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DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

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No democrata Connecticut, há afro-americanos e Gen-Zs que não votam em Kamala Harris

No Connecticut, os republicanos não vencem as presidenciais desde 1988. Mas, em 2024, há bolsas do eleitorado no estado que não confiam em Harris. "Os democratas abandonaram-nos", dizem.

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Cornell Lewis parece apenas um pacato homem de 75 anos. Magro, com uma barba branca rala e uma boina na cabeça, não chama a atenção neste Dunkin’ Donuts no meio de uma auto-estrada que atravessa Bloomfield, um bairro do norte de Hartford, capital do estado do Connecticut. O que não se vê à primeira vista é o revólver que traz sempre consigo, guardado na pequena bolsa que traz ao ombro. Nem as imagens que já circularam, ainda disponíveis online, de Cornell a liderar patrulhas populares de metralhadora na mão.

Este afro-americano liderou ao longo dos últimos anos um movimento que muitos na comunidade apelidaram de milícia popular e condenaram como incitando à violência. Sem título oficial, Lewis chama-lhe “A Brigada de Auto-Defesa”, uma “coligação” que une negros, latinos e a comunidade LGBT para aprenderem a defender-se, através do porte de armas licenciado e aulas de artes marciais.

Para ele, tudo começou há poucos anos, num dia normal no bairro onde vive, Bloomfield.  “Passava pouco da hora de almoço. Estava em casa e ouvia os barulhos habituais da televisão dos vizinhos, as novelas latinas como a ‘Rubi’… Até que começo a ouvir gritos de ‘Não, não, não!” Saio de casa para ver o que se passava e um vizinho diz-me: “Estão a violar uma mulher ali, em plena luz do dia!”

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Lewis entrou em ação. Chamou a sua cadela, uma dobermann treinada chamada Storm (“Tempestade”). Aproximaram-se lentamente da mulher, que continuava a gritar, e do homem, de calças em baixo. “Já o apanhámos”, pensou. Deu ordem à cadela e esta atacou o violador, enquanto Cornell foi ter com a mulher para a ajudar. “Foi isto que me fez começar”, afirma de ar solene.

[Já saiu o quinto e último episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio, aqui o segundo, aqui o terceiro e aqui o quarto episódio .]

Um antigo “pendejo” que foi estudar Teologia e liderou uma manifestação armada até ao gabinete do mayor democrata: “Eles tomaram-nos por garantidos”

Bloomfield é um bairro do North End de Hartford, conhecida por ser uma das zonas mais pobres de todos os Estados Unidos da América, com um rendimento médio de 12 mil dólares por ano (a média nacional é de quase 38 mil dólares) e uma taxa de desemprego que atinge quase os 30%. Também é conhecida por ser um lugar de elevada criminalidade, com gangues como os latinos Los Solidos e os afro-americanos 20 Luv a controlarem ali o tráfico de droga.

O episódio da violação foi a gota de água para Cornell. “Decidi que tínhamos de ajudar as pessoas, não interessa quem: negros, porto-riquenhos, muçulmanos… A certa altura começou a aparecer a comunidade LGBT também e juntou-se a nós. Imagine, as senhoras porto-riquenhas na igreja, que nunca tinham visto uma pessoa transgénero!”, conta, acompanhado de uma sonora gargalhada. “Mas elas habituaram-se. E formei esta coligação.” A primeira ação foi simples: criar uma escala de 24 horas, sete dias por semana, de moradores armados a fazer patrulha no bairro.

Seguiram-se negociações do próprio líder com os gangues, garante Cornell. “Tenho algum traquejo dos meus tempos de pendejo”, diz, piscando o olho. Nascido e criado em Detroit, foi um óptimo aluno, mas não conseguiu bolsa para estudar na Universidade, apesar do apoio dos professores e da escola. “Comecei a fazer porcaria”, admite. Aos 17 anos, foi detido pela primeira vez. Não seria a última, confessa, sem entrar em grandes detalhes. A certa altura da conversa, aborda brevemente um contacto que terá tido com os Black Panthers, mas não elabora. E é difícil travar o discurso de Cornell Lewis, habituado a falar e a liderar grupos.

