“Subitamente pareceu-me que se abria e que se iluminava um teatro dentro do meu cérebro, com espectáculos noturnos de um esplendor que está acima daquilo que é terreno… Todas as noites, parecia que descia, não metaforicamente, mas sim literalmente, a abismos e desfiladeiros onde o sol não penetrava, profundezas sob as profundezas, das quais não me parecia ser possível ressurgir”.
O excerto que acabou de ler é parte de um dos mais célebres relatos de uma experiência sob a influência de drogas, senão mesmo o mais famoso. Com Confissões de Um Opiómano Inglês, Thomas de Quincey não foi apenas um precursor da literatura sobre toxicodependência, nem mostrou só como é possível fazer da adição uma via rápida para o estrelato literário. Com esta obra publicada em 1821, o autor britânico afirmou-se, acima de tudo, como um explorador que fez do ópio uma ferramenta para desbravar “os recantos obscuros da mente”.
O maior legado de Quincey, defende agora Mike Jay, foi popularizar uma categoria de intelectual que dá nome ao mais recente livro deste historiador cultural britânico: Psiconautas — As drogas e a formação da mente moderna. O termo, popularizado após o pico da contracultura do século XX, foi originalmente cunhado pelo escritor alemão Ernst Jünger no romance Heliopolis, de 1949, para descrever pessoas que usavam drogas para deambular pelas próprias mentes. Em Lisboa para promover a obra publicada em Portugal pela Zigurate, Jay explicou ao Observador como estes psiconautas não surgiram apenas na geração Beat nos anos 50 ou na cultura hippie dos anos 60, mas nos laboratórios e salões de alta sociedade dos século XIX.
Se hoje encaramos substâncias como a cocaína, a morfina ou o óxido nitroso como drogas perniciosas e caminhos para a perdição, naquela altura mais inocente eram vistas desde chaves para desbloquear os mistérios da mente até soluções miraculosas de potencial infinito para as limitações humanas por gigantes da ciência como Sigmund Freud, William James ou Humphry Davy. “Se estas pessoas estavam interessadas em estudar a mente, então também estavam interessadas em drogas que mudavam a mente, que mudavam a consciência”, explica Jay.
Com uma carreira de décadas dedicada à história cultural não apenas das drogas e da nossa relação com elas, mas também intersetando isso com a forma como a medicina e a psiquiatria avançaram ao longo dos séculos, Mike Jay assina em Psiconautas uma investigação intensiva de como as drogas foram sendo encaradas. “O sentido que damos a essa palavra não existia no século XIX. Nessa altura, ‘droga’ significava apenas tudo o que se comprava numa farmácia. E depois, no final do século XIX, algumas drogas farmacêuticas em particular foram retiradas, como a cocaína e a heroína, e passaram a ser uma categoria separada”, adianta.
Da popularização à proibição, do entusiasmo até tornarem-se num sinónimo de degradação social e risco de saúde pública, as drogas reclamam hoje outra atenção: umas — como a cannabis — foram sendo legalizadas, outras — como cetamina ou o MDMA — viraram moda e voltaram a ser encaradas pelo seu potencial clínico, numa espécie de retorno ao tempo dos psiconautas aqui retratados. Ao longo de uma extensa entrevista, Mike Jay — ele próprio um adepto de algumas das substâncias que estuda — conta ao Observador de onde vem esta nossa estranha relação com o psicadelismo e arrisca afirmar para onde caminha.
O que foram e quem foram os “Psiconautas” mencionados no título do seu livro?
“Psiconautas” é uma palavra que começou a ser usada sobretudo nos anos 70 e 80 para descrever pessoas que fazem viagens interiores através de drogas. Mas uso-a aqui para falar de uma geração anterior de exploradores. Quando falamos em “psiconautas”, normalmente pensamos num tipo de hippies malucos, mas estes eram médicos e cientistas, pessoas muito distintas e brilhantes no século XIX. E o que considero relevante aqui é que se estas pessoas estavam interessadas em estudar a mente, então também estavam interessadas em drogas que mudavam a mente, que mudavam a consciência. E se estavam interessadas nisso, o seu instinto natural era tomarem elas próprias as drogas e depois descreverem as suas experiências. Claro que hoje em dia não é assim que os investigadores se comportam, por isso quis voltar ao passado e lembrar que os médicos e os cientistas — assim como os artistas, os escritores e os filósofos — também costumavam tomar drogas para compreender a mente. Esta é a história dessas pessoas.
