O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, está satisfeito com o resultado da votação sobre a eutanásia no Parlamento, mas lamenta que não tenha havido um verdadeiro debate público sobre o tema. “Na semana a seguir a Alcochete, discutiu-se mais o Sporting do que nos últimos cinco anos a eutanásia, portanto está tudo dito quando assim é”, afirma, em entrevista ao Observador no dia a seguir à votação parlamentar.
Miguel Guimarães critica ainda o “controlo” que o Ministério das Finanças exerce sobre todas as áreas do Governo. “O Ministério da Saúde, neste momento, desapareceu”, garante, sublinhando que “é evidente que quem neste momento manda na Saúde e quem manda nas outras áreas de intervenção do Governo português, de facto, são as Finanças”.
O bastonário dos médicos diz que Adalberto Campos Fernandes deve impôr-se a Mário Centeno, como António Arnaut fez com Vítor Constâncio quando fundou o SNS. “O que eu espero do ministro da Saúde não é que ele defenda os médicos, os enfermeiros ou os outros profissionais de saúde. É que o ministro da Saúde defenda os portugueses”, destaca.
Ficou satisfeito com o resultado da votação sobre a eutanásia no Parlamento?
Não é uma questão de satisfação ou de não satisfação com o resultado da votação. O Parlamento resolveu discutir esta questão, que foi decidida pela maioria dos votos, sendo que a diferença entre as pessoas que não estavam a favor da eutanásia e aquelas que estavam a favor foi muito pequena. Penso que foi uma boa decisão, honestamente. O debate foi muito curto, muito pequeno, uma vergonha. Na semana a seguir a Alcochete, discutiu-se mais o Sporting do que nos últimos cinco anos a eutanásia, portanto está tudo dito quando assim é. Ontem, todas as televisões estavam a falar da eutanásia depois de ser votada, o que não aconteceu antes de ser votada. Tudo isto tem contornos que têm a ver também com a comunicação social, com a importância relativa que as pessoas dão aos assuntos.
Devia, por exemplo, ter havido um referendo sobre o assunto, para haver mais discussão pública?
Não, não estou a falar em referendo. O que digo, e temos de entender isto, é que as pessoas que defendem a eutanásia e as pessoas que estão contra a eutanásia querem todas o melhor para os doentes. Não há ninguém ali que queira prejudicar as pessoas. Há pessoas que acreditam que a eutanásia seria uma opção para os doentes em final de vida, como um direito e uma liberdade individual, e há pessoas que não acreditam porque acham que as opções que existem para as pessoas que estão em determinado tipo de situações não estão disponíveis – e não estou a falar só dos cuidados paliativos. Estou a falar também do testamento vital, das diretivas antecipadas de vontade, que as pessoas não têm informação nenhuma. Temos inscritos no testamento vital 20 mil portugueses. Até é ridículo dizer.
As pessoas não estão informadas sobre o que existe disponível?
Não estão informadas. Nós não damos informação às pessoas sobre questões que podem ser essenciais para a sua vida. Esta é uma matéria que acho que é preocupante. Depois, se porventura a eutanásia fosse legalizada isto ia ter implicações fortíssimas naquilo que é o edifício jurídico e o edifício ético da própria medicina.
Seria preciso alterar o código deontológico dos médicos para permitir a eutanásia, não era?
Nunca seria alterado o código deontológico. A lei, em si, tinha de mudar. Toda a lei portuguesa proíbe que se mate. Seja a pedido seja sem ser a pedido. Depois, distinguir o pedido do sem ser a pedido é complicado. Vamos ser objetivos. O mais difícil neste tipo de questões é a regulação. Temos uma regulação que deixa muito a desejar. Basta pensarmos, só na saúde, nos acessos aos cuidados de saúde, nas listas de espera, nos tempos máximos de resposta garantidos, por aí fora. Basta olhar para o último relatório do Tribunal de Contas sobre a saúde para perceber que a regulação em Portugal funciona muito mal, e relativamente à questão da eutanásia seguramente não ia funcionar muito bem. O que acontece nos países que já têm legalizada a eutanásia, como é o caso da Holanda e da Bélgica, possivelmente ia acontecer em Portugal. Não iria ser muito diferente.
Concorda com o argumento da “rampa deslizante”?