Cornell Lewis criou uma brigada de Auto-Defesa para ajudar os seus co-cidadãos.

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Anos mais tarde, reergueu-se. Conseguiu juntar dinheiro para um curso superior e mergulhou na Teologia. Estudou grego antigo, leu os clássicos — e politizou-se. A mistura de Teologia, Filosofia e História moldou-o. “No Sermão da Montanha, Jesus fala a muitas pessoas que ali se juntam, não apenas aos judeus. Na República, Platão diz que homens e mulheres, apesar de serem diferentes, devem estar lado a lado para policiar a comunidade. E depois, ao ler História, compreendi que os grupos sociais têm gente muito diferente, mas com o mesmo propósito.”

Estavam criadas as bases para o seu manifesto, que aplicaria com a força das armas nas ruas do North End. A morte de George Floyd — o afro-americano estrangulado por um polícia em 2020 que provocou manifestações intensas por todos os EUA — deu gás ao seu movimento local de auto-defesa. “Juntei 600 pessoas para nos manifestarmos. O mayor ficou assustado, porque levámos as nossas armas”, conta, sobre a marcha em direção ao seu gabinete. O grupo ia desde homens musculados a senhoras que traziam as armas nas suas malas Gucci. Organizavam-se com Cornell à frente, com outros membros armados nos flancos. Usavam batedores para perceber o terreno, comunicavam por sinais e até em dakota (língua da tribo de nativo-americanos).

Em Hartford, o mayor Arunan Arulampalam, do Partido Democrata, condenou as ações do grupo de Cornell: “A nossa comunidade já viu tanta dor e trauma e aquilo de que precisamos é de que aqueles que amam a nossa cidade trabalhem para curar esse trauma. Não que andem pelas ruas com armas a tentar fazer justiça pelas próprias mãos”, disse à altura.

No ano passado, o estado do Connecticut mudou as suas leis relativamente ao uso de armas. Agora, mesmo tendo licença para porte de arma, é proibido mostrá-las em público — o chamado “open carry”. Cornell Lewis não tem dúvidas: “Mudaram a lei por nossa causa.” E isso inclui republicanos e democratas, acusa. “Os democratas fizeram merda. Tomaram-nos por garantidos e agora estão em apuros. Muitos negros vão votar em Trump”, garante, levantando a sobrancelha direita. “Os democratas falam em democracia, mas atiraram Joe Biden borda fora e puseram Kamala lá.”

No campus de Yale, os Gen-Z tomaram Gaza como bandeira e criticam a guinada “à direita” dos democratas

A menos de 80 quilómetros daquele Dunkin’ Donuts, há um Connecticut completamente diferente. Nas ruas de New Haven, os cafés modernos e os edifícios góticos da Universidade de Yale estão por todo o lado e parece impossível imaginar que ali alguém esteja armado. Seria difícil encontrar um estudante que concordasse com o “manifesto” de Cornell Lewis. Afinal, Joe Biden venceu aqui com mais de 80% dos votos em 2020. No Connecticut, um republicano não vence nas presidenciais desde George H. W. Bush, em 1988.

O que não significa que estejam todos ao lado dos democratas e de Kamala Harris nesta eleição, como prova um cartaz afixado num dos boletins onde se colocam anúncios para encontrar um quarto e se anunciam as próximas festas. O panfleto parece um dos habituais usados pelos eleitores para mostrar apoio aos democratas, com os nomes “Harris” e “Walz” em letras garrafais. Mas por baixo, em letra mais miúda, estão escritas três palavras: “Matam, matam, matam.”

No centro do Old Campus da Universidade de Yale há um cartaz que é idêntico aos cartazes de apoio a Harris e Walz, mas este tem escrito em letras mais pequenas “Matam, matam, matam".

