Índice
Índice
Duas semanas antes do pico da terceira vaga, a mais letal de todas as que Portugal já viveu desde o início da pandemia, os cientistas que trabalhavam em colaboração com a Águas e Energia do Porto já sabiam que ele ia acontecer. Desde maio de 2020, apenas dois meses após o surgimento da Covid-19 em Portugal, que a equipa recolhia amostras dos esgotos nas estações de tratamento de águas residuais no Freixo e em Sobreiras para descobrir se a quantidade de partículas virais lá encontradas dava pistas sobre o número de casos que as autoridades de saúde iam encontrar.
Um algoritmo desenhado de raiz pela comunidade científica no Porto revelou que sim: a 28 de janeiro, cerca de duas semanas depois de a quantidade de vírus detetada numa amostra aumentar, atingiu-se o pico. Quando Portugal lá chegou, já os cientistas sabiam que o pior da terceira vaga tinha passado porque os valores de vírus detetados nas águas residuais estavam a descer.
Este foi um dos sistemas que Henrique Barros e Raquel Duarte — o epidemiologista e a médica pneumologista do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) — sugeriram que fosse adotado a nível nacional para refrear o ritmo de testagem à deteção do SARS-CoV-2, à medida que o país regressa à normalidade pré-pandémica, mantendo ainda assim a vigilância sobre o novo coronavírus.
Essa sugestão consta mesmo no plano de desconfinamento que Raquel Duarte, que também faz parte da Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte e do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), apresentou na reunião entre os peritos e os decisores políticos no último mês: da rede sentinela que substituirá a testagem massiva atualmente em vigor fará parte não só um sistema semelhante ao que já é utilizado na gripe, mas também uma análise vigilante e regular às águas residuais.
A vigilância das águas residuais será gerida pela Agência Portuguesa do Ambiente, uma dependência estatal do Ministério do Ambiente, e pela Direção-Geral da Saúde, do Ministério da Saúde. As duas entidades baseiam-se numa recomendação da Comissão Europeia publicada em março de 2021 que aconselha os Estados-membros a reunirem dados da Covid-19 através das águas residuais.
Covid-19: Bruxelas pede aos 27 análises a águas residuais para “seguir” vírus
De acordo com estas sugestões, está a constituir-se um consórcio para instalar nacionalmente esta investigação nas empresas de saneamento e articulá-las com laboratórios parceiros — isto, nos casos em que os laboratórios das próprias companhias não têm capacidade para realizar a deteção. No caso da Águas e Energia do Porto, por exemplo, o laboratório da companhia de saneamento receberá nos próximos dois meses a máquina que permite testar as amostras sem necessitar de apoio científico fora da empresa.
À Águas e Energia do Porto, pioneira na monitorização alargada da Covid-19 em Portugal, juntam-se a Águas de Portugal Valor, Águas do Norte, Águas do Tejo Atlântico, Simdouro, Águas do Centro Litoral, Águas do Algarve, AGERE de Braga e os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento (SMAS) de Almada. Serão estes os grupos empresariais responsáveis pela instalação técnica do sistema de monitorização nacional, com o apoio científico do Instituto Superior Técnico e da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Como um litro de águas do esgoto revela a evolução da pandemia
Segundo Ana Paula Murcha, investigadora do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR), o primeiro passo para monitorizar a Covid-19 através das águas residuais é recolher um litro das águas que chegam a cada uma das estações de tratamento ao longo de 24 horas. É importante que a amostra contenha as descargas de um dia inteiro porque elas sofrem picos: as pessoas tendem a utilizar as casas de banho com mais regularidade de manhã, antes de seguirem para o trabalho; e ao fim da tarde, quando regressam.
Depois, a amostra é enviada para um laboratório que extrai dois fragmentos — um da parte líquida e outro da parte sólida — e submete-os a processos físicos que permitem isolar e inativar todo o material genético ali presente. Esse cocktail de material genético, que contém a informação das células e agentes patogénicos que chegam aos esgotos, é então submetido a um teste PCR que funciona da mesma forma que os testes aplicados às amostras recolhidas com zaragatoas.
No caso do projeto-piloto desenvolvido no Porto, o “Virus4Health”, que foi concebido pelas Águas e Energia do Porto, as amostras são recolhidas uma vez por semana pela Águas e Energia do Porto nas duas estações de tratamentos de águas residuais que servem o concelho: um litro vindo do Freixo e outro captado em Sobreiras. A Águas e Energia do Porto financiou integralmente todo o investimento técnico para instalar o projeto.
Covid-19. Processos das ETAR do Freixo e Sobreiras eficazes na remoção do vírus, diz estudo
A seguir, são enviadas para o CIIMAR, um instituto de investigação em Matosinhos pertencente à Universidade do Porto, que por sua vez comunica os resultados da testagem à empresa de saneamento, ao ISPUP e agora também aos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) que servem as regiões estudadas: Porto Oriental e Porto Ocidental.
Só os dados recolhidos por esta análise laboratorial bastam para inferir se o número de casos positivos está ou não a aumentar — e é essa leitura da tendência da Covid-19 que pode ser adotada em empresas de tratamentos de águas residuais e por laboratórios (quando as próprias companhias não os têm) por todo o país, explicou Ana Paula Murcha ao Observador.
