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AFP via Getty Images

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Nova Orleães. Um "lobo solitário" que pode ser sintoma do renascimento do Estado Islâmico

Em 2019, os EUA proclamaram a morte do grupo. Seis anos depois, uma bandeira do EI aparece no carro de um terrorista que matou 15 pessoas no país. Como é que os jihadistas renasceram das cinzas?

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Os alarmes sobre a reconstrução do Estado Islâmico começaram a soar nos Estados Unidos no início de 2024. Do outro lado do globo, o grupo jihadista tinha começado a reerguer-se das cinzas, deixadas pela intervenção liderada por forças norte-americanas cinco anos antes, e reivindicado atentados no Irão e na Rússia. Nas primeiras horas de 2025, este renascimento fez-se sentir no próprio território norte-americano.

Na noite de passagem de ano, Shamsud-Din Bahar Jabbar avançou com um carro sobre uma multidão que celebrava na principal rua de Nova Orleães, no estado do Louisiana, e matou 15 pessoas. No carro, levava uma bandeira de fundo negro com palavras em árabe — a bandeira do Estado Islâmico. Nas redes sociais, tinha deixado vídeos sobre o que o levou a juntar-se ao grupo terrorista.

O autoproclamado Estado Islâmico (EI) ainda não reivindicou o ataque. Porém, caso se confirme a ligação, este terá sido o primeiro ataque mortal de um apoiante do grupo em solo norte-americano desde 2017 — na altura, oito pessoas morreram atropeladas por um camião que invadiu uma ciclovia em Nova Iorque.

"O ataque terrorista em Nova Orleães simplesmente confirma o que a comunidade de contraterrorismo tem dito ao longo do último ano, que é que o ISIS permanece uma ameaça teimosa e persistente e que simplesmente não vai desaparecer."
Colin Clarke, especialista em contraterrorismo na consultora norte-americana Soufan Group

“O ataque terrorista em Nova Orleães simplesmente confirma o que a comunidade de contraterrorismo tem dito ao longo do último ano: que o EI permanece uma ameaça teimosa e persistente e que simplesmente não vai desaparecer“, analisou o Colin Clarke, especialista em contraterrorismo na consultora norte-americana Soufan Group, à NBC.

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Do califado autoproclamado à “aliança descentralizada”. Como é que o Estado Islâmico se reconstruiu?

O autoproclamado Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS na abreviatura em inglês) é um grupo jihadista, de ideologia sunita, que surgiu a partir de forças da antiga Al-Qaeda e se afirmou em 2014, durante a guerra civil na Síria. No ano seguinte, as forças do Estado Islâmico já ocupavam uma parte significativa do leste da Síria e do norte do Iraque e proclamaram nesse território um califado — um Estado governado por uma interpretação conservadora da lei islâmica.

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Ao longo de cinco anos, o Estado Islâmico recrutou milhares de membros e levou a cabo uma série de atentados terroristas na região, mas também no Ocidente. Uma intervenção militar internacional, liderada pelos Estados Unidos, fez com que em 2019 o grupo já tivesse reduzido consideravelmente a sua área de influência. Cercado, o líder Abu Bakr al-Baghdadi detonou um colete de explosivos. A preocupação norte-americana com o Estado Islâmico abrandou. Mas o fim de um governo jihadista centralizado não foi o fim do Estado Islâmico.

“Matem-nos onde os encontrarem”: a nova “campanha” do autoproclamado Estado Islâmico contra o Ocidente e xiitas

Hoje, o Estado Islâmico é “uma grande aliança descentralizada”, resume a Associated Press, citando especialistas que olham para o grupo terrorista como uma “marca” que inspira células jihadistas autónomas por todo o mundo. A “marca” está presente principalmente no mundo online, onde possuiu uma “robusta rede oficial e de apoio de meios de propaganda”, descreve à NBC Lucas Webber, analista de ameaças na organização Tech Against Terrorism. Isto inclui a presença nas redes sociais, como o Telegram e o TikTok, a publicação de conteúdos em diferentes línguas locais que visam a diáspora da região no Ocidente e a tradução desses mesmos conteúdos para o inglês, para um maior alcance. Esta campanha tem ganhado força desde 2022, mas consolidou-se desde o início do ano passado.

