Lá fora, um perímetro policial montado por causa do julgamento do alegado pirata informático Rui Pinto. Lá dentro, numa das salas mais pequenas do terceiro piso do Campus de Justiça, em Lisboa, apenas quatro lugares para o público, por causa da pandemia. Foi assim, esta terça-feira, que arrancou a primeira sessão do julgamento do grupo de oito, que agora se resume a dois, portugueses acusados de integrarem as fileiras do autoproclamado Estado Islâmico.
Lado a lado, Rómulo Costa, 40 anos, e Cassimo Turé, 45, os arguidos que restam neste processo, não olharam um para o outro nem trocaram qualquer palavra. O segundo limitou-se a dizer ao tribunal que falaria no final do julgamento, o primeiro levantou-se, pronto para contar tudo e contestar a acusação do Ministério Público. Mas, por várias vezes, ouviu o juiz dizer-lhe para não “jogar com as palavras”, para ser mais “direto” e não esquecer o que já tinha argumentado em fase de instrução. Rómulo Costa tentou não sair derrubado, sempre calmo e de explicações com palavras cuidadas, mesmo quando muitas delas não tinham “qualquer lógica”, como chegou a concluir o magistrado. E com a defesa a argumentar que as provas que constam no processo remontam a 2013.
O português, que, à semelhança dos restantes, é acusado de um crime de adesão e apoio a organizações terroristas, um de recrutamento para organizações terroristas e outro de financiamento para terrorismo, vive há mais de 20 anos em Inglaterra, onde, segundo disse em tribunal, trabalhava, até ser preso, como “freelance nas áreas de administração, educação, engenharia e artes”. O juiz tentou que concretizasse a sua atividade, mas o arguido apenas explicou que fazia “várias atividades laborais nessas áreas” e que na da educação “era professor e tutor no ensino secundário e universitário”.
Para o Ministério Público, porém, tanto ele, como Cassimo, a partir de Londres, ajudavam os restantes seis arguidos (os irmãos de Rómulo — Edgar e Ceso —, o irmão de Cassimo — Sadjo —, Nero Saraiva, Fábio Poças e Sandro Marques) a chegarem à Síria e a manterem-se por lá, com documentos, dinheiro e até apoio moral. Davam, por isso, apoio logístico à organização terrorista, o Daesh. O advogado de Rómulo, Lopes Guerreiro, recusa a acusação “bárbara” e diz que o seu cliente se limitou a ter conversas com o irmão, também acusado, para saber como estava. O Observador mostra-lhe essas conversas, como elas foram interpretadas pelo Ministério Público e como agora o arguido as justifica em sete pontos.
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O combate dos 40 contra 500 na Síria… ou na Tanzânia?
Numa das conversas escutada pelas autoridades entre Rómulo Costa e o irmão Edgar — um dos arguidos declarados contumaz, por estar em parte incerta –, este contava-lhe como o outro irmão de ambos, Celso Costa, e o também português Nero Saraiva, tinham participado numa batalha que o Ministério Público acredita ter sido na Síria.
— A canalha eram quinhentos os outros eram quarenta? Ou o contrário?, perguntou Rómulo
— Não, o Stone era só quarenta, respondeu Edgar
A conversa continuou, com Rómulo Costa a advertir mesmo que os inimigos não seriam apenas 500. Mas, em tribunal, o Rómulo que falava nesta conversa parecia outro. Quando o juiz Francisco Coimbra lhe perguntou que batalha era esta e onde decorria, o arguido respondeu que se limitou ” a seguir a conversa”. “Não sabia se era algo factual, se era algo fictício”, respondeu.
“O senhor Edgar relata-lhe uma batalha em determinado lugar, onde estavam 40 pessoas contra os 500 combatentes e o senhor em nenhum momento diz não estar a perceber”, insistiu o juiz.
Rómulo acabou por dizer que não sabia a localização exata dos irmãos, que a esta altura apenas sabia que tinham partido para a Tanzânia. “Isso eram conversas que os meus irmãos tinham e que eu dava uma opinião ou outra, nós não falávamos muito tempo e desde 2009/2010 que não estou com os meus eles”, justificou.
