Em junho, foi tornada pública a morte de mais um bebé. A grávida chegou à urgência do hospital das Caldas da Rainha, que funcionava com constrangimentos no serviço de urgência, foi feito um parto por cesariana, mas a criança acabou por morrer. A Ordem dos Médicos alertou para a possibilidade de casos semelhantes poderem vir a repetir-se devido ao encerramento dos serviços de urgências por todo o país e a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde determinou a abertura de um inquérito para apurar as causas do óbito. O Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), plataforma gerida pela DGS que atualiza automaticamente o número de mortes a nível nacional a cada dez minutos, — incluirá já o caso das Caldas da Rainha no total das 136 mortes de crianças com menos de um ano que ocorreram entre janeiro e julho deste ano. E permite perceber como a tendência está longe de ser positiva.
Estes dados são ainda provisórios, mas refletem um aumento quando comparados com o mesmo período de 2021, que registou 99 mortes – são agora mais 37. E nos meses de abril e maio, os números duplicaram de um ano para o outro – de 13 e 12 para 30 e 23, respetivamente. No entanto, perante estes dados, é necessário olhar para as causas de morte, uma vez que os números em Portugal são reduzidos e até 2018 o país vivia uma tendência decrescente.
Como explicou ao Observador André Graça, diretor do serviço de neonatologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, “os números são relativamente pequenos e acabam por ser muito suscetíveis a oscilações de ano para ano”. “Se houver um aumento, deve olhar-se para o ano anterior para perceber essa oscilação anual que existe”, acrescentou. Seguindo este passo, conclui-se que, de facto, de 2020 para 2021, entre janeiro e julho, se registou uma diminuição da mortalidade em crianças com menos de um ano – de 129 para 99.
Taxa de mortalidade infantil em 2020 foi a mais baixa de sempre em Portugal
Ao Observador, a DGS diz, no entanto, estar “atenta ao fenómeno da mortalidade infantil” e sublinha que “este indicador registou os valores mais baixos de sempre, situando-se nos 2,43 e 2,40 óbitos por 1000 nados-vivos, respetivamente”. E acrescenta ainda que está a ser estudada a implementação de “um instrumento de monitorização dos episódios de morbilidade materna grave”.
Mas, afinal, quais são as causas? Muitas desconhecidas e um perfil de grávida e bebé a mudar
“Historicamente, a taxa de mortalidade infantil em Portugal tem diminuído gradualmente”, contextualiza também a DGS, mas o ano de 2018 fica marcado por se ter desviado desta tendência, já que a taxa de mortalidade infantil se fixou nos 3,3 óbitos por cada mil nascimentos. Em 2019, quando foram conhecidos estes dados, a DGS referiu em comunicado que “a mortalidade infantil é uma das melhores demonstrações da evolução qualitativa dos cuidados de saúde e das condições socioeconómicas em Portugal” e determinou a constituição de um grupo de trabalho para analisar as causas da mortalidade infantil de 2018.
