Índice
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A sequela de um 2020 feito de medo e angústia não foi o novo capítulo luminoso que esperávamos. Não houve a certeza desejada, não desenhámos no papel os planos de futuro mais concretos que tínhamos no bolso. Avançámos, recuámos, continuamos à espera. Pelo meio, procurámos manter uma relação de sempre, que gostamos de dizer “para sempre”, mas à qual falhamos sempre que trocamos as prioridades. Noves fora, nada: continua a ser no mias clássico dos objetos que encontramos o que nos faz falta: histórias, emoções, conhecimento, gente nova ou antiga, tanto faz.
Em 2021 soubemos estar mais perto da poesia, uma relação que não precisa de motivos para ser constantemente aprofundada; quisemos conhecer mais histórias que nos são distantes, mesmo que protagonizadas pela vizinhança anónima; lemos outras línguas e outros sotaques; e não recusámos o regresso permanente à História, à razão de ser de muitas das dúvidas que nos acompanham na atualidade. Como sempre, este balanço literário anual é feito pelos jornalistas e colaboradores que habitualmente escrevem no Observador sobre livros.
Ana Bárbara Pedrosa
Viagem ao país do futuro
Isabel Lucas
(Companhia das Letras)
De excelência, este livro de Isabel Lucas. Partindo de um conjunto de reportagens publicadas no Público, que por sua vez partiam da literatura, a jornalista portuguesa deu-nos um retrato extenso do Brasil. Ao lê-lo, encaramos os conflitos do país, tão visíveis nos grandes centros urbanos quanto no interior. O constante saltitar entre zonas também dá à leitura um gosto de viagem. A prosa é tão escorreita que até parece fácil, e o livro é um dos mais importantes publicados no Portugal coetâneo sobre literatura e também sobre o Brasil.
A nova vida de Olive Kitteridge
Elizabeth Strout
(Alfaguara)
A expectativa sobre este volume, que sinaliza o regresso de Olive Kitteridge, era alta, até porque esta é uma personagem marcante, de tão verdadeira e detestável. No romance, destaca-se a forma cirúrgica como Olive fala, sempre desvinculada de todas as regras sociais. A sua agressividade sabe sempre a coisa real, mas os padrões morais nunca descem de nível.
O ressabiamento e a teimosia dão-nos a humanidade do livro, que se adensa mais por contar a história que existe depois da história. Aqui vemos o que é feito depois do para sempre, e ainda a forma como a velhice continua a ser caminho para roubar a vida aos dias.
O país dos outros
Leila Slimani
(Alfaguara)
Leila Slimani é das mais surpreendentes autoras da literatura contemporânea. Este último romance confirma-a como uma voz forte, sagaz e talentosa, já que Slimani não se cinge a uma fórmula e cada obra toca num terreno em que o anterior não tocou. A literatura de Slimani explora a experiência humana, sempre através de uma linguagem precisa de depurada.
Aqui, vemos a colonização francesa a partir de um drama individual, acompanhando-se a tensão que desemboca na independência de Marrocos em 1956. Toda a gente parece viver no país dos outros, e as mulheres parecem viver no país dos homens. A dupla colonização é evidente, paralelizando-se as terras sitiadas com os corpos dominados.
Leïla Slimani: “As mulheres percebem melhor do que os homens o que é uma colonização”
A cadela
Pilar Quintana
(Dom Quixote)
Na costa da Colômbia, Damaris, de 40 e tal anos, dá a uma cadela o nome que quis ter dado a uma filha. Toda a vida quis ser mãe e o livro mostra a canalização do amor materno e das expectativas criadas e frustradas. O apego pelo animal existe pela dependência, já que a ideia maternal parece resolver todos os problemas e todas as carências. O romance é magistral, explorando com subtileza o luto do que não nasceu e as estratégias inventadas para se substituir um sonho.
Pilar Quintana. “Dizem-nos que chegamos aos 38 e a nossa vida acabou, já não somos mais mulheres”
Instinto
Ashley Audrain
(Suma de Letras)
Impossível de largar. Na narrativa, forma-se uma família que se auto-destrói, e ao longo de todo o livro deparamo-nos com a pergunta: será obrigatório amar os filhos? O livro desmistifica a idealização da maternidade, e o que ali existe é sempre negro. A mãe parece odiar a filha, e não temos como entender se a narradora é credível, se a criança faz aquilo de que é acusada. Em todos os pequenos gestos, a mãe desfia intenções na filha. Para o leitor, nada é claro: existirão mesmo?
