“As pessoas entram, saem, estão sentadas a beber copos, estão à conversa, ainda ouvem o palco que está atrás. Para passar uma ideia, para fazer um bit comprido fica complicado”, diz Diogo Batáguas, humorista, um par de horas antes de subir ao Palco Comédia do NOS Alive. As condições de um festival de verão parecem tudo menos ideais para espetáculos de stand-up e, ainda assim, a comédia tem conquistado terreno nos festivais.
Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais comum encontrar grandes nomes do humor dispostos a atuar neste género de eventos, que têm acomodado a comédia numa área dedicada, habitualmente um palco coberto com um ambiente mais intimista. Não nos enganemos: há quem use o espaço para se abrigar do frio ou para poupar as pernas para os concertos que se avizinham, mas há quem vá (e quem fique) pelas piadas.
A atuação de Batáguas no primeiro dia do festival que aconteceu no último fim-de-semana em Algés, por exemplo, juntou espectadores numa tenda sobrelotada, naquela que foi uma das maiores enchente deste ano naquele palco. “Já fiz aqui stand-up duas vezes. A primeira foi a meio da tarde ou no início, estava naqueles primeiros slots onde ninguém queria saber disto ainda”, recorda ao Observador. “Não correu nada bem. O espaço é grande, está preparado para levar mil ou duas mil pessoas e estavam 25”.
Hoje habituado a esgotar salas por todo o país, o humorista nascido em Lisboa, mas crescido na margem sul do Tejo, nota diferenças entre atuar para uma casa cheia em nome próprio ou num festival de música. “Há um alívio grande em saber que as pessoas pagaram para te ver. À partida vêm com uma predisposição maior para se rir porque te conhecem e acompanham o teu trabalho. Aqui há muita malta que conhece se calhar de nome, mas nunca viu bem nada, ou não sabe bem quem é.” “Metade desta rapaziada não está aqui para me ver, querem é ver Red Hot [Chili Peppers]. Está aqui a fazer tempo até começarem os cabeças de cartaz”, diz sem pudor. O autor de um dos maiores fenómenos da comédia dos últimos anos, o extinto Relatório DB, que todos os meses reunia num vídeo no Youtube as principais notícias e episódios anedóticos que haviam marcado os 30 dias anteriores, fez em Algés um “mini relatório ao vivo”.
“Começou a meio da tarde, início da noite, e é agora o headliner”, gracejou em palco, diante de um público que se estendia além das fronteiras da tenda. Diogo Batáguas não se recosta no aparente sucesso. “Acho que a malta não se lembra disto, ninguém quer saber disto”, diz com ceticismo. “Vão ficar com uma vaga imagem amanhã quando chegarem a casa. ‘Gostei dos Red Hot, do Xinobi’. Não se lembram de uma graça.” “As pessoas têm de sair daqui entretidas e com o sentimento de ‘olha, diverti-me’. ‘O que é que ele fez? Não me lembro bem’. Não há uma grande pressão para seres memorável porque, faças o que fizeres, à partida não o vais ser”, sentencia.
Se para talentos emergentes a participação num festival pode funcionar como “montra”, para alguém com uma carreira já consolidada há outras preocupações, como as “condições técnicas” — que acabariam até por se fazer notar na atuação de Batáguas, com problemas no som. “Muitas das vezes não é pelo cachet. É estar no Alive, ser cabeça de cartaz do Alive. Bora fazer porque pode ser bacano. Vou abrir para os Red Hot. Fica giro”, gaba. “Para ser honesto claro que prefiro fazer salas minhas e em nome próprio. E também ganho mais dinheiro”, remata.
Um festival pode também ser um espaço de experimentação. A dupla de humoristas Vasco Elvas e André de Freitas trouxe o podcast “Fomos Lá” para o palco pela primeira vez. “Correu bem”, concordam minutos depois da atuação no Alive que culminou numa leitura de cartas de tarot a um convidado (“Saiu a carta do carro. Vais trabalhar com um TVDE, provavelmente”, profeciam). “O Palco Comédia tem vindo a estabelecer-se cada vez mais. Já não é tanto uma coisa de ‘isto também está aqui’. As pessoas querem vir fazer parte e ver o que está a acontecer”, diz André, no backstage. Vasco, que atuou pela terceira vez no festival, concorda: “Estava mais cheio”. “Pode ser um bom sinal, que as pessoas estão a vir mais ao palco comédia e que querem ver, ou então é porque está calor e temos uma sombrinha confortável”, troça.
Do palco é fácil para os comediantes perceberem como está a correr. A tenda é ampla, mas pequena o suficiente para que seja percetível quando as pessoas estão a sair — na melhor das hipóteses porque se aproxima a hora de um concerto de um cabeça de cartaz, na pior porque a comédia não convence. Além disso, “há muitos estímulos”, repara André. O som do palco em frente faz-se ouvir. “A atenção na comédia é super volátil, se perdes a atenção, perdes a piada”, explica Vasco Elvas. “Como aqui há muitos estímulos, com as piadas curtas corres menos esse risco. Estás a fazer um build-up e de repente as pessoas já se distraíram e não apanharam metade”, nota. “Dói quando [as pessoas] saem”, admite.