O comentário no Facebook de Fábio Poças que não foi ele que fez
Rómulo Costa aproveitou para dizer que desconhecia também o coarguido Fábio Poças, também de paradeiro desconhecido. Que até podia ser amigo dos irmãos deles, mas que nunca o tinha visto ou falado com ele. O juiz aproveitou a oportunidade para lhe mostrar, então, um comentário que Rómulo terá feito numa publicação do Facebook de Fábio.
Segundo o Ministério Público, Fábio tinha naquela rede social um perfil em que se identificava como Abdut Rahman AI Andaius, em que referia viver em Alepo, na Síria, e ia atualizando a informação do que ali fazia. A certa altura, no campo profissional, colocou a empresa Dawlah Islamyah fi Iqraq wa Sham, que traduzido significa “soldado de Infantaria do Estado Islâmico do Iraque e da Síria”. Chegou mesmo, em 2014, a exibir uma imagem sua com uma arma, uma kalashnikov, na mão. Nesta página, diz o Ministério Público, Rómulo, através da sua página RomyFansony, comentou por três vezes as suas publicações: “ai nõo, porcos a caírem all day everyday, braaaaaaatatatataaaa”, leu o juiz.
Rómulo Costa, mais uma vez, abanou a cabeça para recusar. “Não é verdade! Não sei se pode haver um perito informativo a confirmar, mas essa página não era minha”, respondeu, para depois lembrar que, com as atualizações do Facebook, seria difícil prová-lo. “A página Romny Fansony pertence a Romulo Rodrigues e se eu fizesse um comentário era assim que ia aparecer. Esta frase não fui eu que a escrevi”, garantiu, apontando para a possibilidade de ser trabalho de um pirata informático.
— Tem alguma suspeita?, perguntou o juiz.
— Não, mas qualquer pessoa pode entrar numa página, respondeu.
As letras das músicas que ele não escreveu. E os porcos
Além das escutas, as autoridades apreenderam a Rómulo Costa, no momento da sua detenção, vários documentos em papel e muitos outros em formato digital que estarão relacionados com a organização terroristas. Também aqui, Rómulo tem explicação. São “documentos da tese” que estava a fazer, “que tem a ver com vários tipos de fraude, nomeadamente o crime cibernético e contraterrorismo”, justificou.
O juiz ouviu, mas quis saber também das letras das músicas apreendidas. É que a Polícia Judiciária encontrou um verdadeiro manancial de textos que seriam letras de música, assim como capas de filmes ficcionados sobre a Jihad, que levaram as autoridades a concluírem que queria mesmo fazer um filme sobre a vida dos seus irmãos na Síria.
Rómulo começou por dizer que não fez essas letras sozinhas, que se limitou “a fazer a parte instrumental”, alegou. Mas o juiz acabou por lembrá-lo do que disse na fase de instrução: que as letras das músicas eram uma forma de expressão. O arguido lá disse que sim, que tinha participado nelas, mas que o significado do seu conteúdo em nada tinha a ver com a interpretação feita pelo Ministério Público.
— Não vale a pena estar a jogar com as palavras. Ou o senhor sabe ou não vale a pena, lembrou-lhe o juiz.
Em várias dessas capas hipotéticas aparece no título “Atentado III”. Mas, segundo Rómulo, toda essa coletânea fictícia que imaginou “é uma obra de arte no que diz respeito a música baseada em ciência”. “Que ciência?”, perguntou-lhe o juiz. “De desenvolvimento pessoal. Todo este projeto é assente no desenvolvimento do ser humano. Tem a fase astral, fase biológica e fase física”.
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Francisco Coimbra perguntou-lhe então o que significam “Talibã” e “Jihad”, palavras que também surgem na capa do suposto filme “Atentado III”. “O regime Talibã é uma metáfora e Jihad significa desenvolvimento pessoal, não tem nada a ver com guerra santa”, garantiu.
Não convencido, o magistrado quis também saber porque se refere tantas vezes nas suas letras aos “porcos”, que o Ministério Público interpreta como sendo os inimigos, uma expressão normalmente usada em textos de propaganda das organizações terroristas de matriz islamista, como a AI-Qaeda ou o Estado Islâmico. “Todas essas músicas são em coautoria”, escudou-se Rómulo, sem conseguir dar outra resposta.
