Sobre as margens do rio Sena, no 12.º bairro de Paris, pousa um edifício em madeira. Chama-se Adamant e é um centro de dia para pessoas com perturbações mentais. Esta espécie de barco e respetivos passageiros são os protagonistas do novo filme do documentarista francês Nicolas Philibert, Sobre L’Adamant (Sur L’Adamant, no original), que venceu o prémio máximo no Festival de Berlim este ano — e se estreia esta semana nas salas portuguesas — impondo-se como forte candidato aos Óscares que se avizinham.
Philibert, 72 anos, esteve a bordo dessa estrutura flutuante durante sete meses, de maio a novembro de 2021. Filmou pessoas com distúrbios mentais ligeiros que por ali passam os dias para participar em oficinas artísticas ou só para beber um café. Resistiu a filmar a decadência, e mostrou a poesia dos dias, sem comentários, sem voz off.
Em entrevista ao Observador, numa curta passagem por Lisboa, o cineasta fala sobre a ética de voltar ao tema da saúde mental (que abordara já em O Mínimo das Coisas, em 1996) e o poder limitado, diz, do cinema. “Um filme nunca tem a capacidade de fazer uma revolução.”
Conheceu este centro de dia em 2010 através da psicóloga e psicanalista Linda de Zitter, com quem trabalhou no filme O mínimo das Coisas (1996). Porque passou tanto tempo até decidir filmar?
De facto ouvi falar do centro em 2010, mas só me surgiu a ideia [de filmar] mais tarde, há uns oito ou nove anos. Comecei a pensar no filme porque fui convidado a ir ao Adamant apresentar o meu trabalho. Foi aí que realmente tive a ideia concreta de realizar este filme. O Adamant é um espaço aberto, que acolhe várias pessoas: filósofos, arquitetos, escritores, para dar palestras. Há nove anos fui convidado. Passei lá pelo menos umas duas horas, com os doentes e com o pessoal do Adamant, e gostei muito do sítio. Foi para mim uma revelação, um encontro muito forte. Saí de lá realmente com vontade de fazer o filme. Podia ter começado a filmar logo depois desta minha visita ao Adamant, de facto, mas na altura estava a realizar outro filme, portanto não tinha disponibilidade. E já tinha feito um filme sobre psiquiatria, portanto hesitei. Estive a ponderar durante um certo tempo.
Voltemos a esse primeiro filme. Em O Mínimo das Coisas (1996), começa por filmar pessoas que sofrem com doenças mentais com um certo distanciamento. É no decorrer do filme que a câmara vai conquistando terreno e aproximando-se das personagens. No fim, uma delas, num plano já bem aproximado, diz-lhe: “Agora, estás entre nós”. Neste Sobre L’Adamant (2023), nota-se que há um sentimento de grande proximidade desde logo, a câmara está quase sempre ao nível do olhar de quem está a ser filmado. De que forma foi diferente a abordagem a cada um dos projetos?
Nesse meu primeiro filme, o meu estado de espírito era completamente diferente. Foi um filme que fiz com um certo distanciamento, um pouco em marcha atrás, estava bastante hesitante. A ideia não era minha, foram pessoas próximas de mim, da minha entourage, que quiseram que eu fizesse esse tipo de filme. Disseram-me que tinha de ir à La Borde [a clínica psiquiátrica onde se passa o filme]. Hesitei primeiro, tive muitas reservas em fazer isso… Entrar numa câmara num local como aquele, onde as pessoas pretendem tranquilidade, era para mim um exercício difícil porque uma câmara é um instrumento que pode ferir, pode fazer mal. A imagem pode ser nociva, sabemos todos isso.