“Instinto”. Um abismo psicológico entre os piores medos da maternidade
Carlos Maria Bobone
Diários de Salazar (1933-1969)
(Porto Editora)
A importância destes diários é tão óbvia, tão flagrante, tão evidente, que não deixa de ser triste que não tenham sido exatamente publicados. É certo que a dimensão pode ajudar a perceber que os diários não tenham ultrapassado a categoria de e-book, mas esta meticulosa preparação destes metódicos e esclarecedores diários merecia melhor fortuna.
Metrópoles
Ben Wilson
(Desassossego)
É escrito num tom jornalístico, não é um livro que nos assombre com a erudição do autor, nem é especialmente arguto no desenvolvimento das implicações daquilo que estua. No entanto, é um daqueles casos em que a premissa do livro é suficiente para o aguentar. A ideia de estudar a cidade em geral, os diferentes complexos organizacionais que surgem das contingências da história e da geografia, de Roma a Lagos e de Alexandria a Nova Iorque, permite que mesmo um escritor sem grande arsenal estilístico ou conceptual nos traga um livro cheio de brilho e interesse.
Ficção
António Ferro
(E-primatur)
“Ficção” tem, aqui, um sentido lato. Cabem nela os livrinhos de aforismos sonorosos, como Teoria da Indiferença, junto com as suas novelas e pequenas histórias. O tom deslumbra de tão deslumbrado: o gosto pela boutade, o fascínio pelo movimento e pela via moderna encontram aqui uma expressão ingénua de que é difícil não gostar. Histórias e aforismos cheios de energia e vitalidade que de algum modo traduzem o sentimento da Idade do Jazz-band.
Ideias sem centro
Alexandre Franco de Sá
(Dom Quixote)
A par de Droite Gauche, c’est fini, de Alain de Benoist, este é provavelmente o mais interessante livro escrito sobre o advento do populismo na política. Além do rigor do estudo e da erudição, que permitem ao autor traçar uma genealogia muito completa do fenómeno populista, Alexandre Franco de Sá consegue também olhar para a política contemporânea com uma largueza de vistas que ultrapassa em muito os costumeiros gritos de horror que passam por análise política.
Soberania
Miguel Morgado
(Dom Quixote)
É um trabalho académico de peso, que estuda a ideia de soberania ao longo de quase toda a tradição intelectual do Ocidente. Das querelas medievais de Marsílio de Pádua à complicada relação entre a União Europeia e as soberanias nacionais, o livro dá-nos um leque muito alargado das diferentes interpretações do conceito e do modo como estas diferentes interpretações tiveram influência no desenvolvimento da política. Embora chegue a um grande número de autores e teóricos, diretos ou indiretos, da soberania, há um compreensível foco em Bodin que é provavelmente o mais aturado estudo em Português sobre o autor desde os trabalhos de Martim de Albuquerque.
Joana Emídio Marques
Lança o Teu Pão Sobre as Águas
Maria Filomena Molder
(Edições do Saguão)
É sabido que Maria Filomena Molder é filósofa, é assim que a nomeiam, é assim que nos habituamos a pensá-la. Porém, quem a lê sabe que antes e depois de ser filósofa é uma poeta. Há muito que sabemos que não é poeta quem quer, nem quem escreve ou publica poesia. Ser poeta é uma condição com a qual se nasce ou não. Ora se há livro onde a tessitura poética de Maria Filomena Molder está à vista é neste Lança o Teu Pão sobre as Águas, uma reflexão que, a partir do Ecclesiastes (Qohélet, em hebraico), nos leva a muitos mundos, num pensamento constelar que vai da tradução à música, da filosofia ao cinema, do corpo fértil da mulher como fonte de vida, continuidade mesmo perante um texto como este que nos diz que a vida é “névoa, nada, fome de vento”. Lançado há poucos dias pelas Edições do Saguão, este texto é o primeiro de três volumes, que correspondem às três conferências que a autora deu na Culturgest em 2015, 2016 e 2017, a convite de Miguel Lobo Antunes.