Algoritmo prevê incidência dali a duas semanas com até 90% de sensibilidade
Mas a equipa coordenada pelo epidemiologista Henrique Barros, de que faz parte o bioestatístico Milton Severo, desenvolveu um algoritmo que permite ir mais longe na monitorização da pandemia através das águas residuais, prevendo como a Covid-19 vai evoluir dali a alguns dias.
O sistema depende essencialmente de cinco fatores: o número de cópias virais presentes em amostras de águas residuais, a população nas regiões que as ETAR em causa servem, a incidência semanal de casos detetados pelas autoridades de saúde, o caudal das águas residuais e os níveis de precipitação no intervalo temporal em análise.
Em declarações ao Observador, Filipe Araújo, presidente do Conselho de Administração da Águas e Energia do Porto e vice-presidente da Câmara Municipal do Porto, descreveu o algoritmo como uma “ferramenta epidemiológica preditiva” que, com base nas águas residuais, está a conseguir antecipar a ocorrência de novos casos na comunidade há semanas. Todas as amostras recolhidas desde que o projeto começou, em maio de 2020, até agora estão criopreservadas e podem ser revisitadas para estudar, por exemplo, a evolução genética do vírus.
Segundo Pedro Vieira, engenheiro das Águas do Porto que participa no projeto, a parceria entre a empresa de saneamento, as autoridades de saúde e a investigação académica já permitiu desenvolver um algoritmo que consegue perceber se o número de casos vai subir ou descer nas duas semanas seguintes — mesmo que a testagem não seja suficientemente adequada para tomar o pulso à situação epidemiológica, como acontecia no início da pandemia e veio a acontecer algumas vezes nos últimos dois anos.
“A mais valia é que, mesmo que haja pouca sensibilidade das autoridades de saúde, por não saberem quantos casos existem, nós conseguimos dar-lhes um alerta para reagirem com aquilo que é preciso”, partilhou com o Observador. De resto, é essa independência do sistema que permite aos peritos acreditar que a monitorização da Covid-19 pode passar simplesmente por esta vigilância, dispensando quase totalmente a testagem instalada atualmente.
Mais: esse sistema pode vir a revelar precocemente o surgimento de novas variantes e pode ser adaptado para detetar novos agentes patogénicos. “Neste momento, estamos preocupados com a Covid-19, mas isto vai acontecer outra vez com outro agente qualquer e o sistema pode ser adotado também”, acrescentou Pedro Vieira.
Covid-19. Análises a águas residuais podem detetar novas variantes do vírus, segundo um estudo
Só houve um período da pandemia de Covid-19 em que o algoritmo não foi totalmente capaz de prever a incidência que se veio a registar: na quinta vaga, a última registada em Portugal e aquela em que mais casos foram detetados. Mas Pedro Vieira sabe porquê: o nível de testagem foi maior do que tinha sido até este momento, por isso também foram detetados mais casos do que o sistema previa. E o mais importante funcionou: o sistema foi capaz, mesmo assim, de prever quando é que os casos iam aumentar e diminuir.
A capacidade preditiva do algoritmo para as regiões do Freixo e Sobreiras é de 80% a 90%. Pode ser a mesma para o resto do país — basta ter em conta também os níveis de precipitação e o caudal dos esgotos nas diferentes regiões —, mas não é necessário ser assim para garantir uma vigilância da Covid-19: “Para saber a incidência ao certo, seria preciso medir o número de cópias nas águas e saber o número de casos detetados, calibrando a partir daí. Mas o que interessa é a tendência, se os números vão subir muito ou não, e para isso a calibração não é obrigatória”, revelou Milton Severo.
Projeto em Lisboa confirma dados recolhidos no Porto
Este não foi o único projeto que procurava criar um sistema de alerta precoce da presença do vírus SARS-CoV-2 através da análise de águas residuais: o “CoviDetect” foi concebido pelas Águas de Portugal em parceria com outros grupos de saneamento, com a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e o Instituto Superior Técnico.
Neste projeto lisboeta, as águas residuais de 20% da população portuguesa foram analisadas após a recolha em cinco estações de tratamento de águas residuais em Lisboa, Cascais, Vila Nova de Gaia e Guimarães; e também nas redes de drenagem dos efluentes do Hospital Curry Cabral (Lisboa), Hospital Eduardo Santos Silva (Vila Nova de Gaia) e Hospital Senhora da Oliveira (Guimarães).
As primeiras 760 amostras de águas residuais revelaram que os dados obtidos para SARS-CoV-2 a partir das águas residuais não tratadas “seguiam de forma bastante ajustada os novos casos diários reportados para as regiões em que se encontram as ETAR testadas neste estudo”, pode ler-se na nota de imprensa do Instituto Superior Técnico.
Ricardo Santos, investigador do Laboratório de Análises do Instituto Superior Técnico (LAIST) e um dos coordenadores da participação do Técnico no projeto, detalhou ainda que a análise revelou ser “um método mais expedito” para verificar a infecciosidade dos vírus.