Pioneiro na introdução de comédia nos festivais em Portugal, o NOS Alive tem um palco dedicado ao humor desde 2014. Nuno Duarte, mais conhecido por Jel, tem uma quota de responsabilidade no assunto. “Trabalho no Alive desde a primeira edição. Tinha falado várias vezes com o Álvaro [Covões] sobre apostar num palco de comédia, parecido com o que acontece lá fora nos maiores festivais, onde a comédia se enquadra muito bem com a musica. Arriscámos”, recorda. “A comédia e musica são artes irmãs, é entretenimento”, acredita.
Jel assume o papel de curador, cargo que também ocupa no festival Sol da Caparica, que acontece no Parque Urbano da Costa da Caparica de 17 a 20 de agosto, e que também contempla um palco dedicado ao humor. “Faço isto com um parceiro que é o Tiago Paiva, e juntos fazemos o alinhamento, a curadoria, fazemos os convites e tratamos da produção em coordenação com a Everything is New [no caso do NOS Alive]”, esclarece.
Apesar de vários nomes se repetirem, Jel diz que a seleção dos humoristas é adaptada a cada festival. “Temos mais meios aqui no Alive, temos a possibilidade de ter mais comediantes e isso tem a ver com o lado financeiro”, frisa. “E o público é diferente, o Sol da Caparica é um festival mais familiar, onde já há muitas crianças. Isso faz algumas diferenças.” Ambos os cartazes surgem numa tentativa de fazer uma “mistura” entre figuras consagradas e talentos emergentes. No caso do NOS Alive, nomes sobejamente conhecidos como Carlos Coutinho Vilhena ou Luís Franco-Bastos convivem com o de João Pedro Pereira, jovem de 24 anos, presença assídua no circuito humorístico da cidade do Porto, que alcançou notoriedade em plataformas como o TikTok e o Instagram. “Tento que seja representativo, embora nem sempre seja fácil”, admite o curador.
No caso do Alive, olhando para o cartaz se constata que ao longo dos três dias de festival, dos 26 nomes que passaram pelo Palco Comédia, apenas três são mulheres — e apenas uma subiu a palco sozinha. “É verdade, mas não foi por falta de convites”, justifica Jel. “Fizemos convites a várias comediantes, mas algumas por não quererem, por não terem vontade, outras por questões de agenda, só conseguimos o que temos”.
“Acho que conhecendo a indústria [se percebe que] há muito mais comediantes femininas do que aquelas que aparecem em cartaz”, diz ao Observador Mónica Vale de Gato, a única mulher a atuar a solo no Palco Comédia do Alive. “Há novos nomes da comédia no feminino que também poderiam estar nos festivais e que ainda não estão”, diz. “Ainda há algum machismo”, acredita. “As pessoas ainda pensam que o humor no feminino é para falar de coisas de mulher e não, humor no feminino é humor para toda a gente como é humor no lado masculino.”
Reconhece que “há grandes nomes da comédia que são convidadas e que preferem não atuar em festivais”, mas também crê que há nomes emergentes a quem falta visibilidade. E compara: “Quando ia ao [Lisboa] Comedy Club nunca me cruzava com as mulheres, punham quase uma por dia, parecia só a dose de representação feminina”, lembra. “Agora não, já vou a noites em que estão duas, três, isto é aos poucos. É uma questão de dar oportunidade.”
A questão do género não é exclusiva do festival no Passeio Marítimo de Algés. “Também foi difícil arranjar mulheres para o Sol da Caparica, só lá tenho uma”, diz Jel referindo-se à brasileira Cássia Rodrigues, a única comediante feminina a figurar o line-up. Mais a norte, situação semelhante se verifica no MEO Marés Vivas, que arranca esta quinta-feira, 13 de julho, no Parque de Campismo da Madalena, em Vila Nova de Gaia. Desde 2015 que o festival tem um palco dedicado ao stand-up comedy — começou com o nome Coreto Caixa, com o patrocínio da Caixa Geral de Depósitos, chegou a chamar-se Palco RTP Comédia e este ano é Palco Sapo Comédia. Entre 14 e 16 de julho vão passar por lá nomes como Fernando Rocha, Eduardo Madeira, Hugo Sousa ou Gonçalo Novo. De novo, apenas um nome feminino compõe o certame: Michelle Cascais.
Num olhar pela história da comédia nos festivais de verão portugueses, poucas foram as vezes em que uma mulher foi cabeça de cartaz. Aconteceu em 2017, no Palco RTP Comédia do Meo Marés Vivas com Ana Bola. Ainda assim, o espaço criado nos festivais de música já serviu como tubo de ensaio para experiências de sucesso na comédia com mulheres ao leme: veja-se o fenómeno Inês Aires Pereira e Raquel Tillo. A dupla estreou-se no Alive em 2022 e, um ano depois, esgota salas emblemáticas pelo país com o espetáculo “Nem a Ponta do Mindinho”.