Lança o Teu Pão Sobre as Águas é um livro de uma beleza ímpar, galvanizante, herética, que não teme os obstáculos, o atrito: “Trata-se de não ceder a nenhuma ideia feita,a nenhuma retórica, que leve o pensamento a ficar saciado e o torne imune aos desafios da compreensão”, escreve Molder à laia de aviso à navegação. A paixão pelo obstáculo é a paixão pela vida, mesmo sabendo que ela não tem sentido. Aqui não há messianismo.
Todos os Poemas
Friedrich Hölderlin
(Assírio & Alvim)
Friedrich Hölderlin, “terra incógnita” no reino da poesia alemã entre os séculos XVIII e XIX, astro em rota excêntrica pelo universo da palavra, poeta que se tornou uma utopia ao conseguir sintetizar “a comunhão absoluta entre o homem, a palavra da poesia, a Natureza e os deuses do por vir”, tem pela primeira vez a sua obra completa traduzida e reunida num só volume, pela mão do tradutor João Barrento. Apenas este livro bastava à chancela Assírio & Alvim para marcar a ferro e fogo a publicação de poesia de 2021.
Ainda pouco conhecido em Portugal, como tantos génios que a língua alemã produziu (embora já existam algumas obras dele publicadas em outras editoras), Hölderlin, poeta louco das odes, dos hinos, das elegias, profundamente influenciado pelo mundo grego e pelo Idealismo alemão, será a partir de agora uma terra, ainda que estranha, entre a ingenuidade que pergunta e a destruição mental que apenas enuncia fragmentos. Escreveu um romance, traduziu tragédias gregas, criou poesia como quem vive uma nova Idade do Ouro no mundo.
Poemas
António Franco Alexandre
(Assírio & Alvim)
E assim, sem se fazer anunciar, depois de cerca de duas décadas retirado da vida pública, sem que se soubesse ao certo se estava vivo ou morto, eis que em setembro, António Franco Alexandre, um dos nossos maiores poetas vivos, saiu da sua reclusão e publicou, na Assírio & Alvim, a sua obra completa e um novo poema longo intitulado Carrocel (assim mesmo com “c”). O livro dentro de um intenso azul chama-se simplesmente Poemas.
Diz querer, como sempre quis, deixar campos abertos, horizontes vastos onde cada leitor possa fazer o seu caminho, abrir as suas próprias possibilidades. Deste belo livro, de mais de 600 páginas, podia dizer-se como Li Bai, poeta chinês, do século VIII:
“Difícil a viagem, difícil a viagem!
Quantas encruzilhadas, qual escolher?
Gostaria de deslizar sobre as ondas, numa nuvem por vela
e, soprado pelos ventos, atravessar o mar azul”
Franco Alexandre deixa-nos sempre numa encruzilhada, presos numa escolha, envoltos no cheiro a gasolina das cidades-floresta que ficaram lá atrás a arder e um futuro que não existe. E, quase em silêncio diz-nos: “Ouve por detrás das pálpebras, uma voz acordada”, uma voz que procura a palavra certa mesmo sabendo que ela só existe antes da palavra, na mudez que com que as coisas se nos comunicam. E há tantas coisas espalhadas na “vasta lentidão do sofrimento”: pedras, vidros, calcário, ossos, alicates, azuis e neve, sexos, dedos, veias, brancuras várias, unhas e mapas, lenços, lençóis. Corpos em transito noutros corpos e “um poema que ilumina a sombra onde nada se vê”.
Ulisses
Benjamin Fondane
(VS. Edições)
A tradução e a publicação deste livro, o primeiro do poeta simbolista e filósofo Benjamin Fondane [Roménia, 1898- Auschwitz, 1944] em Portugal, devemo-lo à existência de pequenas editoras independentes, à persistência de editores como Vasco Santos, da editora VS, e à sua crença de que os livros são a melhor forma de combate contra a uniformização do pensamento e a restrição das liberdades. Depois do astuto Ulisses, de Homero, navegando entre a Guerra e a Casa, entre Tróia e Ítaca, num mar nunca antes vindimado, do Ulisses urbano de James Joyce, do Ulisses morto de Joan Margarit, temos o Ulisses judeu de Benjamin Fondane: um navegante, sedento, errante entre o oceano e as planícies da Bessarábia (Moldávia/Roménia), entre Paris e Bucareste, tão consciente que a vida é nada, não obstante um deus de Isaías existir e vir secar as lágrimas dos que choram. Como viver entre a fé e a certeza de que a vida é nada, como nada de novo existe debaixo do sol? Se Ulisses tinha um regresso e uma história para contar, Fondane tem “uma curiosa viagem fiz entre os homens/quantas estradas percorremos oh minha vista/que espanto a cada curva nova/de que as manhãs fossem as mesmas/de que os homens tivessem o mesmo rosto (…) e agora que os mares salgaram os meus pulmões/gaivota envelhecida, esperança gasta e propalada/fecho o velho livro e digo: Para quê?”