Não lhe chamaria “rampa deslizante”, porque essa expressão está associada a um conceito que já está demasiadamente caracterizado como sendo uma posição radicalmente contra. Digo é que é extraordinariamente difícil fazer a regulação, que quem quer este processo deve ser responsabilizado diretamente pela regulação das coisas, e depois isto não ficar um bocado à obra do acaso. Se porventura existisse legalização da eutanásia, como é que ia ser organizado o processo das pessoas que iam ser eutanasiadas? Não era no corredor. Há processos mais ou menos complicados, que têm de ser seguidos. Pode acontecer haver vários doentes ao mesmo tempo. Estamos a falar de médicos, enfermeiros, profissionais de saúde que não estão apenas ligados diretamente à questão da eutanásia, têm a sua vida normal. Operam doentes, dão apoio a doentes internados, etc. No fundo, a eutanásia ia ser incluída naquilo que é o pacote global da saúde.
Era mais uma oferta do Serviço Nacional de Saúde.
Sim, mais uma oferta, mais listas de espera. Neste momento há uma coisa em Portugal que me faz confusão e que a mim me custa muito a aceitar: os tempos máximos de resposta garantidos para doentes com patologias neoplásicas. Estes doentes, se forem tratados atempadamente podem ficar curados — repito, curados — e se não forem tratados atempadamente podem ter uma doença metastizada, ou seja que se espalha pelo corpo, e que vão acabar como doentes terminais, portanto, potenciais candidatos, se houvesse eutanásia, à eutanásia. Preocupa-me muito o acesso aos cuidados de saúde. Muito, mesmo. Acho que isto devia preocupar todos os portugueses, em especial quem tem poder político.
Portanto, o debate estava descentrado, na sua opinião?
Acho, para já, que este não era o momento certo para debater isto. Eu não estou aqui a contrariar os argumentos de quem defende. Como comecei por dizer, acho que toda a gente quer o melhor para os doentes. Não há ninguém que não queira. Às vezes existem vias diferentes. Em Portugal temos neste momento grandes problemas, o que aliás motivou várias dezenas de instituições a fazer a Convenção Nacional da Saúde, porque estamos preocupados com várias situações. Uma das situações principais são as desigualdades sociais em saúde. Neste momento existem grandes desigualdades sociais em saúde. Os últimos relatórios da OCDE sobre o estado da saúde em Portugal revelaram que cerca de 10% dos portugueses não faziam os tratamentos que lhes eram prescritos por insuficiência económica. Isto quer dizer que há muita gente em Portugal que provavelmente vai morrer sem ter acesso, sequer, aos profissionais de saúde que devia ter.
Ou seja, devíamos estar a debater o acesso aos serviços de saúde antes de debater a eutanásia?
Esta deve ser a nossa preocupação central. Percebo que isto não é o contraponto à eutanásia. Nada é o contraponto à eutanásia, a eutanásia é uma forma diferente de pensar, é uma opção que as pessoas querem instituir, como já acontece em alguns outros países. Temos de pensar friamente nestas questões e pensarmos no interesse maior do país — e estamos a falar na mesma em direitos, liberdades e garantias, repare que o direito à saúde é um direito que está consagrado na Carta dos Direitos Humanos, logo à cabeça, e as pessoas de vez em quando esquecem-se disso.
Concordaria com um modelo de suicídio assistido praticado por outros profissionais que não médicos, como acontece noutros países?
Deixe-me só dizer uma coisa que é importante. Eu nunca exprimi a minha opinião pessoal enquanto Miguel Guimarães, porque neste momento sou bastonário da Ordem dos Médicos, e tenho o dever — aliás, a obrigação, mais do que o dever — de defender o código deontológico. Para ser bastonário da Ordem dos Médicos, como é evidente, estou sujeito a um juramento de defender aquilo que são os princípios éticos, aquilo que são os deveres dos médicos, etc. Um dos artigos proíbe os médicos de praticarem distanásia, que a maioria das pessoas não percebe bem o que é que é, conhecem mais como encarniçamento terapêutico, mas não percebem bem o limite entre as coisas. O código deontológico é isso que eu tenho de defender neste momento.
Mas é nesse sentido, enquanto bastonário da Ordem dos Médicos, que lhe pergunto se concordaria com um modelo em que o suicídio assistido não fossem médicos ou profissionais de saúde?
