataque militares, mas tem uma aversão a atacar diretamente o Irão”, resume Kori Schake, antiga funcionário do Departamento de Estado e de Defesa, em entrevista à Foreign Policy.
Outra opção é isto acontecer ainda antes da tomada de posse de Trump, a 20 de janeiro. “Israel pressiona o Irão e o ‘Eixo da Resistência’ para os enfraquecer, numa escala de tensão acentuada. E depois Trump toma posse e fica com os créditos como pacificador”, sugere Ali Vaez. A possibilidade de uma “prenda” israelita para a tomada de posse já tinha sido avançada pelo Washington Post. Na altura, esta teria a forma de um cessar-fogo no Líbano, nos moldes da resolução 1701 do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Mas fontes israelitas avançavam que, se o fim da frente do Líbano não fosse possível através do diálogo, aconteceria através da escalada.
A emissão de um mandado internacional de captura contra Benjamin Netanyahu pelo Tribunal Penal Internacional, esta quinta-feira, pode acelerar a segunda possibilidade. Não só porque contribui para o isolamento de Israel face aos membros da comunidade internacional, que ratificaram o Estatuto de Roma, mas porque cria uma proximidade ainda maior com os Estados Unidos e a futura administração Trump — que rapidamente condenaram a decisão de Haia.
Perante o apoio inabalável do futuro executivo norte-americano a Israel, são ainda mais compreensíveis o “medo”, a “preocupação” e a “cautela” de Teerão. Os especialistas são unânimes: a prioridade do Irão é a sobrevivência do regime. Mas Masoud Pezeskhian tem dito que quer mais para a região, a começar pela cooperação, pela paz e pela não proliferação nuclear. A sua disponibilidade para o diálogo com o Ocidente também não é uma coincidência. “Teerão precisa de Washington para viabilizar estes processos e convencer Israel a alinhar“, explica Banafsheh Keynoush, notando que o plano seria o mesmo com Biden ou Trump na Casa Branca, embora fosse mais fácil com o primeiro. “Mas continua a ser um objetivo importante”, remata a investigadora.
Com tantas certezas, ficam por responder três questões: até onde o líder supremo do Irão se revê neste plano? Qual vai ser efetivamente a política norte-americana para lidar com o Irão? E, mais importante do que todas as outras, como resume Alex Vatanka: “Estes sentimentos vão sobreviver à tomada de posse de Donald Trump?”.