Muito influenciada pelos textos da Bíblia hebraica, mas também pelas vanguardas europeias dos anos 20, a poesia de Benjamim Fondane é de um desespero fulgurante, de quem sabe que vai acabar mal mas quer ver o espetáculo até ao fim: a sua Ítaca foi entrar de cabeça erguida numa câmara de gás, não sem antes citar Saint-John Perse: “E está na hora ó poeta,/de enunciar o teu nome/a tua ascendência e a tua raça”.
Bucólicas
Vergílio
(Quetzal)
Obra fundadora da poesia Ocidental, da autoria do poeta latino Públio Vergílio Marão, as Bucólicas foram escritas entre 42 e 39 a.C. e foram este ano traduzidas por Frederico Lourenço para a Quetzal, depois de terem tido edição na Cotovia, assinada por Gabriel A.F.Silva. Quando vivemos em plena crise da palavra, materializada nos milhares de livros de poesia, romance, ensaio que se publicam todos os anos por este mundo fora, para já não falar da tagarelice sem fim das redes sociais, voltar à idade do ouro da lírica que traçou o perfil da nossa civilização pode ser uma espécie de silêncio que oferecemos a nós mesmos.
Estas Bucólicas, que tanto influenciaram a lírica de Camões, são uma poesia de temática pastoril, num tempo em que os trabalhos e os dia do homem e acompanhavam os ritmos da natureza e é nela que Vergílio vai encontrar uma linguagem para decifrar os abismos da alma humana, numa espécie de psicologia arcaica, onde os mitos regressam, mas onde com ousadia ele vai injetar uma forte carga erótica, nomeadamente homoerótica, e política. Embora a poesia bucólica seja de origem grega, é o poeta de Mântua que vai ressuscitá-la no mundo romano. Desejando rivalizar com Homero, Vergílio vai fazer ascender a poesia a uma forma de conhecimento do ser humano, num tempo turbulento do império.
Esta tradução de uma obra considerada por muitos impossível de traduzir, tem aqui a sua versão portuguesa, numa edição bilingue, com introdução e notas.
Joana Stichini Vilela
O Desassossego da Noite
Marieke Lucas Rijneveld
(Dom Quixote)
Passados uns bons meses do primeiro embate com o vencedor do Man Booker International Prize de 2020, acompanham-nos os sobressaltos: a tensão à mesa, o cheiro a estrebaria, o sufoco daquela infância. A vida é sempre a perder, já cantavam os Xutos e acabamos por percebê-lo todos – mais tarde, porém, que a pequena Cas, que ainda não tem 10 anos quando vê o irmão sair de casa para patinar no gelo pela última vez, numa zona rural dos Países Baixos. Tal como em tantas ocasiões, a tragédia está ao virar da esquina; já o drama depende do que fazemos com ela. Numa família em que os sobreviventes se recusam a enterrar os mortos para cuidar dos vivos, este impressionante romance de estreia leva-nos numa tortuosa deriva pelos caminhos solitários da dor, da culpa e da imaginação.
Suíte Tóquio
Giovana Madalosso
(Tinta-da-China)
E de repente tudo é Brasil. O condomínio fechado, as “babás” fardadas de branco, os motéis de beira de estrada, o urbanismo limite de São Paulo, a pureza essencial da Amazónia. Um país extremo e dividido, até na forma da narrativa, em que duas vozes opostas se alternam, capítulo sim, capítulo não: a da patroa, uma autocentrada executiva de sucesso, e a da empregada, que um dia resolve raptar a menina de quem cuida. Em comum entre as duas, a busca da parte que lhes falta. Com uma escrita ágil e camaleónica, Madalosso, até agora desconhecida em Portugal, leva-nos numa viagem tragicómica por paragens tão díspares como a maternidade, o casamento, a espiritualidade e a solidão.