Resisti durante um ano. Os meus amigos voltavam à carga e pediam-me para ir à La Borde realizar o filme e eu não queria. Ao fim de um ano, depois de tanto insistência, acabei por ir. Quando cheguei lá encontrei pessoas, doentes, pessoal hospitalar, disse-lhes que tinha muitas reservas e que iria ter muita dificuldade em filmar as pessoas naquela situação. E foram eles próprios que me motivaram, que me encorajaram, que me disseram para não ter medo, que se realmente tinha medo de os instrumentalizar, eles não deixariam isso acontecer. Foram eles que me ajudaram e motivaram a fazer o filme. Fiz este filme também porque fui incentivado por eles para me confrontar com estas reservas que tinha, com estes medos e estas questões todas que me assolavam em relação ao facto de entrar num sítio como este com uma câmara. Fiz o filme para ultrapassar estes sentimentos que tinha. De uma certa maneira, aquilo que disse sobre as minhas reservas e os meus receios em relação à aproximação dessas pessoas, vê-se de um certo modo nesse meu primeiro filme. Aproximo-me lentamente dos protagonistas, em primeiro lugar começo por filmá-los longe e depois há uma aproximação. Reflete totalmente o meu estado de espírito na altura, os meus receios em me aproximar das pessoas. O filme traduz precisamente isso, sim, o tempo que demorou para mim essa aproximação e as dificuldades que senti nessa altura.
No Adamant tive uma perspetiva e um processo completamente diferente. Aliás, vê-se logo quando começo a filmar o homem que canta, a abordagem aqui foi completamente diferente. Como já tinha feito um percurso em psiquiatria já não estava no mesmo estado de espírito. Não precisei fazer esse trabalho de aproximação lenta.
Esse homem canta: “A bomba humana está na tua mão. O detonador está mesmo aí junto ao coração” [verso de La bombe humaine, canção de 1979 da banda francesa Téléphone]. Ainda sobre as preocupações éticas, estes versos são de certa forma uma metáfora para o que tinha nas mãos enquanto realizador?
O homem que canta e do qual falou é o François. Aparece irregularmente no Adamant porque é uma pessoa que está internada, portanto, vai lá poucas vezes. Embora goste de ir lá quando existe um workshop de música. Chegou lá nesse dia e tinha previsto cantar. Eu não sabia quais eram as músicas, ele cantou umas cinco ou seis e eu escolhi precisamente essa porque tinha um eco, tinha um significado especial. Não fui eu que lhe pedi para cantar esta ou outra música. Foi um acaso. Foi um acaso e às vezes os acasos vêm a calhar.
Poderá impressionar quem vê este filme a lucidez das pessoas quanto ao seu tratamento e condição. Estou a pensar, por exemplo, num rapaz que descreve como é olhado pelos demais no metro. O que mais o surpreendeu ao fazer este filme?
Essa lucidez de que fala eu já a conhecia. Já tive oportunidade de lidar com ela quando fiz esse meu primeiro filme. Não posso dizer que aqui tenha ficado surpreendido. Acho que aqui não se fala de surpresa, fala-se mais daquilo que me toca. O que me comove mais neste tipo de situações é a história de cada um e a sua maneira de ser. Apesar de, em relação a surpresas, ficar surpreendido com certas situações, como a lógica do pensamento destas pessoas. Estas pessoas são ao mesmo tempo inesperadas e surpreendentes. Estamos constantemente a ser surpreendidos. Portanto não há uma surpresa, uma coisa que me surpreendesse mais, porque a surpresa acaba por ser sempre constante. Quando queremos e acreditamos que vai acontecer alguma coisa, aquilo que acontece é uma coisa completamente diferente, aquilo em que acreditávamos desconstrói-se rapidamente. As pessoas com quem lidei são espantosas e surpreendentes. São pessoas que nos abrem os olhos sobre a realidade de uma forma que não podíamos esperar à partida.
[o trailer de “Sobre L’Adamant”:]
No início do filme escolhe mostrar a arquitetura do edifício do centro, que tem um sistema que automaticamente, de manhã, abre todas as janelas para receber o máximo de luz natural. A câmara demora-se nesse processo. É uma pista possível para a importância de nos abrirmos ao que nos rodeia?
Podemos ver isso dessa maneira. Esses estores que se abrem ao mesmo tempo, para mim também são pulmões que se enchem de ar, como se fosse uma grande inspiração. São instalações que, todos os dias, abrem de manhã e à noite voltam a fechar-se.
Há diálogos no filme que parecem escritos. Às tantas, um homem no café diz: “Aqui há atores que não sabem que são atores. Dizem que é de saúde. Não é. São atores sem saberem”.