Encarando um dos pontos que acabou de referir, uma das premissas centrais do livro parece ser a de desafiar um equívoco comum, o de que o apogeu das substâncias psicadélicas terá ocorrido nos anos 50 e 60. No entanto, mostra que há aqui uma história muito mais longa e rica e que esse “pico”, na verdade, situa-se no início e ao longo do século XIX. O que nos pode dizer sobre esse período?
A palavra “droga”, tal como a usamos, não existia no século XIX, mas este foi um período em que apareceram muitas das coisas a que hoje chamamos drogas, como a cannabis, a cocaína e o óxido nitroso, assim como muitas outras plantas e químicos que alteram a mente. Foi também uma época em que as pessoas estavam fascinadas com a mente e começavam a perceber que ela não era assim tão simples, que há uma pequena parte à tona que é a nossa razão e o resto é apenas instinto, que na verdade temos muitas formas de consciência. Por isso, foi uma altura em que as pessoas estavam interessadas em descobrir a mente e havia muitos medicamentos novos que as ajudavam a fazê-lo.
Algo que normalmente não é mencionado nas conversas sobre psicotrópicos é o facto de terem sido descobertos fruto de pura curiosidade e engenho.
Aquilo a que chamamos ciência moderna baseava-se na experimentação, era preciso fazer experiências. Assim, na Grã-Bretanha, a Royal Society — que, entre nós, considera-se ser o início da ciência [moderna], com Isaac Newton e Robert Boyle — tinha como princípio “Nullius in verba”, que significa “não acredite na palavra de ninguém”, ou seja, “experimente, descubra a verdade por si próprio”. E só depois da verdade ser testemunhada e repetida é que então sabemos que descobrimos algo. Assim, a experiência esteve no início da nossa cultura científica moderna, e isto também incluía a autoexperimentação, porque alguns tipos de fenómenos não podem ser demonstrados. Newton, por exemplo, podia mostrar com um prisma que a luz branca era feita com o que continha um arco-íris, mas também estava interessado em descobrir que, quando pressionava o globo ocular com muita força, podia ver distorções e cores estranhas, e não as podia mostrar porque estavam apenas dentro da sua cabeça. Por isso, teve de descobrir como. Desde o início, os cientistas tiveram de recorrer à auto-experimentação para demonstrar fenómenos relacionados com sensações ou perceções, para depois poderem dizer, como fez Newton, “OK, foi isto que eu fiz. Se não acreditam em mim, façam-no vocês mesmos”.
Um dos princípios fundamentais do livro é que toda a ideia de auto-experimentação tem os seus próprios desafios, porque é impossível — ou, pelo menos, muito difícil — ser simultaneamente participante e observador, em especial quando se tomam substâncias que alteram a mente. Pode explicar um pouco como é que os psiconautas lidavam com isso?
Essa é uma questão muito pertinente, que, na verdade, Sigmund Freud abordou no seu tempo. O problema com as experiências com cocaína, disse ele, era que “fazer a experiência e ser o sujeito e dá-nos dois papeis diferentes”. Este sempre foi o problema das auto-experiências: por um lado, tenta-se ser o mais objetivo possível e registar medições e detalhes, ir verificando sempre o batimento cardíaco ou a dose; por outro, como estamos a falar de algo que muda a nossa consciência, só nós podemos explicar como foi e só nós podemos descrevê-lo. Isso obriga-nos assim a ser muito subjetivos, a colocarmo-nos no centro e a falar da nossa própria experiência. Por isso, há sempre esta tensão entre o objetivo e o subjetivo. Assim, com a auto-experimentação, não há uma forma perfeita ou correta de o fazer. Toda a gente tem de encontrar o seu equilíbrio nesse espetro.
Tal como várias figuras referem no livro, não se trata apenas de uma questão do quanto se toma determinada substância. É também uma questão de anatomia. É muito difícil reproduzir os resultados de uma experiência com drogas quando o corpo de duas pessoas pode reagir de forma diferente, certo?
Sim, exatamente. Por isso, pode acontecer que, mesmo com a mesma dose e na mesma situação, as pessoas tenham experiências muito, muito distintas. Por isso, a melhor coisa que um cientista pode fazer é descrever a sua experiência o melhor possível. Os médicos e os cientistas dessa época eram muito, muito bons a descrever, porque, ao contrário do que acontece atualmente — em que temos o nosso possível diagnóstico e podemos assinalar isto e aquilo em caixinhas para saber se alguém tem esta ou aquela doença —, a única ferramenta que tinham era a descrição. Por isso, perguntavam sempre ao doente “como se sente?”. Se ele respondesse “sabe, tenho tosse”, perguntavam-lhe “que tipo de tosse? É uma tosse seca? Uma tosse produtiva? Etc…” Portanto, eles tinham uma linguagem muito boa para descrever estes estados de espírito e os efeitos destas drogas. Mas, como nota, a experiência de cada um era diferente.