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É um reflexo de abril passado, quando os estudantes de Yale se juntaram às manifestações um pouco por todas as grandes universidades norte-americanas em solidariedade com a Palestina. No relvado do Cross Campus, o exato local onde o cartaz está afixado em frente a um dos edifícios, estiveram acampados centenas de estudantes naquilo a que chamaram “zona libertada”. Acabariam por sair depois de negociações com a direção da Universidade, em ambiente tenso, para evitar o que tinha acontecido dias antes, quando centenas acamparam na Beinecke Plaza — escolhida por ter sido palco de manifestações contra o apartheid na África do Sul no passado —, cortaram uma estrada e mais de 40 pessoas acabaram detidas.

Foi neste local, no Cross Campus, que estiveram acampados centenas de estudantes em solidariedade com a Palestina.

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Abdul Osmanu foi um dos que esteve na Beinecke naqueles dias de abril. “Estava tanta, tanta gente… Foi uma das coisas mais loucas que já vi na vida”, confessa ao Observador o jovem de 22 anos, que trabalha como consultor político — e foi o mais jovem de sempre a ser eleito para a assembleia de freguesia de Hamden, um subúrbio de New Haven.

É um ardente defensor da causa palestiniana, estando agora envolvido na campanha No Votes for Genocide (“Nenhum voto pelo Genocídio). Estamos no café MOTW, sigla para Muslims All Over the World (“Muçulmanos de Todo o Mundo”), um espaço moderno onde um neon amarelo anuncia “Café com um propósito” e jovens de hijab e maquilhagem carregada trabalham nos seus computadores Mac. Quem o trouxe para o encontro com o Observador foi Chris Garaffa, ativista da mesma campanha, mas mais experiente. À beira de fazer 40 anos na semana a seguir à eleição (“Se sobrevivermos”, comenta em tom de graça”), lembra-se bem de ter participado nos protestos contra a guerra no Iraque. À altura, diz, a Palestina não era tema. “Agora é o oposto: não se pode ser anti-guerra e não ser pró-Palestina”, decreta.

New Haven, onde fica a Universidade de Yale, é um condado extremamente democrata. Mas, desta vez, Harris não terá o mesmo apoio, asseguram estes dois ativistas. Gaza é o motivo. Para o provar, dizem, apontam para os resultados da campanha Uncomitted (“Não Comprometidos”) nas primárias do Partido Democrata (em que os eleitores que queriam protestar pela situação no Médio Oriente escolheram escrever a palavra no boletim de voto em vez de votar em Biden ou noutro candidato democrata). A nível estadual, 11% votaram Uncommitted; em New Haven, foram mais de 20%.

Mas Chris e Abdul consideram que, apesar de Gaza dificilmente mudar a provável vitória de Harris no Connecticut, pode ter reflexos bem mais graves para a candidata noutros lugares. “Se os democratas perderem o Michigan, é por causa disto, por causa do voto da comunidade muçulmana. Eles tradicionalmente votam nos democratas, mas estão a mudar, porque os democratas recusam acabar com aquele genocídio”, afirma Chris. O que poderia fazer esses eleitores mudarem de posição? O ativista é claro: um embargo do armamento norte-americano para Israel. “Se ela o fizesse, muitos votariam nela. Assim não.”

Abdul (esquerda) e Chris (direita) são defensores da causa palestiniana.

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No caso destes dois ativistas, Harris já não contaria com o voto deles de qualquer forma. Ambos preferem optar por terceiros candidatos, como Jill Stein (do Partido Verde) e Claudia De la Cruz (Partido pelo Socialismo e pela Libertação), uma posição partilhada por muitos dos Gen-Z, a geração que estuda agora em Yale, garantem. “A cada eleição, o Partido Democrata chega-se mais e mais para a direita. Kamala tem o apoio de Dick Cheney e tem orgulho nisso! Se o Kissinger fosse vivo e a apoiasse, ela ia promover isso”, diz, de olhos arregalados, como quem não quer acreditar.

“Ela está literalmente à direita de Biden em tudo, excepto na questão de Gaza, porque Biden foi um sionista zeloso toda a vida e nós sabemos”, acrescenta Abdul. “Mas nos outros assuntos… Olhem para o fracking”, pede, notando como a candidata nas primárias de 2020 disse ser a favor de abolir a prática de extração de gás de xisto e agora recuou. Qual das posições é aquela em que verdadeiramente acreditará Harris? Chris diz que não é possível saber. “Ela disse o que tinha de dizer para ganhar votos nas primárias. Agora diz o que tem de dizer para ganhar votos nesta eleição. Ponto.”

