Como é costume, o ano de 2015 na Alemanha ia fechar com um discurso de Angela Merkel. Foi a 11ª vez que a chanceler se sentou àquela secretária, com a cúpula envidraçada do Reichstag, o parlamento germânico, ao fundo. As expectativas eram que Merkel falasse da crise dos refugiados, que em todo o ano de 2015 levou a que cerca de 1,1 milhões de pessoas entrassem na Alemanha — depois de a chanceler ter aberto as portas àqueles que fugiam de conflitos como os que assolam o Iraque e, sobretudo, a Síria. E, sem surpresa, foi esse o tema da sua intervenção de 31 de dezembro de 2015. O tom foi de otimismo:
“Estou convencida de que, se for abordada de forma correta, a grande tarefa que hoje nos é colocada com a chegada e integração de tantas pessoas será uma oportunidade para o amanhã.”
Aquele “amanhã” de Merkel era figurativo, indicando na verdade que “a grande tarefa” será algo com que a Alemanha terá de lidar durante os próximos anos. Mas foi outro “amanhã”, neste caso literal, que mudou por completo o debate em torno dos requerentes de asilo que a Alemanha recebe.
O relato do que se passou na noite de ano novo em Colónia é conhecido, apesar de todo o caso estar agora sob investigação. Como é costume naquela cidade na região Oeste da Alemanha, perto das fronteiras com a Bélgica e a Holanda, alguns milhares de pessoas juntavam-se na Bahnofsvorplatz, que tem de um lado a estação ferroviária e do outro a catedral de Colónia.
Segundo os vários relatos que surgiram nos dias seguintes, entre a multidão estavam cerca de mil homens árabes que faziam explodir pequenos engenhos pirotécnicos com regularidade — algo que, de resto, é comum em países como a Alemanha e a Holanda nos poucos dias que antecedem a passagem de ano. Pouco comum foi o que se passou a seguir.
“Parecia que havia mãos em todo o lado a agarrar os corpos das mulheres”, escreveu a Der Spiegel, recorrendo a um caso de um grupo de duas estudantes universitárias que passaram o ano naquela praça, juntamente com um amigo rapaz. A mesma revista escreve que as duas jovens não têm a certeza da identidade dos seus agressores sexuais. Mas, à semelhança de todos outros relatos, apontam o mesmo: falavam uma língua estrangeira. Aparentemente árabe.
Os dias que seguiram foram de mais e mais relatos. E queixas, também: ao todo, a polícia de Colónia recebeu 809 queixas. Segundo as autoridades, 521 são queixas de assédio sexual, incluindo três violações.
Neste momento, as autoridades de Colónia estão a investigar 21 pessoas por suspeitas de roubos, tráfico de bens furtados e também assédio sexual. O mesmo se passou em Dusseldorf, a menos de 50 quilómetros, onde 290 pessoas foram interpeladas pela polícia, das quais 40 acabaram por ser detidas. As buscas foram feitas a bairros predominantemente habitados por imigrantes de origem árabe e também a centros de acolhimento para refugiados, onde terão sido encontrados alguns dos bens roubados na Bahnofsvorplatz na noite de 31 de dezembro.
Entre os suspeitos que ficaram sob custódia, há pelo menos dois refugiados argelinos. Um deles, um homem de 26 anos, é suspeito de ter roubado um telemóvel e também de assédio sexual.
“Sempre dissemos que isto ia acontecer”
Ainda há muito para apurar quanto ao que realmente se passou na noite de ano novo em Colónia. Uma das maiores dúvidas reside na ideia inicialmente aventada de que a onda de assaltos e assédios sexuais que motivaram as queixas foi orquestrada. Como se os cerca de mil homens de origem árabe ali estivessem reunidos com um propósito comum e sob uma só batuta. Outra, será perceber quem realmente são aquelas pessoas, nomeadamente se a existência de refugiados entre elas é predominante — para já, o número de detenções de requerentes de asilo tornadas públicas indicam que não.
Apesar disso, o eurodeputado do partido de direita populista Alternativa para a Alemanha (AFD, na sigla germânica) Marcus Pretzell, deixa pouco espaço para dúvidas na sua interpretação do que se terá passado naquela noite. “Tudo que aconteceu na noite de ano novo é algo que o nosso partido já anda a prever desde 2013, quando fomos fundados”, diz ao Observador numa entrevista por telefone. Para Pretzell, que é também o dirigente da AFD na região da Renânia do Norte-Vestefália, onde se inclui Colónia, acontecimentos como este são uma consequência direta da política de acolhimento de refugiados adotada por Merkel. “Sempre dissemos que isto ia acontecer se deixássemos entrar vários homens novos de uma determinada cultura num país como a Alemanha. Sempre dissemos que isto ia mudar a nossa sociedade. O que aconteceu foi a confirmação óbvia de que tínhamos razão desde o princípio.”