O que dizia o despacho da DGS que determinava a criação do grupo de trabalho
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Considerando o apuramento dos dados provisórios da taxa de mortalidade infantil referente a 2018, bem como a verificação de um número superior de óbitos face aos ocorridos em 2017;
Considerando que, não obstante também ter aumentado o número de nados-vivos, facto que não altera de forma relevante a respetiva taxa de mortalidade, importa analisar em profundidade as causas da mortalidade infantil, designadamente nas áreas da epidemiologia, estatística, saúde materna e infantil, entre outras;
Considerando que a informação do estudo a desenvolver deverá ser posteriormente analisada por especialistas/consultores das áreas envolvidas, no intuito de enriquecer as suas conclusões;
E obtida a concordância dos colaboradores envolvidos externos à Direção-Geral da Saúde:
1 – Determino a constituição de um Grupo de Trabalho para aprofundar o estudo da Mortalidade Infantil, constituído pelos seguintes colaboradores:
– Dr. Diogo Nuno Fonseca da Cruz, Subdiretor-Geral da Saúde, que coordena;
– Dr. Herberto Jesus, Presidente do Conselho Diretivo do Instituto de Administração da Saúde, IP – Região Autónoma da Madeira;
– Mestre Benvinda Estela Tavares Santos, Diretora de Serviços de Prevenção da Doença e Promoção da Saúde, da DGS;
– Mestre Daniel Virella Gomes, Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, EPE;
– Enfermeira Dina Cláudia Simões Oliveira, Enfermeira na Divisão de Saúde Sexual, Reprodutiva, Infantil e Juvenil da DGS;
– Dr. Manuel Gonçalo Cordeiro Ferreira, Presidente da Comissão Nacional de Saúde Materna, da Criança e do Adolescente;
– Enfermeira Maria Bárbara Catanho de Menezes, Enfermeira na Divisão de Saúde Sexual, Reprodutiva, Infantil e Juvenil e Coordenadora do Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil da DGS;
– Dra. Maria da Graça Osório Trindade e Lima, Diretora de Serviços de Informação e Análise, da DGS;
– Professora Doutora Maria Teresa Mateus Ventura, Chefe de Divisão de Saúde Sexual, Reprodutiva, Infantil e Juvenil, da DGS;
– Mestre Rita Manuel Sá Machado, Chefe de Divisão de Epidemiologia e Estatística, da DGS;
– Dr. Alexis Sentís Fuster, Fellow do Programa Europeu EPIET – European Programme of Intervention Epidemiology Trainning, a desenvolver a atividade na DGS.
2 – Designo como especialistas/consultores os seguintes colaboradores:
– Dra. Carla Pinho Rodrigues, Presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida;
– Dra. Gabriela Mimoso, Coordenadora Nacional da Base de Dados de Muito Baixo Peso; – Enga Isabelle Pereira, da Administração Central do Sistema de Saúde, IP.
- Dra. Joana Rios, Membro do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos;
- Dra. Joana Saldanha, Presidente da Sociedade Portuguesa de Neonatologia;
– Dr. João Bernardes, Presidente do Colégio de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos;
– Dr. João Martins, dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, EPE;
– Dr. Jorge Amil Dias, Presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos;
– Dr. José Loff, da PHISTAT – Consultoria Estatística;
– Dra. Susana Santo, Membro da Direção do Colégio de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos;
Direção-Geral de Saúde
O esboço do relatório foi efetivamente entregue há três anos à DGS pelos especialistas, não se sabendo até hoje se dele se tiraram conclusões ou foram elaboradas recomendações pelas autoridades de Saúde. Os autores do estudo que falaram com o Observador, pelo menos, não participaram na elaboração de qualquer conclusão ou recomendação e dizem, sob anonimato, que o relatório acabou por nunca ser publicado.
Mas o que constava nesse esboço, e que até agora era desconhecido, permite concluir que se assistia em 2018 a uma mudança no perfil das mães e dos bebés. O documento levanta igualmente questões sobre a prestação dos cuidados de saúde. “A população materna e infantil pode estar a evoluir, assumindo características diferentes daquelas para os quais a prestação de cuidados estava vocacionada”, lê-se numa versão preliminar do relatório a que o Observador teve acesso.
Analisando os dados disponíveis, os profissionais que participaram no grupo de trabalho perceberam que “o perfil da grávida e da gravidez estará a sofrer alterações, entre as quais mais idade, mais patologias, bem como o do recém nascido, que é mais afetado por prematuridade/baixo peso à nascença e pela patologia materna”. Estas mudanças, lê-se no documento, “implicam uma maior pressão sobre os serviços de saúde, requerendo vigilância mais intensa”.
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No mesmo relatório, é apontada a falta de informação necessária para apurar um conjunto de causas específicas, mas foi possível traçar algumas linhas. Por exemplo, entre 2014 e 2018, aumentaram as mortes em partos feitos em casa – de 2,1% para 6,9% – e a principal causa de morte estava relacionada com fatores maternos e complicações na gravidez e no parto. E o aumento das mortes classificadas como tendo “causa desconhecida” foi também sublinhado.
Questionada mais do que uma vez pelo Observador sobre o porquê de este relatório não ter sido publicado, com conclusões e recomendações, fonte da DGS não enviou qualquer resposta.