"É provável que o conflito em Gaza tenha um impacto geracional no terrorismo. Tanto al-Qaeda como o ISIS, inspirados pelo Hamas, instruíram os seus apoiantes para para conduzir ataques contra interesses israelitas e norte-americanos."
Avril Haines, Diretora Nacional dos Serviços Secretos norte-americanos, março de 2024

A sua descentralização impede uma contagem eficaz do número total de operacionais, mas as Nações Unidas estimam que deverão ser cerca de 10 mil, integrados em 19 grupos satélite do ISIS. O mais ativo será o ISIS-K, sediado no Afeganistão, que reivindicou, por exemplo, o ataque de março de 2024 contra um teatro em Moscovo, que matou 130 pessoas — o mais recente ataque que provocou mortes a ser reivindicado pelo Estado Islâmico.

Também a Diretora Nacional dos Serviços Secretos norte-americanos, Avril Haines, alertou, na mesma altura, para a capacidade de influência que células terroristas têm umas sobre os outras. Na avaliação anual de ameaças, Haines apontou um motivo concreto para essa “inspiração”: a ofensiva israelita em Gaza, contra o Hamas. “É provável que o conflito em Gaza tenha um impacto geracional no terrorismo. Tanto Al-Qaeda como o ISIS, inspirados pelo Hamas, instruíram os seus apoiantes para para conduzir ataques contra interesses israelitas e norte-americanos”, argumentou.

Em julho, o Comando Central das Forças Armadas norte-americanas voltou a reforçar alertas. “Entre janeiro e junho, o ISIS reivindicou 153 ataques no Iraque e na Síria. A este ritmo, o ISIS vai mais do que duplicar o número total de ataques que reivindicou em 2023″, afirmou o órgão em comunicado.

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O ISIS poderá aproveitar um novo período de instabilidade política na Síria, tal como fez em 2014

Pictures from History/Universal

Antes de o ano acabar, uma nova mudança política na região — a queda do regime de Assad na Síria — voltou a pôr o foco de Washington no renascimento do Estado Islâmico. “A História mostra que momentos promissores podem cair em conflito e violência. O ISIS vai tentar usar este período para estabelecer as suas capacidades, para criar espaços seguros”, declarou o Secretário de Estado Antony Blinken logo no dia 9 de dezembro.

Ao longo de 2024, o estado de alerta das autoridades norte-americanas permitiu impedir a maior parte dos ataques planeados pelo Estado Islâmico no Ocidente, ressalva Aaron Zelin, especialista em jihadismo no think tank Washington Institute for Near East Policy, à NBC. Um dos exemplos mais mediáticos foi o ataque planeado em Viena, no início de agosto, que visava o estádio onde a cantora Taylor Swift ia atuar. Este é, aliás, um “modus operandi” frequente nos atentados jihadistas — o ataque contra salas de espetáculos ou concertos onde um “grande número de pessoas [está reunido] num espaço confinado”, sublinha o analista de geopolítica, Matija Šerić. Foi precisamente o que aconteceu recentemente em Moscovo e, há quase dez anos, nos ataques de 2015 em Paris, quando mais de 100 pessoas foram mortas na sala de espetáculos Bataclan. Mas esta não é a única tática utilizada pelo Estado Islâmico.

Ataques organizados, com apoios indiretos ou trabalho de “lobos solitários”

A evolução do Estado Islâmico reflete-se nos diferentes tipos de ataques ao longo dos últimos dez anos, com mais ou menos influência direta. A dimensão do número de ataques, porém, leva responsáveis e analistas especializados em contraterrorismo a fazer uma divisão em três grandes categorias, relata o New York Times.

Os primeiros são ataques organizados diretamente pelo Estado Islâmico e perpetrados por membros treinados do grupo. São ataques coordenados, com muitas vítimas mortais e armas sofisticadas. Estes ataques eram mais frequentes em solo europeu durante o pico do autoproclamado califado. Exemplo disso foram os ataques de 2015 em Paris e ao aeroporto de Bruxelas em março de 2016. Nos dois ataques, que ocorreram no espaço de seis meses, foram mortas mais de 162 pessoas. Apesar do elevado número de mortos, estes são os atentados mais raros, pela logística que envolvem.