É por isso que dá tanta atenção no livro aos escritores da época que também estavam a fazer experiências? Eram eles que tinham o léxico adequado para definir o tipo de coisas que alteravam a mente e que lhes estavam a acontecer?
É verdade, mas também muitos médicos dessa altura escreviam poesia e romances e eram bastante literários. E orgulhavam-se das suas descrições. Penso que algumas das melhores descrições de experiências com drogas no livro são feitas não pelos autores e artistas, mas pelos cientistas e médicos.
Ao ler este livro, fiquei com a ideia de que a subjetividade inerente ao ato de experimentar drogas em nome da ciência obrigou-a a tornar-se mais objetiva, a pôr em causa as conclusões que se tiravam da auto-experimentação. Considera que esta avaliação é correta?
Parece-me que sim. Houve uma mudança — e de forma bastante marcada na viragem do século XIX para o século XX, quase logo no início do século XX — em que as pessoas começaram a interessar-se menos pela descrição subjetiva e mais pelo comportamento, apenas pelos inputs e outputs, e a psicologia concentrou-se em pegar em ratos de laboratório e colocá-los em labirintos. Era assim que se podia fazer ciência: não era preciso saber o que eles estavam a pensar, bastava observar o seu comportamento. No século XX, a psicologia seguiu fortemente nessa direção. E o tipo de introspeção que tinha sido favorecido por William James ou por [Jean-Martin] Charcot e os seus seguidores em França passou de moda muito rapidamente.
O facto da ciência ter de construir todo um aparato técnico para tentar medir os efeitos das drogas vai ao encontro do que diz, de que, nessa altura, não se estudava realmente o que as substâncias faziam à mente, mas sim como nos faziam comportar quando as tomávamos.
É a esse ponto a que chegámos hoje com a nossa ciência. Nos primórdios, tínhamos coisas como a EEG [Eletroencefalografia], agora temos tantos tipos de exame que a ideia vigente é de que se fizermos um exame ao cérebro de alguém que está a tomar uma droga psicadélica, podemos saber o seu estado de consciência só de olhar para os resultados em segunda mão, não precisamos de falar com essa pessoa.
Um dos grandes pressupostos deste livro é a ideia de que o consumo de drogas para fins científicos foi fundamental para o desenvolvimento da mente moderna. O que é que quer dizer com isso?
Como já referi, foi um momento em que as pessoas estavam a começar a aperceber-se que a mente é mais complicada do que imaginavam, estavam interessadas em ideias de consciência subliminar e do inconsciente e na ideia de que há um diálogo entre todas as nossas diferentes partes da mente. Provavelmente, a frase mais famosa desse período é a de William James, que fala do “fluxo de consciência”, a ideia de que na nossa cabeça não há apenas um pensamento e outro pensamento e outro pensamento e outro pensamento, mas que, na verdade, há muitas conversas a acontecer na nossa cabeça, todas ao mesmo tempo. E foi para ter esse tipo de perceção, se estivermos interessados em desenvolver essas visões da mente, que foi muito interessante tomar drogas, o tipo de drogas psicoativas que mudam a nossa mente e alteram a forma como ela funciona. Não acredito que as drogas tenham causado a descoberta da mente moderna, mas, quando as pessoas se interessaram de facto pelo estudo da mente, as drogas tornaram-se muito interessantes como ferramentas.
A mera expressão “fluxo de consciência” tornou-se também um dispositivo narrativo, uma forma de contar uma história. Por isso, também teve impacto nas artes, de certa forma.
Sem dúvida. Pode ver-se o início disso em algumas figuras da década de 1890, como quando escrevo sobre Jean Lorrain e Guy de Maupassant, que estavam definitivamente a usar éter e outras drogas psicoativas e estavam muito interessados nas diferentes formas como podemos perceber o mundo e como as nossas sensações podem ser alteradas pelas drogas. Este estilo de escrita surgiu, penso eu, de muitas vertentes, mas incluindo figuras que estavam a ter experiências com drogas que estimulavam a sua imaginação e que tentavam captar isso na sua escrita. E depois havia artistas como Stanisław Witkiewicz, o vanguardista polaco que pintava formalmente sob a influência de muitas drogas diferentes. Ele considerava a arte que criava com cocaína ou mescalina ou ópio como uma coprodução entre ele e a droga tomada, por isso, assinava as peças com o seu próprio nome, mas também com o nome da substância que usou. Isto dava-lhe acesso a diferentes modos, a diferentes registos em que podia trabalhar.