A princípio, Pretzell descreve o que se passou na noite de ano novo como “violações em massa”. “Isto já não acontecia na Alemanha desde 1945”, diz, em alusão ao ano em que Hitler perdeu a II Guerra Mundial perante a conquista de Berlim pelo Exército Vermelho. Como também aconteceu noutras situações semelhantes, com particular ênfase na Polónia, houve soldados soviéticos que abusaram sexualmente das populações locais. Embora mais à frente na entrevista retire o termo “violações em massa”, Pretzell insiste na excecionalidade do que se terá passado. “Houve pelo menos três violações num ambiente em que mais de um milhar de pessoas estavam rodeadas de polícias, que não conseguiam fazer nada.”
Para o eurodeputado do AFD, que tem ligações intrínsecas ao movimento anti-islâmico Pegida, só há um paralelismo possível entre a noite de ano novo em Colónia. “Olhemos para o que aconteceu no Cairo nos últimos anos, com mulheres a serem violadas em locais públicos com milhares de pessoas à volta”, começa por dizer. “Não podemos dizer que qualquer árabe faria uma coisa destas. Agora, eu não sei como é que as coisas são em Portugal, mas nunca ouvi falar de nada disto por esse lados. E certamente que não acontece em países como a França ou Reino Unido. Mas já acontece na Alemanha.”
Cairo, Colónia e… Oktoberfest?
Se para Marcus Pretzell tudo isto representa uma novidade na Alemanha, a jornalista Stefanie Lohaus aponta na direção oposta. Para a fundadora da revista feminista Missy, o assédio sexual e até as violações em locais públicos não são recentes na Alemanha. E o exemplo disso é um dos eventos mais típicos e conhecidos daquele país — o Oktoberfest, em Munique.
“Eu já lá fui e detestei tudo, foi horrível. Há homens bêbedos por todo o lado que perdem quaisquer inibições. Passamos por eles e começam logo a pedir um beijo e coisas do género, sempre a dizer ‘vá lá, não sejas pudica’. Isto é o mínimo. Foi uma experiência nojenta”, diz ao Observador pelo Skype.
Um relato semelhante foi feito por uma jornalista do Süddeutsche Zeitung em 2011, que escreveu sobre a sua ida àquele festival na Bavária: “Fazer o caminho até à casa de banho é o mesmo que passar por uma masmorra. Ao longo de 15 metros, é certo que vais receber três abraços de desconhecidos alcoolizados, duas palmadas no rabo, alguém a olhar-te pela saia acima e ainda vão entornar-te cerveja de propósito mesmo em cheio no decote.”
Segundo o site Oktoberfest.net, um guia não-oficial daquele evento anual, em 2013 foram foram registadas duas violações e 16 casos de agressão sexual naquele festival que se prolonga durante 16 dias. Não foi um exclusivo desse ano. Por exemplo, em 2009, a polícia de Munique registou cinco violações (ou tentativas de). Em 2010, o número baixou para três. A acrescentar a isto, o número de lutas, agressões físicas e assaltos ultrapassa as centenas.
Pretzell recusa a comparação de Colónia com o Oktoberfest, negando que tal se passe no festival de Munique. “Eu já lá estive e posso dizer seguramente que não há homens brancos a violar mulheres brancas em massa e em público”, diz exaltado. Por outro lado, Lohaus acredita que o debate que se seguiu à noite de ano novo em Colónia demonstra que há critérios diferentes, consoante a identidade do agressor sexual: “Porque é que não falamos disto [Oktoberfest] também? Se calhar é porque no Oktoberfest são todos brancos e em Colónia não”.
Lohaus ouviu as primeiras notícias sobre Colónia a 3 de janeiro. Estava fora de Berlim, onde vive e trabalha, “no campo”, onde planeara “começar o ano com calma, com o mínimo de internet possível”. Em vão. Demorou pouco tempo até ter começado a ler artigos sobre o assunto. Na altura, devido ao estado de choque e à falta de informação disponível, o que ia sendo publicado era sobretudo material especulativo. Porém, houve algo que sobressaiu aos olhos desta jornalista: a linguagem usada. “Havia uma tendência nos jornais, sobretudo nos tablóides, para exagerar tudo. Falava-se de uma multidão de homens africanos e do Médio Oriente a violar mulheres brancas, incessantemente, à vista de tudo e todos. Fiquei chocada com a linguagem. Porque primeiro começaram a falar de ‘homens árabes’ e depois rapidamente passaram a chamá-los de ‘refugiados’.”