A questão aqui não é ser praticado por médicos ou não-médicos. Claro que toda a gente, em todo o lado, tenta que sejam os médicos ou os enfermeiros, ou seja, que sejam profissionais de saúde, a praticar os atos, seja na ajuda ao suicídio assistido seja na ajuda à eutanásia. O suicídio assistido segue os mesmos princípios da eutanásia: a pessoa dizer que quer morrer e pedir ajuda para morrer. Só que está em condições de ser ela própria a suicidar-se, chamemos-lhe assim. Mas alguém tem de prescrever o tratamento para ela se suicidar e alguém tem de tornar aquele tratamento disponível à pessoa.
Um profissional de saúde.
Sim, e mesmo nessas empresas privadas poderá haver ou não médicos envolvidos, confesso que não conheço bem a realidade. Uma das coisas que foram pouco discutidas neste debate — eu cheguei a falar um bocadinho nisso, mas não estive demasiado envolvido nesta matéria além de algumas posições cirúrgicas — foram os cuidados sociais. Ouvi falar muito dos cuidados paliativos, de consentimento informado, de diretivas antecipadas de vontade. Não é só isso que está em causa. Também está em causa aquilo que existia há uns anos e que era característico em Portugal, que era a existência de um núcleo familiar, dos amigos, dos vizinhos, das pessoas que cuidavam umas das outras. Havia um conforto. Quando as pessoas estavam numa situação já mais terminal, numa situação mais difícil, o sofrimento físico era aliviado pelos profissionais de saúde e o sofrimento psicológico era mitigado e aliviado pelas pessoas de quem nós gostamos, que nos davam conforto, que nos davam um abraço, que nos seguravam na mão, que nos ouviam durante meia-hora ou uma hora.
E isso perdeu-se?
Agora o que está a acontecer é uma desgraça e mais uma vez vejo muito pouca preocupação de quem tem o poder de legislar. Cerca de 60% dos idosos nos hospitais estão, entre aspas, abandonados. Não aparece lá família, não aparece lá ninguém. Estão entregues aos profissionais de saúde. Os profissionais de saúde, por seu lado, andam sempre a correr de um lado para o outro. Não têm um doente, estão na urgência, vão ao bloco operatório, estão na consulta, têm vários doentes no internamento para ver. Os próprios cuidados paliativos não existem para uma grande quantidade de pessoas.
As últimas notícias davam conta de que há 70 mil doentes sem acesso aos cuidados paliativos.
Sim, faltam. Na prática, chegam a 15% da população. 85% da população não tem acesso a cuidados paliativos. Mas os próprios cuidados paliativos têm especificidades próprias, têm algumas competências e treino próprios, mas não substituem a família nem os amigos.
Qual deve ser o caminho então?
O caminho é as pessoas terem mais apoio nas fases terminais, não é deixá-las completamente abandonadas. Não falo dos profissionais de saúde. A função dos profissionais de saúde é, obviamente, acompanhar as pessoas, mas não estão permanentemente com as pessoas, estão com várias. Quando pensamos numa pessoa que está numa fase mais difícil, que precisa de mais apoio, que precisa de desabafar, que precisa de conversar e desabafar, precisa de explicar aquilo que lhe vai na alma, de dizer até eventualmente que quer morrer ou outra coisa qualquer… É preciso alguém que fale com as pessoas, que esteja ali, que vá dando apoio permanente. Este núcleo, antigamente, era constituído basicamente pela família, pelos amigos, pelos chamados cuidadores informais. Isto está a desaparecer. As pessoas vão para os hospitais por uma infeção respiratória. Depois estão lá, não aparece a família, quando podem ter alta hospitalar é difícil contactar quem vai tomar conta da pessoa. O que está a acontecer neste momento nesta área devia ser um grande fator de preocupação. Isso é o grande apoio de que as pessoas precisam.
O que é que o Serviço Nacional de Saúde pode fazer por essas pessoas, e pelas pessoas que estão em sofrimento nas fases terminais, então? A eutanásia não pode ser uma das opções a estudar?