No livro, menciona como se debate com o termo “droga” em si mesmo e como este foi mudando ao longo da história até se tornar numa palavra muito carregada.
É uma palavra com uma carga muito negativa. A outra razão pela qual me debato com ela tem a ver com o que disse antes, o sentido que damos a essa palavra não existia no século XIX. Nessa altura, “droga” significava apenas tudo o que se comprava numa farmácia. E depois, no final do século XIX, algumas drogas farmacêuticas em particular foram retiradas, como a cocaína e a heroína, e passaram a ser uma categoria separada. E é para descrever isso que usamos a palavra “droga”. Se olharmos para as primeiras utilizações desta palavra, podemos ver que as pessoas se referem a “drogas perigosas” ou “drogas que causam dependência”, muitas vezes também a “drogas estrangeiras” e, depois, a “drogas proibidas, criminosas, ilegais”. Portanto, todas as conotações desta palavra, “droga”, são hoje negativas.
Quando é que começou esta estigmatização?
A primeira fonte que encontrei foi, de facto, em dezembro de 1899, ou seja, mesmo no final do século XIX. Antes disso, algumas drogas tinham já má reputação, as pessoas compreendiam o conceito de dependência mas, lá está, há muitas drogas que ainda hoje temos nas nossas farmácias que alteram a mente ou causam dependência, mas continuam nas prateleiras. Só por volta de 1900 é que uma determinada classe de substâncias foi eliminada e, desta forma, tornou-se problemática.
Mas as sementes dessa estigmatização já tinham sido plantadas. Alude a isso com casos como o conceito por trás de O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde, cuja história gira em torno do que a cocaína nos pode fazer, ou como Arthur Conan Doyle mudou os hábitos de cocaína de Sherlock Holmes porque estavam a começar a ficar mal vistos. Já havia um caminho a apontar para isto.
Mas mesmo mais cedo, com o livro de Thomas de Quincey, Confissões de Um Opiómano Inglês, em 1821, ele falava com grande pormenor sobre a dependência e como funciona, e criou para si próprio, de certa forma, a imagem do consumidor de ópio como “o drogado”. Por isso, penso que conseguimos ver que ele estava a atribuir esse estigma a si próprio numa era mais precoce, em 1820. Mas é realmente no final do século XIX, quando aparecem estas novas substâncias, como a cocaína, que as pessoas começam a concentrar-se mais nos perigos das drogas. Mas parece-me que é só no século XX que surge a ideia de que há uma classe de pessoas que consomem drogas, tal como há uma classe de pessoas que são alcoólicas. E sabemos pelos avanços na saúde pública neste período que estas pessoas têm maior probabilidade de ter doenças crónicas, a sua esperança de vida será mais curta. Portanto, esse tipo de estigmatização demográfica do consumidor de drogas ocorre, na verdade, no início do século XX.
Está documentado que o uso de psicotrópicos existiu provavelmente desde o início da humanidade. Mas, como refere, a categoria do toxicodependente só aparece, ou só está codificada, a partir do século XIX. O que é que mudou também na nossa relação com as drogas para que isso acontecesse? Terá sido também a industrialização?
Penso que foi em parte a industrialização, foi o facto de as drogas estarem a ser produzidas em massa e estarem a ficar muito mais baratas e muito mais fortes. Tornaram-se uma ameaça maior. Havia coisas específicas, como a agulha hipodérmica, que as tornavam tão assustadoras, tão chocantes como forma de consumo e também tão visualmente óbvias, que faziam com que alguém que as consumisse pertencesse a uma classe à parte, fosse como um desviante ou alguém com uma patologia.
Embora descreva com grande pormenor as provações que afetam um toxicodependente, o relato de Quincey também pode ser entendido como uma romantização. O que está a dizer nesta fase é que foi quando as pessoas olharam para o lado e começaram a ver este tipo de mal-estar a espalhar-se, foi aí que se tornou um problema maior.