Para Lohaus, usar o facto de os suspeitos serem de origem árabe e, consequentemente, maioritariamente muçulmanos, não é o melhor início de conversa. “É verdade que se olharmos para os vários rankings que ordenam os países consoante o respeito aos direitos das mulheres, sabemos que os países africanos e do Médio Oriente estão sempre mal cotados e que na Europa estamos melhor”, concede. “Mas isso é um assunto muito complexo, que, sim, tem raízes na religião, mas pode surgir tanto do islamismo como do cristianismo.”
Assim, esta jornalista defende que o debate pós-Colónia deve centrar-se antes nos direitos das mulheres e não na identidade dos abusadores. “E se falássemos antes das autoridades?”, atira Lohaus.
Primeiro, a polícia. “O que aconteceu foi que a polícia alemã não reagiu perante as mulheres que estavam a ser atacadas, nem soube protegê-las”, disse, fazendo eco das críticas que apontaram para a inação das autoridades e que culminaram na dispensa do chefe da polícia de Colónia. Depois, as leis. “Há um problema enorme na lei alemã, que só considera que há um crime sexual se houver resistência por parte da vítima. Por exemplo, se uma pessoa estiver em estado de choque e não fizer nada durante o ataque, a lei alemã não faz nada”, explica.
“Não podemos reagir a um crime com outro crime. O racismo não pode ser a nossa resposta ao sexismo”, argumenta Lohaus. Quanto a respostas, há uma que esta feminista admite ainda não ter conseguido encontrar: “Não entendo porque é que não havia alemães naqueles grupos [de Colónia]. Não consegui entender, ainda. Mas duvido que tenham sido apenas refugiados, como os tablóides querem tentar convencer as pessoas.”
Uma crítica comum por parte dos setores mais conservadores e anti-imigração da Alemanha foi dirigida precisamente à maior parte dos feministas. O caso foi comparado com a onda de indignação de há três anos, depois de uma jornalista ter escrito uma coluna onde acusava um ministro de lhe ter feito um comentário sexual. A polémica ficou cunhada pelo termo “aufschrei” (grito), prontamente utilizado numa hashtag, que levou à partilha de várias situações de “sexismo quotidiano” na Alemanha.
Se tal pode servir de amostra, o Observador abordou sete instituições ou personalidades feministas da Alemanha para este artigo. Após ter sido explicado o tema em questão, apenas Stefanie Lohaus, que entretanto co-fundou a #ausnahmslos (#semdesculpas), uma iniciativa simultaneamente anti-sexista e anti-racista, acedeu a ser entrevistada.
Para Pretzell, o eurodeputado da AFD, o argumento da duplicidade de critérios deve ser devolvido às “ditas feministas”, como diz, que acusa de estarem em “silêncio”. “Acho que devemos questionar se estas ditas feministas são mesmo feministas, ou se o são apenas quando é para ser contra homens brancos. Agora, se quando a situação fica um bocado mais complexa, como em Colónia, deixam de ser feministas… Por mim tudo bem.”
Lohaus contra-argumenta. “O facto de eu ser feminista não significa à cabeça que eu não sou anti-racista, também. O que interessa aqui é encontrar os culpados e responsabilizá-los. E também refletir de que maneira é que as nossas autoridades e as nossas leis podem melhorar para responder a uma situação destas. Se virmos isto somente como um episódio em que homens estrangeiros começaram a abusar de mulheres brancas, não iremos a lado nenhum”, diz, sustentando a sua tese no relato de uma turista norte-americana que foi protegida naquela noite por um grupo de refugiados sírios.
“Sou sírio e fiquei em casa. Amo-vos a todos.”
À medida que os primeiros dias após a passagem de ano se seguiram, as notícias, por um lado, e os rumores, por outro, foram subindo de intensidade. Sakher Al-Mohamad, um sírio de 27 anos que vivem em Colónia desde 2014, apercebeu-se disso. “Houve logo pessoas que tentaram convencer os outros de que todos os refugiados podem chegar à Alemanha e fazer coisas daquelas”, disse numa conversa por telefone com o Observador.
Uma semana depois dos acontecimentos, a 7 de janeiro, Sakher sentiu a necessidade de usar o alemão que tem aprendido nas aulas para escrever um post no Facebook a distanciar-se dos ataques:
“Olá a todos. Eu sou da Síria e vivo em Colónia. Acho que esta é a cidade mais bonita da Alemanha, porque as pessoas são simpáticas e amigáveis com toda a gente. E quero dizer-vos uma coisa: eu não saí de casa na noite de ano novo. Amo-vos a todos….”