Não, a eutanásia não me parece que seja uma solução e foi agora recusada pelos deputados na Assembleia da República, por maioria, ainda que curta. O que o SNS pode fazer é melhorar o acesso aos cuidados de saúde, em primeiro lugar. Depois, dar condições para que quer os hospitais quer os cuidados de saúde primários possam não só ter as condições adequadas para o exercício da medicina e da enfermagem, para que os próprios profissionais possam ter mais tempo para estar com os doentes. Estou a falar da parte da saúde. Acho que isto tem a ver também com a parte social. Estava a falar do cuidador informal, da família, etc. Temos de ver isto em dois níveis diferentes, e a parte social e a saúde juntam-se neste campo.
É possível os profissionais de saúde terem mais tempo para estar com os doentes?
Vou dar-lhe um exemplo. Uma das coisas que tenho contestado desde o início do meu mandato e que espero concretizar dentro de pouco tempo é que sejam definidos os tempos padrão de consulta para a marcação das consultas dos doentes. Neste momento, a maior parte dos médicos está a ver demasiados doentes em pouco tempo. Se for a um hospital e pedir acesso às consultas que um médico tem marcadas para aquele dia, vai ver que há vários doentes marcados à mesma hora. Isto é transversal ao país todo. Quer dizer que as pessoas estão com os doentes cinco minutos, sete minutos, oito minutos… Isto é complicado. Não esta a medicina que os nossos doentes querem. Os nossos doentes querem ter mais tempo para falar. Quando vai ao médico, não é só a queixa que o leva lá. O médico tem de conversar com o doente, tem de o ouvir, tem de começar por ouvir a história dele, onde vive, se tem filhos, se a filha casou, se gosta de bolos… Tem de criar empatia com o doente para o doente confiar no médico, e o doente já lhe vai contar as queixas de forma diferente. Cria-se ali uma relação de confiança.
Isso é sinal de que há falta de médicos no SNS?
Estou a dizer que no Serviço Nacional de Saúde nós precisamos de melhorar a capacidade da resposta e a qualidade da resposta. Isto é absolutamente essencial. Da parte social, obviamente é preciso mais apoio social. Os cuidadores informais são pessoas que não são médicos nem enfermeiros mas que sabem cuidar das pessoas, e que fazem as pessoas pensar menos em morrer e mais em viver, e isso é que é importante.
Mas nesse exemplo concreto das consultas marcadas para a mesma hora, porque é que isso acontece?
Porque há falta de médicos no Serviço Nacional de Saúde. Não há falta de médicos, há falta de muitos médicos. No mínimo, faltam 5.500 médicos no Serviço Nacional de Saúde.
Há a eterna questão de se faltam médicos ou se estão mal distribuídos…
São questões diferentes, embora entrem em contacto uma com a outra. Se olhar para o Serviço Nacional de Saúde como um todo, tem neste momento cerca de 18 mil especialista e cerca de 10 mil internos. Mais coisa menos coisa. Os especialistas são aqueles que têm autonomia para o exercício da medicina, que podem assegurar blocos operatórios, que podem ser responsáveis por serviços de urgência, e por aí em diante. Os internos são os médicos que estão em formação, embora trabalhem imenso no Serviço Nacional de Saúde, é bom que se diga. Sem eles o SNS caía como um castelo de cartas, porque eles fazem muito trabalho. Estão a aprender e estão a trabalhar. 18 mil especialistas é um número muito baixo para aquilo que são as necessidades dos portugueses. Quando se diz que o SNS é um serviço nacional para todos os portugueses, universal, tendencialmente gratuito e em condições de igualdade, em que de facto se manifesta de forma clara aquilo que é a solidariedade de um povo — quem ganha menos paga menos, mas na altura de ter acesso aos cuidados de saúde, tem em condições de igualdade –, está a dizer-se que o nosso SNS, diferente do de toda a Europa central, é um serviço de saúde dependente do Estado, público.
E os médicos não chegam.