Sim, e tornou-se parte de muitas outras ansiedades sociais: a vida moderna estava a tornar-se muito rápida e muito cansativa e muitas pessoas estavam a recorrer a substâncias artificiais para as ajudar a lidar com isso e algumas delas começaram a depender delas em demasia.
Isto pode ser uma simplificação excessiva, mas também havia aqui uma questão de mais-valias, certo? A industrialização das drogas tinha em si um incentivo ao lucro. Menciona como Freud, durante todo o seu percurso de estudo dos efeitos da cocaína, foi convencido pela Merck e pela Parke-Davis a escrever maravilhas sobre o assunto.
De certa forma, ele tornou-se parte do complexo industrial farmacêutico. Nessa altura, havia incentivos muito fortes. A cocaína é um exemplo muito óbvio. Na década de 1880, tornou-se enorme, a maior história, de facto, da farmácia nessa altura, com lucros enormes. A Parke-Davis enviou pessoas para os Andes para obter toneladas e toneladas de folha de coca e produziu muito, muito mais cocaína. O preço desceu e o consumo aumentou, e era vendida das mais variadas formas, como pastilhas e drágeas. Tornou-se uma grande operação comercial e, nessa altura, não havia um verdadeiro aparelho de Estado para controlar ou regulá-la. Assim, qualquer pessoa podia vender qualquer coisa: quanto mais eufórico, melhor, quanto mais forte, melhor, quanto mais barato, melhor. Esta dinâmica a que assistimos é-nos hoje muito familiar, penso que foi nessa altura que começou.
Escreve que depois desse boom veio a Era Progressista nos Estados Unidos, um termo que parece um oxímoro engraçado quando se trata de drogas, porque as políticas quanto a este tema foram tudo menos progressistas nessa época. Pode contar-nos um pouco o que aconteceu nessa altura?
De um certo ponto de vista, não foi progressista, porque se tratou de proibir as drogas e particularmente associá-las a minorias étnicas. Tudo o que hoje consideramos reacionário ou conservador quanto a este tema, se seguirmos a história das drogas, vai dar a esse momento, a Era Progressista. Por isso, é difícil captar o sentido em que foi progressista, mas é preciso lembrar que, nessa altura, o controlo das drogas era também muito popular entre os movimentos das mulheres e entre os socialistas, que queriam alargar a gestão do Estado e melhorar a vida dos pobres. Talvez possamos ter uma ideia disso hoje na forma como encaramos como progressivo, por exemplo, retirar os aditivos e outros químicos dos produtos alimentares dos supermercados. Por isso, a ideia de retirar a cocaína da Coca-Cola era como dizer “isto é algo natural, estamos a retirar estas drogas más”. Assim, podemos ver que a Era Progressista foi também uma altura em que as pessoas se começaram a interessar muito pela saúde, por uma alimentação saudável e por uma vida saudável. É algo que nos é muito familiar hoje em dia e que consideramos como uma iniciativa progressista.
Tal como a proibição de fumar — também é vista como uma política progressista.
Essa é a analogia mais próxima que hoje podemos fazer, sim.
Mas mesmo encarando que tudo nesse período tenha sido feito tendo em vista o bem comum, escreve que, de certa forma, teve o efeito secundário de estigmatizar ainda mais os consumidores de drogas.
Sim, incluindo consumidores que não estão representados na conversa política — estou a pensar particularmente nas minorias étnicas. No entanto, no livro tento também encontrar outras figuras que são uma espécie de experimentadores da classe trabalhadora, como James Lee, que depois, como resultado destas leis, são censurados e silenciados.
Um argumento muito interessante na forma como as drogas passaram a ser combatidas é o facto de trazerem “um prazer imerecido”, um tipo de euforia destrutiva — como se fosse errado atalhar no caminho para a felicidade. O que é que levou a que isto se tornasse quase mais uma questão moral do que uma questão de saúde?
É uma questão moral antiga, que provavelmente remonta a Tomás de Aquino. Remonta certamente a pessoas na América como os Transcendentalistas, pessoas como [Ralph Waldo] Emerson, essa escola da filosofia americana sobre vida saudável e independência e que não se deve ser dependente de uma droga. Ou que a perceção que se obtenha através de uma droga é uma forma barata de consegui-lo e uma falsa ilusão. Portanto, essas ideias estiveram sempre presentes na cultura. Acho que não o incluí no livro, mas podemos encontrar nas notícias do final do século XIX como as pessoas costumavam falar sobre o “uso luxuoso” de drogas pelas classes trabalhadoras. Portanto, não se trata de medicina, trata-se de luxo.