Nada é escrito. Nada é premeditado. As pessoas falam realmente de improviso. Não sei o que se vai passar. Claro que antecipei algumas situações. Aconteceu dizer: venho para a semana, na segunda feira, participar na reunião. Mas não sabia quem ia lá estar e o que ia acontecer. Tudo o que acontece é espontâneo, é vivo, e as coisas são inventadas no presente. Nada é preparado. Não queria que as coisas estivessem preparadas. Acha que eu poderia escrever aquilo que as pessoas deviam dizer, como uma ficção?
Daí a pergunta. A questão é eterna, enquanto documentarista: acredita que está a documentar o real ou crê que há sempre um elemento de performatividade?
Quero dizer duas coisas. Em primeiro lugar, qualquer narrativa independentemente da sua forma tem sempre uma dimensão de ficção. Quando se conta algo que se viu, por exemplo, há sempre uma reinterpretação, uma reinvenção da realidade. Fazer um documentário não é filmar a realidade, porque há sempre uma parte subjetiva. Não é filmar a realidade bruta, é filmar com a nossa subjetividade e assumir alguma coisa. Se perante uma realidade específica pusermos três cineastas a filmá-la vai dar três filmes completamente diferentes. A narrativa é reinterpretação e reinvenção.
Em segundo lugar, só pelo facto de existir uma câmara há uma alteração da realidade. A câmara introduz-se nessa realidade e começa a fazer parte dela, portanto muda a realidade, esses comportamentos. Introduz certas coisas que não poderiam ocorrer se não estivesse ali presente a câmara. Estou sempre presente nos filme que realizo, a minha presença é constante. Eu falo. Não me veem, não veem a minha imagem, mas eu falo e falam comigo. Portanto refiro claramente a minha presença nos filmes. Muitas vezes os cineastas dizem às pessoas que estão a ser filmadas: não olhem para mim, não podem olhar para a câmara, não podem falar comigo. Eu, pelo contrário, incentivo isso. É um encontro entre as pessoas que estão a ser filmadas e o cineasta. Tenho uma presença afirmada nos meus filmes. Não é preciso ser visto, eu estou presente e interajo com as pessoas.
Este é o primeiro filme de um tríptico. Quando é que percebeu que queria fazer uma trilogia, e sobre o que versarão os dois filmes seguintes?
Essa trilogia não estava prevista quando decidi filmar o Adamant. O Adamant era só um filme. Mas entretanto houve outros projetos que apareceram… O que há em comum entre estes três filmes? Envolvem todos o polo psiquiátrico da região Paris-Centro. O primeiro filme é sobre o Adamant, o segundo é sobre a parte hospitalar, o internamento de doentes em psiquiatria, e o terceiro é sobre as visitas domiciliárias do pessoal do Adamant aos doentes que estão em casa. Em Sobre L’Adamant o que é que aparece? Os workshops, as reuniões e os testemunhos dos doentes, as histórias deles. No segundo filme, no hospital, são as conversas entre os psiquiatras e os doentes, portanto há um diálogo, uma troca de ideias. Enquanto no primeiro filme eu não digo quem é quem, eles começam a falar e o espectador é que pode tentar ver quem é quem, no segundo filme como é uma conversa entre o doente e o psiquiatra vê se logo. No terceiro filme, são os doentes que recebem os enfermeiros em casa. Chamam os enfermeiros para resolver um problema doméstico, às vezes estão desamparados, ou porque têm um objeto que se partiu, ou porque têm de montar e desmontar um móvel. Os enfermeiros têm essa vertente de bricolage para poder socorrer em caso de problemas do dia-a-dia que os doentes não conseguem ultrapassar sozinhos.
Porque quis neste filme diluir as hierarquias entre quem quer curar e quem quer ser curado?