Para 10 milhões de portugueses, temos muito poucos médicos no SNS e não conseguimos dar resposta às necessidades dos portugueses. A prova disto é que neste momento mais de 35% dos gastos em saúde saem diretamente do bolso dos portugueses. Já são além do Orçamento do Estado. Além de nós pagarmos os nossos impostos e termos direito à saúde, muitos de nós já têm um segurinho de saúde ou vai ao médico e paga diretamente com o cartão de crédito, ou em dinheiro, ou seja o que for. Neste momento, o nosso SNS já não está a cumprir aquilo que são os desígnios definidos na Constituição. Já não consegue chegar a todos os portugueses, e a tendência é agravar-se. O que está a acontecer está a acontecer há anos, não houve uma diferença entre governos. Na altura em que estivemos sob o controlo direto da troika e em que o Dr. Paulo Macedo, na altura ministro da Saúde, tomou medidas muito castradoras em termos de orçamento, essas medidas não mudaram, continuam na mesma. Cada vez temos mais doentes, cada vez a população está mais envelhecida, a nossa taxa de doenças crónicas continua a ser elevada, não diminuiu de forma substancial e as pessoas continuam a ter dificuldades económicas. Quando se fala da melhoria da economia do país é na imagem externa, de pagamento da dívida e de redução do défice, mas não é de melhoria da vida das pessoas.
Também faz a leitura de que o Ministério da Saúde está refém do Ministério das Finanças?
O Ministério da Saúde, neste momento, desapareceu. Refém já esteve. Agora, quem vai negociar com os hospitais, e ninguém veio desmentir isso, é o Ministério das Finanças. Aquela notícia que saiu recentemente no Jornal de Notícias e que depois foi confirmada amplamente: quem anda a organizar a questão da pediatria no norte do país é o Ministério das Finanças sozinho. Ninguém veio desmentir a notícia. Até vieram dizer que é normal, que o Ministério das Finanças fazia muitas reuniões sozinho com os administradores hospitalares. Eu não tinha conhecimento disso e ainda nisto há uns anos.
O ministro das Finanças sobrepôs-se às funções do ministro da Saúde?
É evidente que quem neste momento manda na Saúde e quem manda nas outras áreas de intervenção do Governo português, de facto, são as Finanças. As Finanças tomaram conta do Governo. Isto não é uma questão de agora. Há um episódio interessante de que muita gente já não se lembra. Quando António Arnaut, recentemente falecido, criou o Serviço Nacional de Saúde, na altura foi interpelado pelo ministro das Finanças de então, que era o Dr. Vítor Constâncio, que veio depois mais tarde a ser governador do Banco de Portugal. O Dr. Vítor Constâncio, quando viu aquilo, virou-se para o António Arnaut e disse: “Epá, nós não temos dinheiro para isto. Quem é que vai pagar o Serviço Nacional de Saúde?” Era uma questão importante. Há um serviço público, gratuito para toda a gente, quem é que vai pagar isto? O Arnaut virou-se para ele e disse que o que era importante era que o Governo fizesse alguma coisa pelos portugueses, que o estado social que o PS defendia funcionasse verdadeiramente. Quem tinha de se preocupar com as contas era o ministro das Finanças. Ele que tratasse de arranjar o dinheiro para viabilizar o SNS. Foi a resposta do António Arnaut ao Vítor Constâncio e é a resposta que o Adalberto Campos Fernandes tem de dar ao ministro das Finanças. É dizer: “Meu amigo, eu tenho de me preocupar com a saúde dos portugueses. Estou a ter um orçamento baixo para a saúde”.
Que nunca chega para tudo o que é preciso.
A média do orçamento para a saúde dos países da OCDE é de 6,5% do PIB. Aqui estão a dar-lhe 5,2% do PIB. O SNS não chega aos 4,7% do PIB. Está aqui uma circunstância em que não consegue fazer nada. Quer fazer reformas, não tem dinheiro; quer melhorar a capacidade e qualidade da resposta, não tem dinheiro; quer melhorar a forma como funcionam os serviços de urgência, não se faz nada porque não há dinheiro; quer melhorar a capacidade de resposta dos hospitais, nos tempos de resposta, nas listas de espera, não tem dinheiro.
O que diz é que o ministro da Saúde tem de se impôr ao ministro das Finanças?
É preciso que ele bata o pé, que faça o que fez o Dr. António Arnaut, e que já fez também, no seu tempo, o Dr. Correia de Campos. Não é exclusivo. O que quero dizer é que não é a primeira vez que o ministro da Saúde tem de bater o pé no conselho de ministros para defender os portugueses. É isto que nós esperamos do ministro da Saúde. O que eu espero do ministro da Saúde não é que ele defenda os médicos, os enfermeiros ou os outros profissionais de saúde. É que o ministro da Saúde defenda os portugueses.