Luxúria é pecado, portanto é algo que choca com a promoção da ética de trabalho protestante.
É verdade. E Max Weber estava a escrever isso na mesma altura, na Era Progressista, dizendo que o que se passa com os protestantes é que o trabalho é bom, portanto, ganhar dinheiro é bom, mas gastar dinheiro é mau, portanto, se o gastarmos com o luxo, isso pode ser moralmente corruptor. Dentro desse esquema de pensamento protestante, o prazer tinha de ser policiado com muito cuidado.
E podemos encontrar correlações hoje em dia, no que diz respeito, por exemplo, à utilização moral de Ozempic e de outros métodos para se tornar mais saudável. Ignorando a questão da escassez, vemos o Ozempic ser caracterizado como uma forma “imerecida” de perder peso, pelo que este tipo de dilemas morais continua a surgir.
Continuam a acompanhar-nos. Mas depois, claro, há o argumento moral contrário, que tem a ver com a saúde pública, segundo o qual é imoral exigir mais do que o necessário aos serviços de saúde pública do Estado. Portanto, ao mesmo tempo, se encarado de uma perspetiva diferente, é um bem moral tomar Ozempic.
Ao analisar o seu trabalho, parece claro que dedicou muita atenção às histórias não só das drogas, mas também da saúde mental, da psiquiatria e da medicina. Tudo junto, parece que o seu foco principal é a forma como fomos encarando a nossa consciência e as formas de alterá-la ao longo da história. O que é que o levou a estes temas?
É verdade, e também foi isso que me levou à história da loucura, por exemplo. Quando olhamos para esse tema em termos históricos, vemos que o facto de alguém ser louco ou mentalmente são depende do contexto e da época, porque as nossas ideias foram mudando. Por isso, o que me interessa é, por um lado, a consciência e a experiência subjetiva, mas, por outro lado, a cultura em que isso acontece e a forma como existe um diálogo entre as duas partes.
Já mencionou anteriormente que não é alheio a substâncias psicadélicas.
De certa forma, isso é fulcral para o meu trabalho. Foi provavelmente por isso que comecei a escrever sobre este assunto, porque quando li as histórias académicas das drogas, quando comecei a escrever, era tão óbvio, desde a primeira página, que a pessoa não tinha tido uma experiência com estas drogas. A analogia que normalmente faço é com a literatura de viagens. Se quisermos escrever um livro sobre Veneza, é claro que não temos de ir lá, podemos ler outros livros sobre Veneza, mas é difícil argumentar que o livro não seria melhor se a visitássemos. Por isso, sim, essa é uma parte importante da minha prática e, tendo lido estes outros historiadores que não têm estas experiências, não escreveria sobre uma droga que não tivesse experimentado.
Sente-se um psiconauta por direito próprio?
Sim, de certa forma. Não tanto agora, mas sim, ao longo da minha carreira, tenho, por causa daquilo sobre o qual escrevo, andado a perseguir diferentes substâncias, incluindo algumas que estão no livro e que as pessoas já esqueceram. Por isso, torna-se, de certa forma, uma espécie de busca pessoal ou uma missão para ver como é que isto ou aquilo são realmente. Por isso, sim, já o fui até certo ponto, mas isso também me deixou consciente de que sou muito cético quando as pessoas se apresentam como grandes heróis devido às suas corajosas experiências psiconáuticas. Não creio que isso nos ensine necessariamente muito. Para mim, ensina-me o que preciso de saber, ou seja, como é ter uma experiência subjetiva.
Apesar de vivermos numa era mais liberal — provavelmente a mais liberal em relação às drogas desde os anos 50 ou 60 — um escritor admitir hoje publicamente que consome substâncias psicotrópicas acarreta riscos?
Sim, acho que sim, mas muito menos agora do que quando comecei a escrever sobre isto há cerca de 20 anos. Todos os meus amigos me diziam “tu vais ser preso, não tens medo que o governo ponha o teu nome numa lista?”. Já ninguém diz isso, acho que é porque o assunto se banalizou. Mas as pessoas ainda fazem julgamentos e é algo em que tenho de pensar quando escrevo livros. “Que imagem é que as pessoas têm do autor?”, por exemplo. Quando escrevi um livro sobre a mescalina, por exemplo, pensei “isto é importante, o leitor vai querer saber se eu próprio tive essa experiência ou não”, por isso incluí-a e descrevi-a. Mas isso é agora um género muito mais amplo, com coisas como “a Minha Viagem de Ayahuasca”. Toda a gente está a escrever isto, é muito comercial.