Abdul, um afro-americano recém-licenciado em Ciência Política que já tem contacto com a política local, acrescenta que já conhece “demasiado bem” os bastidores para votar “num candidato democrata só porque sim”. O tema Gaza, diz, é o exemplo clássico do distanciamento entre os eleitores do partido e a liderança. “Todas as mudanças começam pelas massas e nós vamos tentar ganhar toda a vantagem que conseguirmos. Sabemos que eles vão fazer orelhas moucas durante pelo menos os próximos três anos. Mas vamos continuar a tentar.”

“No subconsciente da América, ainda existe a ideia do ‘preto mau’”. Para alguns afro-americanos, vale mais arriscar e trocar Harris por Trump

No North End, no Dunkin’ Donuts sem neons nem música chill out, Cornell Lewis também defende que as massas devem fazer-se ouvir e vê o radicalismo como um dos meios mais eficazes para atingir fins políticos. “Adoro o Robespierre. Perdoar aos inimigos só depois de ter acabado com eles”, diz, fazendo um gesto como se fosse uma guilhotina a cair, enquanto ri.

A causa de Gaza, contudo, não o mobiliza. “Eu arrisquei o pêlo. Mas comecei a receber ódio não apenas de políticos, mas de outros ativistas invejosos”, diz, explicando que tem sido criticado por não se posicionar sobre o tema, justificando-o com o facto de ter “amigos dos dois lados”. Muitos dos ativistas, a maioria os Gen-Z que entram agora na política, não lhe agradam: “Eles não observam, não escutam, não sabem ser humildes e aprender. Muitos gritam e fazem barulho. Mas quando os cavaleiros brancos, os do [Ku Klux] Klan, aparecem, eles escondem-se entre a erva alta.”

A questão racial é o que motiva Cornell, por a sentir mais de perto. “A América tem um problema com a raça. No subconsciente, ainda existe a ideia do ‘preto mau’”, explica. “São os três D: dumb, dangerous and depraved (burro, perigoso e depravado). Mas também havia aquele ‘preto mau’ que nas plantações deixava o dono dos escravos a dormir com um olho aberto, com medo. Depois vieram outros assim. Como o Malcolm X. Como o Huey P. Newton [membro fundador do grupo Black Panthers].”

Lewis diz que tenciona votar em Trump no próximo dia 5.

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Não há dúvidas de que Cornell Lewis também se vê como um desses líderes negros do passado, um revolucionário. Mas, contudo, diz que agora está “reformado”. “Um dia acordei e pensei: ‘Estou cansado. Já fiz tudo o que tinha de fazer’”. Agora, passa a maior parte do dia a estudar música, sobretudo percussão, como mostra o pequeno tambor que trouxe consigo e que está pousado em cima da mesa. E a recordar os feitos do passado a quem o quiser ouvir, exibindo os vídeos das manifestações que liderou no Connecticut, de metralhadora na mão.

Quando lhe perguntamos em quem tenciona votar no próximo dia 5, murmura, enquanto dá três batuques no tambor, “Bump bump bump, vote for Trump”. Aponta duas principais razões para isso: a economia (“As pessoas hoje já nem conseguem comprar frango, comem papas de aveia”) e a imigração (“Há pessoas da minha comunidade a viver na rua e chegam outros e têm direito a viver num condomínio”).

O Black Panther do North End de Hartford está descrente na democracia, que diz que “não se aplica aos negros neste país”. Mas vai votar à mesma: “Os democratas já não nos representam. Para mim, apoio quem quer que esteja disposto a ajudar-me”, diz, evitando dizer o nome Donald Trump, mas deixando evidente que o republicano vai contar com o seu voto. Para Cornell Lewis, algumas leis das ruas também se aplicam na política. “O inimigo do meu inimigo meu amigo é”, sentencia. E, sobre Trump, acrescenta uma última frase: “Pode abraçar-me na segunda-feira e bater-me na quarta. Mas pelo menos abraçou-me.”

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