Falando de expectativas: é frequente ouvirmos que Portugal tem um bom sistema de saúde, um dos melhores do mundo, que o SNS é a grande conquista da democracia; mas casos como os que recentemente vimos no hospital de São João, no de Santa Maria, nos corredores de tantos hospitais pelo país, fazem com que tenhamos menos confiança nesse mesmo SNS. Afinal, que expectativas é que um português pode ter sobre o serviço de saúde do seu país?
Deixe-me responder-lhe a isso começando por dizer que aqui é que se aplica a “rampa deslizante”, que aqui já não tem uma conotação negativa. O Serviço Nacional de Saúde está a cair. O que acabou de descrever é a realidade. Se nós os dois fôssemos agora visitar o hospital de Santa Maria, o hospital Amadora-Sintra, o hospital de Gaia no Norte, o hospital de Viseu na região centro, ou outro hospital qualquer, o de Faro, o de Aveiro, o que quiser, íamos verificar que as condições de trabalho e as dificuldades que os profissionais de saúde têm para assegurar cuidados de saúde nas melhores condições possíveis são difíceis. As pessoas estão com imensa dificuldade, por falta de capital humano, por não renovação de equipamentos, por falta de materiais clínicos — por vezes faltam coisas simples, às vezes parece ridículo. Isto tem muito a ver com a questão da flexibilidade. Não há flexibilidade na gestão, os gestores dos hospitais não podem tomar determinado tipo de decisões. Isso associa-se ao facto de haver uma sub-orçamentação crónica e a meio do ano os hospitais começarem a ficar sem dinheiro para comprar medicamentos e começam a entrar em dívida. Nós já sabemos que não temos dinheiro para a saúde e vamos ficar a dever.
Ou seja, é um problema sistémico.
Este sistema não funciona e é evidente que isto causa alguma desconfiança nos portugueses. O que acho que temos de fazer é, pegando no caso do Dr. Arnaut, honrar o seu legado e a sua memória, e isso é defender o SNS. Neste momento somos poucos a defendê-lo. Não podem ser só as ordens profissionais. Têm de ser as sociedades científicas, têm de ser as associações de doentes, os parceiros sociais, etc. É isso que vamos fazer com a Convenção Nacional da Saúde. Estamos a chegar lá. Esta convenção é exatamente para conseguirmos criar um conjunto de recomendações que são essenciais não só para salvar o Serviço Nacional de Saúde mas para todo o sistema de saúde funcionar de forma a que os portugueses tenham acesso a cuidados de saúde qualificados.
O facto de se terem unidos na Convenção Nacional de Saúde tantos organismos diferentes do setor da saúde — ordens, associações, hospitais, setor social –, com interesses completamente divergentes, é sinal de que está muita coisa a correr mal em muitas partes do sistema?
É sinal de que está muita coisa mal no Serviço Nacional de Saúde. Respondendo concretamente à pergunta que me fez há pouco: nós temos um bom Serviço Nacional de Saúde, que neste momento tem problemas, que se estão a agravar desde há alguns anos. Continuamos a ter bons indicadores na área materno-infantil. Podem não ser os melhores do mundo, mas estarão se calhar no top 10 a nível mundial. Mas já não estão tão bem como estavam há cinco anos. Quando nós recebermos os resultados da OCDE relativos a 2017 vamos ter muitas surpresas. É natural que várias questões relacionadas com indicadores de saúde, nomeadamente na área da saúde pública, tenham alterações negativas. Independentemente disso, o que me interessa é o grande indicador. Neste momento, não tenho dúvidas de que o acesso aos cuidados de saúde está muito limitado. Vamos ser objetivos.
Já disse que há falta de médicos, mas não é seguramente por falta de formação de médicos nas universidades, que até há a mais. O que está a falhar?
O Estado não os contrata porque tem limitações financeiras. Neste momento este governo está a usar um expediente que eu acho que não é sério para as pessoas, que é não abrir os concursos. Ou seja, o país tem necessidade absoluta de ter mais médicos no Serviço Nacional de Saúde. Não há ninguém que não o reconheça — o próprio ministro da Saúde o reconhece. Ele às vezes responde, quando lhe dizem que não há dermatologistas, “arranjem-me dermatologistas que eu contrato”. Esta conversa já não funciona.
Temo-los em Portugal.
Temos, formam-se e depois não são contratados.
E o Estado gasta dinheiro na formação deles.