A segunda categoria inclui ataques que foram levados a cabo por atacantes isolados, mas com uma ligação direta ao Estado Islâmico, muitas vezes através de contactos encriptados sobre os alvos ou as armas dos ataques. Exemplo destes ataques são o rapto e morte de quatro pessoas numa mercearia kosher em Paris, em janeiro de 2015. As investigações ao caso revelaram, posteriormente, que Ahmed Coulibaly se mantinha em contacto com operacionais do Estado Islâmico na Síria.

Os ataques em Paris, em novembro de 2015, enquadram-se na tática mais comum durante o califado

IAN LANGSDON/EPA

Outro exemplo foi o ataque suicida na Arena de Manchester em maio de 2017, em que o detonar de uma bomba matou 22 pessoas que assistiam ao concerto da cantora Ariana Grande. Neste caso, nunca foram identificados contactos diretos entre Salman Abdedi e operacionais do Estado Islâmico, mas as secretas francesas acreditam que o responsável foi um de milhares de líbios que lutaram na guerra civil na Síria, experiência que o terá radicalizado. Além disso, as autoridades britânicas apontaram a intervenção de outras pessoas no armazenamento de materiais utilizados no explosivo.

A terceira categoria de ataques é a mais comum sob a atual configuração do grupo. Tratam-se de ataques levados a cabo por “lobos solitários”, ou seja, indivíduos isolados que entraram em contacto com propaganda do Estado Islâmico e realizaram os seus próprios ataques. O atropelamento com um camião nas celebrações do dia da Bastilha de 2016, em Nice — que matou 80 pessoas — enquadra-se neste modelo. Apesar de o Estado Islâmico ter reivindicado o ataque, as autoridades francesas declararam que não havia qualquer ligação direta ao atacante e que este se radicalizou e agiu sozinho. As características do ataque desta quarta-feira, em Nova Orleães, podem colocá-lo igualmente nesta categoria.

Quais as ligações entre o Estado Islâmico e o ataque em Nova Orleães?

A semelhança entre o ataque de Nova Orleães e o exemplo de Nice que mais salta à vista é a tática utilizada — do atropelamento de multidões em celebração –, que Aaron Zelin define como “low tech“. Ou seja, ao contrário dos ataques com apoio direto do Estado Islâmico, os ataques perpetrados por “lobos solitários” não requerem dispositivos sofisticados como armas específicas ou explosivos. Em vez disso, Aaron Zelin destaca o recurso a facas ou a carros utilizados como aríetes contra multidões.

Veterano do exército dos EUA, pai de três filhos e com referências ao Estado Islâmico. Quem era o autor do ataque a Nova Orleães?

Porém, para além da utilização desta última tática, as autoridades norte-americanas já confirmaram outras ligações bem mais concretas de Shamsud-Din Bahar Jabbar ao Estado Islâmico. A primeira é a presença da bandeira negra do Estado Islâmico dentro do carro que utilizou. A outra é a publicação de uma série de vídeos em que declara o seu apoio ao grupo jihadista e afirma que se tinha juntado ao Estado Islâmico antes do último verão.

"Ao carregar uma bandeira do ISIS com ele durante o ataque, o suspeito queria mostrar que era um verdadeiro crente, alinhado com a causa do ISIS, e talvez esperasse desencadear outros a segui-lo."
Colin Clarke, especialista em contraterrorismo na consultora norte-americana Soufan Group

“Ao carregar uma bandeira do ISIS com ele durante o ataque, o suspeito queria mostrar que era um verdadeiro crente, alinhado com a causa do ISIS, e talvez esperasse desencadear outros a segui-lo”, analisou Colin Clarke, da Soufan Group, ao New York Times. Ainda assim, a descrição das autoridades confirma Jabbar como um “lobo solitário”, uma vez que a análise feita aos seus telemóveis e computadores concluiu que o atacante agiu sozinho num “ato de terrorismo, premeditado e maléfico”.