Apesar de ter tido algumas reações positivas naquela rede social, Sakher achou que isso não chegava. Assim, decidiu sair à rua — mais propriamente para a Bahnofsvorplatz, onde ocorreram os crimes de 31 de dezembro. Juntou-se com alguns amigos, todos sírios e muçulmanos, empunhando cartazes com uma mão dizendo “Sírios Contra o Sexismo” e frases semelhantes. Na outra mão, tinham rosas, para entregar às mulheres que estivessem de passagem. Estiveram presentes cerca de 500 pessoas, de acordo com relatos dos media no local.
Na altura em que falou com o Observador, Sakher estava a fazer os últimos preparativos para a manifestação. “Eu não faço isto para pedir desculpa pelo que aconteceu, porque eu não sou responsável nem sequer concordo como que foi feito”, diz. “Mas faço isto para lamentar a situação, para dizer claramente a todas as pessoas que somos mesmo contra isto. Queremos que compreendam que todas as sociedades têm pessoas boas e pessoas más.”
Até agora, o sírio de 27 anos garante que só teve boas reações parte dos alemães com quem se tem cruzado. “As pessoas continuam a favor da vinda dos sírios para cá”, diz, apesar das sondagens que provam que esse número está em decréscimo. “Toda a gente diz que os refugiados são bem vindos. Mas há políticos que querem mudar esse discurso, querem tirar proveitos da crise dos refugiados e usá-la para espalharem o medo.”
Merkel perde apoio, opinião pública muda em relação aos refugiados
As sondagens contradizem esta avaliação de Sakher. Segundo um estudo de opinião do YouGov publicado no tablóide Bild, os alemães estão (ainda) menos tolerantes ao crescente número de requerentes de asilo. Em quase um ano, entre fevereiro de 2015 e janeiro de 2016, o número de alemães que diz que o número de refugiados a chegarem ao país é “muito alto” subiu de 45% para 62%. E caiu de 27% para 18% a percentagem dos que defendem que podia haver mais requerentes de asilo.
A popularidade de Angela Merkel também está em queda livre. Numa sondagem feita entre 15 e 18 de janeiro, apenas 32,5% dos inquiridos disseram que votariam na CDU (União Democrata Cristã), o partido liderado por Merkel, caso houvesse eleições imediatamente — um valor bem distante dos 41,5% obtidos nas eleições de 2013 e dos 42% que a mesma empresa de sondagens lhe apontava há um ano.
Ao mesmo tempo, a AFD sobe em flecha, a par das críticas à política de portas abertas (que deu um novo significado à expressão ‘willkommenskultur’) que Merkel anunciou no verão de 2015, em pleno pico de crise dos refugiados. Na mesma sondagem que aponta para o resultado mais baixo da CDU desde que Merkel subiu ao poder em 2005, a AFD surge com 12,5% dos votos. A confirmar-se, essa votação seria suficiente para fazer da AFD o terceiro maior partido do país. É uma subida a pulso: em 2013, o partido teve apenas 4,7% dos votos, ficando aquém do limiar de 5% para ter deputados no Reichstag.
Mas o coro de críticas que envolve Merkel não parte apenas de fora do seu partido — também já há vozes na CDU a levantarem-se de forma clara contra a chanceler. A mais alta de todas vem da Baviera, onde a CDU tem como representante a CSU (União Cristã Social), cujo líder, Horst Seehofer, já ameaçou avançar para o Tribunal Constitucional se Merkel não fechar as fronteiras, acusando-a de ir contra a lei. “Nos próximos 14 dias, vamos entregar um pedido por escrito para o governo federal restabelecer a legalidade das nossas fronteiras”, disse. “Se não o fizer, o governo da Baviera não terá outra escolha além de apresentar um queixa ao Tribunal Constitucional.”
Também o Presidente alemão, o apartidário Joachim Gauck, veio dizer que a implementação de quotas de refugiados na Alemanha, ao invés da política de fronteiras abertas, pode ser “moral e politicamente necessária”.
As dúvidas em redor de Merkel surgem até do Bild, o jornal mais vendido da Europa e geralmente uma publicação elogiosa para a chanceler. Ainda assim, no domingo, deixava a seguinte pergunta na capa: “Será que Merkel ainda é a mulher certa?”.
Em declarações a 9 de janeiro, Merkel lançou a hipótese de poder deportar mais rapidamente refugiados que cometam crimes. “A questão depois de Colónia é saber: quando é que se perde o direito de estar connosco?”
Não foi uma declaração desprovida de simbolismo. Pela primeira vez, quando se tratava da maneira como a Alemanha recebe os refugiados, em vez de dizer algo concreto, Merkel lançou uma dúvida. As respostas terão de ficar para “o amanhã” figurativo de que a chanceler falava, antes da noite de Colónia que tudo mudou.