Li numa crítica ao seu trabalho — e penso que isto se aplicaria tanto a si como a muitos dos autores sobre os quais escreve — que a diferença entre alguém que consome este tipo de substâncias e alguém que se perde nelas é que se mantém ligado à realidade, não se perde nas drogas.
Esse é certamente o meu trabalho e a minha prática. Sim, é uma questão de ter a experiência mas depois integrá-la. E para mim, isso também significa integrá-la em narrativas históricas, compreender de onde veio.
Referiu-o ainda há pouco e na introdução do livro também escreve que quando começou a aprofundar estas questões, a investigação científica sobre as drogas estava muito mais centrada nos seus efeitos negativos do que nos positivos.
Tudo o que aparecia nos meios de comunicação social sobre drogas nessa altura tinha um aviso de saúde. Era sempre referido como “o problema da droga” e encarado como “o que nós devemos fazer em relação ao problema da droga?” Partindo do princípio, claro, de que o “nós” que falava não consumia drogas, que o problema era talvez a toxicodependência ou o crime ou o que quer que fosse. Mas a mensagem tinha sempre de ser: “não consumam drogas, miúdos”.
Hoje podemos ver como algumas coisas mudaram. Substâncias como a MDMA ou a cetamina e outras semelhantes estão a ser utilizadas para fins médicos, por exemplo. Escreve que “ao longo da última década, o pequeno fio de água da investigação sobre psicadélicos tornou-se uma inundação”. Nesse sentido, estamos a viver uma espécie de renascença da droga?
De certa forma, sim. Mas está a entrar muito lentamente na medicina. E sou um pouco cético em relação às pessoas que olham sempre primeiro para a medicina, para os argumentos médicos, para validar algo, especialmente quanto a algo como uma droga. A ciência e a medicina tornaram-se os nossos árbitros: “o que é que os médicos dizem?”, “o que é que a ciência diz?”. Lembro-me de falar com Michael Pollan [autor de Como Mudar a Sua Mente] quando ele estava a fazer a digressão do seu grande livro e disse-me que quando estava a falar para uma audiência de pessoas mais velhas que nunca tinham tomado drogas, elas queriam sempre saber “o que diz a ciência?” e ele podia responder coisas do género “os cientistas estudaram o cérebro e descobriram que, hmmm, sim, isto aumenta a sua ‘plasticidade’”. Portanto, sim, de alguma forma, estas são palavras mágicas para nós, e eu sou um pouco cético em relação a isso. Não acho que seja assim tão importante o facto de a ciência e a medicina aprovarem ou não.
O que está a dizer é que muitas pessoas estão a abordar as drogas como se estivessem a ler críticas de produtos, medindo os prós e os contras?
É exatamente assim, as pessoas querem saber antes de experimentarem-nas por si próprias!
Mas, pelo contrário, também alude ao facto do renovado uso de algumas drogas deixar outras para trás e marginalizá-las ainda mais e aos seus consumidores.
De certa forma, estávamos a falar de todos os valores negativos associados à palavra “droga” e é interessante, porque penso que não se pode divorciar a palavra “psicadélico” da questão, porque, pelo contrário, “psicadélico” tem estado, desde o início, rodeado de significados positivos. Tudo o que diz respeito aos psicadélicos tem a ver com a experiência mística, o crescimento pessoal ou a transcendência. De certa forma, os psicadélicos são como um contra-mito às drogas.
O psicadelismo é hoje um conceito quase divorciado das substâncias, pode ser visto apenas como uma estética. Muitas pessoas gostam de música psicadélica e provavelmente nunca consumiram drogas.
Porque há a ideia de que algo é de alguma forma mágico ou encantado se for psicadélico.
Há uma frase sua no livro que sintetiza algumas destas questões: “Por detrás das lojas de cannabis e das start-ups de psicadélicos de Silicon Valley, a guerra contra as drogas continua a avançar”. Quais são as implicações?
É isso que quero dizer. Uma das utilizações da palavra “psicadélico” é o facto de se poder separar do discurso sobre as drogas e de ter o apoio da medicina e da ciência para o fazer.
Apesar de hoje em dia haver uma forma menos estrita de lidar com as drogas e o seu consumo, escreve que, por exemplo, o número de apreensões é praticamente o mesmo, se não maior, do que quando começou a Era Progressista.