Não fiz isso para não ser artificial. O Adamant é um sítio que não se presta a isso. As pessoas estão todas vestidas da mesma maneira, não há uma bata, não há uma farda. Não há nada que assim a priori faça a distinção entre os doentes e o pessoal médico. Portanto, o facto de eu fazer a distinção entre eles estaria em contradição com o espírito. Ali não há sinais distintivos. Como teria feito a diferença? Teria feito um cartão no próprio filme? Teria escrito legendas? Não tinha qualquer interesse em fazer essa distinção porque era importante fazer vacilar essa noção, essa fronteira entre doentes e pessoal médico. Para mim essa é a força do filme, o não dizer quem é quem.
Quando venceu o Urso de Ouro em Berlim, em fevereiro, falou na importância de desestigmatizar a visão que muitos têm das pessoas com doenças mentais. O que pode o cinema realmente fazer?
O cinema não pode salvar a psiquiatria. O que pode reforçar e salvar a psiquiatria tem de vir dos poderes públicos. O facto de suprimirem camas nos hospitais e o facto de não atribuírem enfermeiros suficientes à psiquiatria é nocivo e gostaria de chamar a atenção para isso. Por exemplo, os enfermeiros deveriam passar mais tempo com os doentes. Deveria haver mais enfermeiros para que tivessem mais tempo para passar com os doentes em vez de andarem a correr de um lado para o outro. Isso sim, ajudaria a psiquiatria. O que o cinema pode fazer, por vezes, é contribuir para uma tomada de consciência dos problemas, mas não se deve dar ao cinema mais importância e mais poder do que aquele que verdadeiramente tem.
Se no documentário Ser e Ter [2002] namora uma certa ideia de utopia no sistema de ensino — o filme passa-se numa escola primária rural e mostra um professor modelo de sensibilidade e compreensão a lidar com crianças —, em Sobre L’Adamand [2023] pode dizer-se que fá-lo sobre o sistema nacional de saúde. Não acreditando que o cinema possa salvar o que quer que seja, filmar exemplos excecionais como estes é uma forma de continuar a acreditar na possibilidade de um mundo melhor?
Para mim, Ser e Ter nunca foi uma utopia. Nunca digo isso. Não é uma utopia na medida em que existe. Em relação a esse filme, Ser e Ter, o que vemos é a história de um professor. O público e a crítica é que fizeram desse professor um professor modelo, mas no fundo é um homem que faz o seu trabalho, é uma personagem complexa, é um homem pouco sorridente, um pouco autoritário, apesar de estar à escuta dos alunos dele. Em relação ao que me perguntou, sobre esperar que as coisas melhorem… Acho que um filme nunca tem a capacidade de fazer uma revolução. Raramente pode restabelecer as coisas. Pode ajudar a uma tomada de consciência e pode voltar a dar energia a certas equipas de psiquiatria que estão desmotivadas. Pode encorajá-las e pode dar origem a certos debates sobre a questão, o que é interessante. Pode mudar os preconceitos dos espectadores. Mas não acredito que os políticos se inspirem em filmes como este para mudar as coisas. Aliás, o presidente [francês, Emmanuel] Macron escreveu um tweet para me dar os parabéns pelo facto de eu ter ganhado o Urso de Ouro, mas não é isso que vai mudar a psiquiatria ou o sistema nacional de saúde. A psiquiatria continua a estar degradada. Continua tão degradada como antes. É preciso agarrar o boi pelos cornos e tomar medidas fortes, mas é uma coisa que não está a acontecer.
Estudou filosofia e todos os seus filmes acabam por evocar questões filosóficas. Já falou algumas vezes como os escritos e o pensamento de Michel Foucault têm uma influência na sua obra e forma de ver o mundo. Na História da Loucura, Foucault aponta esta ideia do “navio dos loucos”, nos quais pessoas eram enviadas em viagens ou peregrinações para longe das cidades para que pudessem “encontrar” a sua razão e sanidade. Pensou nesta alegoria ao fazer este filme que se passa num edifício que está sobre a água, porém atracado no centro da cidade?
(sorri). Acho que respondeu à sua própria pergunta. A “nave dos loucos” queria afastar e tornar invisíveis as pessoas que sofriam de loucura, ao passo que o Adamant é o oposto. Está no coração de Paris, no centro. É visível. E se uma vez ou outra me recordei da “nave dos loucos” foi precisamente para ter em mente que o Adamant não tinha nada a ver com isso.