A menção às redes sociais neste caso é outro traço comum dos ataques de lobos solitários e o resultado da descentralização do Estado Islâmico e das suas campanhas online de propaganda internacional. A interação dos indivíduos com estes conteúdos num período de instabilidade geopolítica no Médio Oriente — em que se destaca a ofensiva israelita em Gaza e a queda de Assad na Síria — leva à sua radicalização individual, sem interação direta com uma célula ou um operacional, como acontecia antes.

“Ainda que não saibamos a dimensão do envolvimento do ISIS, isto foi inspirado pelo grupo ou ordenado a partir do estrangeiro”, considera Colin Clarke à NBC. Então se as características do ataque apontam para um envolvimento do EI, por que é que o grupo ainda não se pronunciou? Mina al-Lami, especialista e coordenadora do projeto BBC Monitoring em jihadismo, sugere duas opções.

“A demora pode ter origem em relatos que sugerem a existência de cúmplices. Em alternativa, o EI poderá estar a finalizar a sua narrativa“, escreve nas suas redes sociais. A narrativa do Estado Islâmico inclui provas de que Shamsud-Din Bahar Jabbar estava ligado ao grupo: “Trata-se de um grande ataque e o grupo quererá obter o máximo de publicidade”, justifica. Ainda assim, Al-Lami salienta que “muitos apoiantes estão a celebrar online”, classificando Jabbar como um “leão” e um “mártir”, mas sem indicar acesso “a informação privilegiada”.

O ímpeto do Estado Islâmico e a tentativa de resposta norte-americana

Em dezembro, quando Antony Blinken alertou para a possibilidade de o EI se aproveitar novamente da instabilidade política na Síria para se fortalecer, o secretário de Estado norte-americano deixou uma garantia: “Estamos determinados a não deixar que isso aconteça”. A prevenção de alguns ataques terroristas ao longo de 2024 ilustra essa vontade.

Contudo, Washington perdeu a capacidade de “cortar o mal pela raíz”, tal como fez em 2019. A denúncia foi deixada por Charles Lister, diretor do programa da Síria no Middle East Institute, em julho do ano passado, ao sublinhar o aumento dos ataques do Estado Islâmico na região, que não foi acompanhado por um aumento das atividades de contraterrorismo norte-americanas. “A culpa desta redução está primariamente no Irão e nos seus alinhados no Iraque e na Síria, que lançaram pelo menos 185 ataques contra tropas norte-americanas desde outubro de 2023 — limitando a liberdade de manobra do exército norte-americano de forma significativa”, escreve o especialista.

epa10167543 US soldiers take part in Military exercises with Syria democratic forces (SDF) at Dayrik town close to the tri-border between Syria, Iraq, and Turkey in al-Hasakah governorate, northeastern Syria, 07 September 2022. The US-led coalition carried out the first joint military exercise with the Syrian Democratic Forces (SDF) in the border village of Taqil Baqil in Derik district near the tri-border between Syria, Iraq, and Turkey. The SDF said that the maneuver aims to raise the readiness of the SDF and make it ready to repel possible attacks that launched by ISIS cells in the region.  EPA/AHMED MARDNLI

A ofensiva liderada por tropas norte-americanas reduziu a área de influência física do ISIS

AHMED MARDNLI/EPA

Se os Estados Unidos saem prejudicados, o Estado Islâmico sai beneficiado. “O ISIS está a tentar aproveitar este ímpeto ao entrar em 2025 e provavelmente vai aumentar o seu ritmo operacional, incluindo um foco em ataques no Ocidente”, avalia Clarke, consultor de contraterrorismo. O ataque em Nova Orleães é apenas um evento isolado de um fenómeno mais abrangente, mas poderá ser suficiente para “as pessoas encararem a ameaça de forma diferente“, considera, por sua vez, Aaron Zelin.

Tendo em conta esse mesmo fenómeno abrangente, o silêncio do Estado Islâmico sobre este atentado não deve prolongar-se, sugere Al-Lami. Mas, independentemente do nível de influência direta que os jihadistas possam ter tido em Nova Orleães, o Estado Islâmico deverá assumi-lo como uma “vitória”, acrescenta. Não apenas apenas pela publicidade e pelo facto de Jabber ser um veterano norte-americano, mas como “uma demonstração da sua influência duradoura”.

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