Isso é certamente verdade nos Estados Unidos da América. É como se fosse o mesmo que foi durante a era Reagan, por exemplo. Mas penso que talvez isso se deva ao facto de os Estados Unidos terem um problema intratável com um sector da população que está mais ou menos abaixo da linha de produção capitalista.
Menciona que um dos principais objetivos da investigação de Freud sobre a cocaína era curar ou combater os efeitos da neurastenia no trabalhador comum do século XIX. Será que o nosso interesse renovado pelos psicadélicos também se refere à forma como nos sentimos presos e esgotados pela vida digital?
Sim, e também, de um modo geral, da nossa cultura secular, da nossa cultura desencantada, poder-se-ia dizer. Os psicadélicos têm esta promessa do que podem fazer, de que têm possibilidades mágicas e podem curar-nos de condições das quais nada mais nos pode curar. Na nossa cultura muito secular, as drogas psicadélicas podem dar-nos uma escada para o céu. Podemos usá-los para a transcendência. Oferecem a possibilidade de fazer coisas que nada mais pode fazer.
Vivemos numa era de possibilidades infinitas, onde a corrente de informação é ininterrupta, podemos encontrar milhares de séries, filmes, videojogos, quaisquer formas de entretenimento que sejam onde nos podemos alienar. Continua a haver essa atração por sair da nossa própria consciência ou do que pensamos ser a nossa consciência?
Ou o que pensamos serem os limites do que podemos fazer e do tipo de pessoa que podemos ser. Acho que se vê isso em todas as pessoas que usam psicadélicos. Muitas que a meio da sua vida vão de repente para a Amazónia fazer a dieta da ayahuasca, pessoas que começaram a pensar “será que a vida é só isto? Tenho a certeza que existe muito mais além disto. Como é que me abro a mais possibilidades?”. Não sei durante quanto tempo irá durar, mas os psicadélicos são, neste momento, na nossa cultura, como uma chave mágica que pode abrir possibilidades mais além.
No que diz respeito às diferentes formas como encaramos as drogas hoje, para onde acha que caminha esta relação?
É muito difícil de prever. Já escrevo sobre isto há muito tempo e, entretanto, aconteceram tantas coisas que nunca teria previsto. Nunca teria previsto que a cetamina se tornasse de repente numa grande droga de rua, ou o óxido nitroso, por exemplo. E tanta coisa está a acontecer tão rapidamente. Mas penso há uma história maior, que é o facto de as drogas se terem globalizado, de estarem disponíveis em mais locais, de mais pessoas usarem drogas diferentes de formas diferentes. Por isso, temos agora uma paisagem caótica, em que as pessoas fazem coisas como tomar microdoses de cogumelos antes de fazerem as suas sessões de ioga. É muito difícil avaliar quais delas se tornarão formas culturais estabelecidas e quais não. É um período de grande experimentação.
Isso deixa-me com uma última pergunta — não conseguindo prever o futuro das drogas, qual é que gostaria que fosse?
Penso que se trata, de facto, de um processo cultural. A política é obviamente uma parte do processo e as leis também. Mas, como vimos nos últimos 50 anos, todo o quadro político-jurídico tem consistido em proibir as drogas — e falhou. Uma vez que a procura existe, ela encontra um caminho. O que eu gostaria de ver, e que estamos a começar a ver em alguns contextos, é uma mudança do comércio criminoso para a regulamentação legal, o que é muito difícil de fazer porque os vendedores ilegais vão continuar. Mas parece-me que, a partir do momento em que existe regulamentação legal, temos, por exemplo, informação sobre o conteúdo de um medicamento, informação sobre as dosagens, podemos controlar onde é anunciado, podemos controlar onde é vendido.
Além da regulamentação legal, também se pode abordar a questão através de outra lente, como creio ser o caso português, por exemplo: a descriminalização das drogas em Portugal reduziu muito o número de overdoses.
Sim, mas isso também teve a ver com a alocação de verbas em saúde pública para os tratamentos e para garantir que esse processo continua. Se simplesmente se desregulasse o esquema legal e não se fizesse mais nada, todos estes belos parques que vocês têm estariam cheios de pessoas a injetar drogas. Por isso, sim, também é necessária uma estratégia governamental e orçamentos para fazê-lo. Precisamos de uma série de ferramentas que possam atenuar os piores efeitos. Sei que é muito difícil para os governos fazerem isto, é muito mais fácil simplesmente “dizer que as drogas são más, não as tomem” e depois ignorá-las. É necessário um governo corajoso e muito eficiente para colocar as drogas sob regulamentação legal, mas esse é o melhor futuro.