Gasta dinheiro e eles saem para fora do país. Imagine que você é um jovem que acaba uma especialidade médica. É urologista, como eu. Está ali, acabou a formação. Passa um mês, dois meses, três meses, e não há concurso no Serviço Nacional de Saúde. Você tem oferta da medicina privada, tem países a mandar todos os dias aqui para a Ordem a dizer que querem contratar médicos da especialidade A, B, C ou D. Países altamente tentadores, com ordenados altos, com patrocínios de formação, com mais dias de férias do que existe cá, com uma série de vantagens relativamente a Portugal. Vai trabalhar para Londres, para a Bélgica, para a França, para a Alemanha. Todos os países da Europa pedem médicos portugueses.
Isso é um reconhecimento da boa qualidade da formação em Portugal.
Um reconhecimento excelente da nossa qualidade de formação. Além disso, o pessoal ainda é novo, ainda vai casar, ou se é casado ainda não tem filhos. Arranja forma de a mulher também ir, que eles facilitam isso, e vai trabalhar para um sítio onde vai ter uma qualidade de vida boa. Se quiser vir a Portugal todos os fins de semana vem, porque com as viagens low-cost é fácil. Esta nova geração já não é a geração do meu tempo, em que nós estávamos muito fechados em Portugal e para sair era preciso muita coisa. Não, agora é a geração das redes sociais, das viagens low-cost, a pessoa circula com uma grande facilidade, e o Estado tem de ter atenção a isso. Não basta António Costa vir dizer que a prioridade dele são os jovens. Mas são os jovens como? Mas ele vai trazer os jovens para Portugal como? Que condições concorrenciais é que vai introduzir dentro do sistema? Vai pagar melhor? Vai ter incentivos especiais? Isto é importante. Nós temos uma coisa extraordinária, que é a formação, em todas as áreas.
Os médicos portugueses são muito cobiçados…
Sim. Imagine um jovem médico que está a começar uma especialidade cirúrgica. Vai para o bloco, nós tratamo-lo bem, temos gosto em que ele aprenda a fazer e começamos a deixá-lo fazer, estamos ali com ele. Nós vamos ensinando às pessoas tudo o que sabemos. Um médico quando acaba a especialidade em Portugal está apto para fazer qualquer coisa na sua especialidade. Um médico que acabe a especialidade nos Estados Unidos não está. Ainda há coisas mais diferenciadas que vai aprender já como especialista. Aqui aprendem já tudo. Nós deixamo-los fazer, meter a mão na massa, podem operar, connosco ali a acompanhá-lo. Os nossos médicos são de topo a nível internacional, não tenho dúvida nenhuma sobre isso. Agora, estamos a investir — os médicos são caros — e é importante ter o contributo deles no nosso país, criar as condições para que eles fiquem cá, porque nós precisamos deles.
Quanto custa formar um médico em Portugal? Os valores publicados variam muito.
O último valor que vi situava-se perto dos 15 mil euros por ano. A faculdade de Medicina, normalmente, são seis anos, o que daria 90 mil euros de valor médio. Isto para formar um médico saído da faculdade de Medicina. Daí para a frente, os valores já são mais complicados de calcular, porque daí para a frente tem o internato de formação geral, o ano comum, em que o médico ainda não tem autonomia, está exclusivamente a aprender e tem um ordenado; e depois tem o internato para a especialidade, em que as pessoas têm um vencimento mas trabalham muito. Estão a aprender e há custos indiretos de formação, nomeadamente das pessoas que estão a ensinar. Não recebem nada para ensinar, mas perdem mais tempo. Se eu tiver os médicos mais novos a participar nas cirurgias é natural que não consiga fazer tantas cirurgias como se estivessem duas pessoas experientes sempre a operar. Mas o ensino também é isto. Isto também é importante. É possível calcular custos diretos e indiretos. O único que conheço e que está calculado é este: cerca de 15 mil euros por ano cada estudante de Medicina.
A solução, do seu ponto de vista, também não pode passar por obrigar os médicos a ficar no SNS durante um período após a formação?