Mortalidade materna: Um outro “relatório não editado” nem publicado
À semelhança daquilo que aconteceu com a análise da mortalidade infantil, a DGS decidiu criar, em 2019, uma comissão para estudar os dados divulgados em 2017 e em 2018 sobre a mortalidade materna. Neste último ano, a taxa de mortalidade materna foi de 17,2 por 100 mil nascimentos, enquanto que em 2017 tinha sido de 12,8. “Impôs-se, por isso, um estudo detalhado e rigoroso, caso a caso, tendente a perceber as possíveis explicações para o fenómeno”, lê-se no despacho que nomeou três médicos e Manuel Carmo Gomes, epidemiologista, que ficou responsável pela análise estatística “dos fenómenos em causa”.
No mesmo ano em que foi criada, realizaram-se reuniões, a comissão elaborou um relatório que entregou no final de 2019, mas o documento nunca chegou a ser publicado. Ao Observador, Manuel Carmo Gomes explicou que o relatório “é essencialmente descritivo” e que uma das recomendações feitas passava por analisar os dados sobre mortalidade materna de cinco em cinco anos, já que o número de casos, tal como acontece com a mortalidade infantil, é reduzido.
“Em vez de olharmos pontualmente para um ano e depois para outro, em que há uma grande variabilidade, precisamente porque os números são pequenos, devemos trabalhar com grupos de cinco anos e analisar esta variação”, acrescentou o epidemiologista. E foi também recomendada a criação de um grupo de trabalho permanente, “que reunisse com frequência e que tivesse uma atividade no terreno que permitisse analisar melhor e acompanhar melhor o que se passa”.
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Estas recomendações foram feitas em 2019 e, três anos mais tarde, os números deste indicador voltariam a lançar novo alarme, fazendo com que a DGS anunciasse um novo grupo de trabalho para analisar os últimos dados conhecidos, relacionados com o ano em que a pandemia chegou a Portugal – em 2020, 17 mulheres morreram na sequência de complicações da gravidez ou do parto.
Após ter anunciado a criação desse grupo para estudar o caso, em julho deste ano, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, acabou por assumir, durante uma audição no Parlamento, na Comissão de Saúde, que o primeiro relatório — o de 2019 — lhe fora entregue pelos especialistas, mas ainda não tinha sido publicado por falta de edição. Apesar da relevância do tema e de se ter determinado a constituição de um novo grupo para estudar o fenómeno, três anos depois o primeiro relatório continuava como chegou à DGS, sem condições de ser publicado.
Na altura, a deputada do Bloco de Esquerda, Joana Mortágua, pediu que o documento fosse enviado à comissão e Graça Freitas pediu alguns dias “para ver se [tinha] erros ortográficos”. “Nós, de facto, sinceramente, não editámos. Lemos as grandes conclusões, mas é um relatório não editado, motivo pelo qual também nunca o publicámos”, acrescentou.
Ao Observador, a DGS explicou que desde 2019 “as mortes maternas passaram a ser alvo de codificação múltipla, ou seja, para além da atribuição do código de causa básica estão a ser atribuídos os códigos das morbilidades identificadas no certificado de óbito, para aumentar o rigor e melhorar a capacidade de estudar este fenómeno”. Ainda não existem, no entanto, conclusões, uma vez que o estudo será feito tendo em conta um período de cinco anos, tal como os especialistas recomendaram, rematou a mesma fonte.
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A propósito da avaliação das causas de morte materna, Diogo Ayres de Campos, presidente da Associação Europeia de Medicina Perinatal, que esteve na mesma comissão e foi ouvido antes de Graça Freitas, apontou a “degradação dos cuidados obstétricos”, referindo, inclusive, que “as respostas de saúde de pior qualidade” podem ajudar a perceber os números da mortalidade materna. “Quando temos um hospital, por pequeno que seja, que tem no quadro três médicos especialistas, todos com mais de 60 anos e não tem mais ninguém, não consigo dizer outra coisa que não seja degradação. E a situação, infelizmente, não está limitada”, acrescentou.