O passaporte que ele perdeu e foi usado por um irmão para entrar na Síria
Rómulo Costa estava em Inglaterra quando o seu passaporte passou a fronteira da Turquia com a Síria. Foi procurado, à data, pelos serviços secretos britânicos e chegou a ser interrogado várias vezes sobre as suas ligações ao Daesh, mas nunca chegou a ficar preso. Só em 2018, quando decidiu vir a Portugal para tentar trazer os seus sobrinhos do campo de refugiados na Síria, já depois de ter perdido o contacto com os irmãos, é que foi detido pela Polícia Judiciária.
Segundo a acusação, esse passaporte foi emprestado por Rómulo ao irmão Celso. Uma forma de lhe permitir entrar naquele país para combater ao serviço do Estado Islâmico. Mas o arguido tem outra explicação. Diz que, quando veio a Portugal pela última vez, dez anos antes, de facto renovou o passaporte, mas chegou a achar que o tinha perdido. “Um dia, os meus pais telefonaram-me a dizer para não me preocupar, porque estava em casa deles e eu esqueci”, justificou. Só soube depois pelos serviços secretos britânicos que aquele documento tinha sido usado por um irmão.
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O amigo na Tanzânia que precisava de ajuda… para casar
Em setembro de 2013, Rómulo Costa foi também escutado numa outra conversa telefónica com o irmão, que pede ajuda para Ahsan Afi Iqbai, que vivia em Londres e que também foi investigado pelas autoridades britânicas. Iqbai foi preso na Tanzânia quando tentava fazer o percurso para chegar à Síria, segundo o Ministério Público.
Nesse telefonema, Rómulo diz que são precisos “5 paus” e que não os tem. Pode, sim, conseguir mil ou duas mil libras. Ao juiz, o arguido disse que foi o irmão que lhe pediu ajuda para o amigo que queria casar e que, como era menor, não conseguia. E precisava de alguém que o ajudasse a tratar desse processo.
Só não soube justificar por que é que a seguir avisou o irmão que não bastava ir lá com “babarugas e começar a a distribuir chocolates”. O juiz quis saber o que significavam estas palavras. “Não basta ir para lá com conversas e partir para a ignorância.”, respondeu.
— Sabe o que é isso em Portugal? Distribuir chocolates é distribuir dinheiro, disse o juiz.
— Sim, a procuradora disse-me o mesmo, mas não é esse o significado, respondeu o arguido.
E o Gordo, quem é?
Nas várias conversas tidas com o irmão Edgar, fala-se muitas vezes do “Gordo”, que estaria com Celso no centro de operações do Daesh. Em tribunal, Rómulo garantiu não saber quem era esta pessoa, seria alguém conhecido dos seus irmãos. Mas, para o Ministério Público, Gordo era Nero Saraiva, que se encontra preso na Síria e que chegou a dar uma entrevista a contar como integrou o Daesh.
Rómulo também descarta qualquer ligação a este arguido. “Nunca estive com Nero Saraiva. Sei quem ele é. Que viveu em Inglaterra, mas nunca falei com ele”, disse.
O juiz ainda confrontou o arguido com uma escuta em que Nero pergunta a Celso se “Binas vem”. Rei Binas é uma das alcunhas de Rómulo. Quando Celso lhe responde que não, Nero estranha: “Ainda não”. Para a acusação, a pergunta era para saber quando é Rómulo Costa iria para a Síria juntar-se aos irmãos. E ao combate. O arguido nega: “Foram palavras deles”, argumentou.
O comentário que agora é imaturo
Uma outra pergunta do tribunal relacionou-se com uma outra conversa tida ao telefone com o irmão Edgar, em que também interveio Celso, no final, em maio de 2013. Celso comentou o homicídio de um militar britânico em Woolwitch, Londres, que foi reivindicado por uma organização terrorista, e Rómulo responde-lhe: “Caiu e hão-de cair mais”.
— Peço desculpa, foi um comentário imaturo e irresponsável, disse Rómulo em tribunal.
— Em 2013, que idade é que tinha? O que parece daqui é que apoia este tipo de coisas”, rematou.
Em 2013, Rómulo Costa tinha 33 anos.
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