Obrigar é sempre mau. Penso que o mais fácil é criar as condições adequadas em termos de trabalho para que o nosso serviço seja concorrencial quer com o setor privado quer com os outros países. Portugal tem de vencer esta batalha pela capacidade de concorrência, não pode ser por obrigar as pessoas a fazer isto ou aquilo. Sempre que tentámos obrigar, as coisas acabaram por não funcionar devidamente. E Portugal tem condições para isso. Já não falo em criar condições de remuneração, que são difíceis. É difícil um médico ganhar aqui o mesmo que ganha na Alemanha ou noutro sítio qualquer do género. Mas é possível dar-lhes projetos de trabalho, é possível dar-lhes mais acesso à investigação, é possível dar-lhes mais alguns dias de férias, é possível dar-lhes patrocínio nas ações de formação — até para acabar com este estigma da indústria farmacêutica pagar a formação dos médicos, que seja o Estado a pagar, que tem essa obrigação. Conseguiríamos que muitos médicos, mesmo ganhando menos do que ganhariam em Londres, ficassem cá.
Este mês teve várias greves no setor da saúde — médicos, enfermeiros, outros profissionais. O setor está a ficar cansado?
Acho que as greves que têm existido no setor da saúde funcionam mais como um grito de alerta para o poder político sobre aquilo que são as dificuldades que os profissionais de saúde das várias áreas diferentes sentem no exercício da profissão e sobre a falta que os nossos doentes estão a ter no acesso aos cuidados de saúde. Estes gritos de alerta deviam ser levados a sério. Costuma dizer-se que as greves valem o que valem. Funcionam, a comunicação social dá-lhes alguma amplificação, e portanto criam algum impacto na sociedade. As pessoas têm de levar isto um bocado a sério. Não me recordo, nos últimos anos, de ter tantos profissionais de saúde a pensarem todos da mesma maneira. Até os próprios farmacêuticos, que nunca tinham feito uma greve, estavam a pensar em fazer uma greve, porque nada está a ser concretizado. Isto não tem a ver com as regalias dos profissionais de saúde. É claro que os sindicatos também negoceiam algumas regalias. No caso dos sindicatos dos médicos, negoceiam reposições, nem sequer estão a pedir nada de novo, são coisas que perderam no tempo da troika e que querem que sejam repostas. É isto que os sindicatos dos médicos estão a negociar. Até já lhes disse que deviam negociar coisas novas. Sobretudo, estamos preocupados com os doentes. Se pegar no caderno reivindicativo dos sindicatos desta última greve dos médicos vai perceber que a maior parte das coisas que estão lá têm a ver com a qualidade da medicina e com os doentes. A prioridade neste momento é que o Serviço Nacional de Saúde não se descaracterize completamente.
Esta convenção nacional que vai juntar toda a gente no setor também é um grito de alerta?
Isto é mais do que um grito de alerta. A Convenção Nacional da Saúde pretende ser um grande fórum em que toda a gente que tem ligação à saúde está representada. Vão ser obviamente convidados para participar nesta iniciativa os deputados, quem tem poder político para poder tomar decisões. O fórum pretende arranjar consensos. Se quiser, dar também uma resposta ao apelo que o Presidente da República deixou há uns tempos, um repto para que fosse possível constituir um pacto na área da saúde que atravessasse duas ou três legislaturas, que não estivesse dependente de hoje estar a governar o PS, o PSD ou outro partido qualquer. Que fosse uma coisa que fosse um bem para os portugueses, para o país, e que não se estivesse constantemente a entrar em guerra por causa da saúde.
Uma visão a longo prazo.
Uma visão a longo prazo, que permitisse fazer as reformas necessárias no Serviço Nacional de Saúde para se revitalizar. Não podemos ter um serviço que fique sempre na mesma do princípio até ao fim. Isso é não acompanhar a própria evolução. Esta convenção resulta disso mesmo, de conseguirmos, junto destas instituições todas, que são muitas dezenas, encontrar os consensos possíveis e essenciais para que sejam formalizados numa proposta, entregue ao Presidente da República e ao Governo, ao primeiro-ministro e ao ministro da Saúde.
Como é que o ministro da Saúde vê esta iniciativa?
Essa pergunta tem de lhe fazer a ele. O que lhe posso dizer é que o ministro da Saúde já confirmou a sua presença, quer ele quer o Presidente da República, na sessão de abertura. Isto é um aspeto positivo. Penso que ele, ao confirmar a sua presença na sessão de abertura está, de alguma forma, a valorizar esta convenção como uma iniciativa positiva para ajudar a resolver algumas das questões que existem na saúde em Portugal.