Lisboa Cliché
Daniel Blaufuks
(Tinta-da-China)
À primeira vista, um nostálgico diário de viagem por décadas passadas, cheio de imperfeições só possíveis com o analógico. À segunda, um artefacto arqueológico sobre o final da década de 1980 e início da década de 1990. Nas palavras do autor, um filme do que foi a cidade para si durante aqueles anos, para ser apreciado de forma diferente em cada visualização, sem regras ou ordem pré-determinada, como todas as vezes em que nos perdemos por Lisboa, antes de haver telemóveis com GPS. Instantâneos de amigos, cafés, cinemas e muita noite, incluindo, claro, o Frágil, no Bairro Alto, onde chegou a trabalhar. Entre o confessional e o documental, com um formato de bolso que apenas deixa a desejar pela forma como corta algumas fotografias, Blaufuks volta a debruçar-se sobre a memória e sobre a importância que tem para nos relacionarmos com o mundo de hoje.
The Well Gardened Mind
Sue Stuart-Smith
(William Collins)
Na era em que, fechados em casa e na incerteza, nos virámos para o silêncio dialogante das plantas, a psiquiatra e psicoterapeuta britânica Sue Stuart-Smith escreveu este extraordinário tratado sobre como podemos reencontrar-nos e perdoar-nos na relação que estabelecemos com a natureza. As bases são as da psicologia e das neurociências, sublimadas por uma notável capacidade de contar histórias, girem elas em torno do stress, da depressão, do stress pós-traumático ou das dependências. Ainda por editar em Portugal, o título que poderá traduzir-se por “A Mente Bem Ajardinanda” é um dos best-sellers do ano no Reino Unido. “Trabalhar num jardim é pôr a vida em movimento”, escreve Stuart Smith, “e as sementes, como fragmentos mortos, ajudam-nos a recriar o mundo de novo.”
Hoje Não
Ana Margarida Matos
(Chili com Carne)
Há poucas coisas mais entusiasmantes que a promessa. E este livro está cheio de promessa. A partir da bolsa “Toma lá 500 paus e faz uma BD!” da editora alternativa Chili com Carne, uma estudante de Pintura da Faculdade de Belas Artes de Lisboa criou um registo gráfico dos seus dias durante o segundo confinamento, com o objetivo de não perder a noção do tempo. Entre pequenos e grandes nadas, que vão do número diário de infetados à ementa do jantar, surgem soluções visuais ousadas e rigorosas, que vão acrescentando camada sobre camada à narrativa inicial. Um universo em permanente construção e desconstrução, como se à claustrofobia física a mente respondesse com uma hiperatividade maníaca. Identidade, morte, fuga: tudo serve de pretexto para mais uma vertigem labiríntica de imagens. E se a densidade e profusão de ideias serão próprias de uma primeira obra, aqui o que se destaca é a maturidade do que já existe e a curiosidade sobre o que aí virá.
João Pedro Vala
A Cadela
Pilar Quintana
(Dom Quixote)
A Cadela é um romance sobre uma mulher que decide construir pelas suas próprias mãos o destino que acredita ser o melhor para si. Naturalmente, não corre bem. É com certeza um dos romances do século até agora. Reza a lenda (na verdade, reza a contracapa) que Pilar Quintana o escreveu no telemóvel enquanto amamentava, o que só torna tudo ainda mais inconcebível. Um livro perfeito.
Memórias de um Craque
Fernando Assis Pacheco
(Tinta-da-China)
Como qualquer pessoa razoável saberá, nas nossas histórias de infância somos sempre heróis extraordinários desafortunadamente rodeados de imbecis. Isso é ainda mais verdade quando ao nosso lado não temos nenhum imbecil que tenha lá estado e nos possa desmentir. As crónicas que Fernando Assis Pacheco publicou em 1972 no jornal Record são sobre desporto, mas são acima de tudo sobre um adulto melancólico a recordar imaginados dias de glória. Que, por cima disto, ainda escreva coisas como “por acaso, o Pampilhosa ficou dois dias sem pôr as bébias no colégio” ou “ganda mentira, Marinho, ganda mentira, mas deixa arder que o teu pai é bombeiro” torna tudo ainda melhor.
Desobediência Civil
Henry David Thoureau
(Ideias de Ler)
O livro perfeito para dar àquele seu familiar que acha que a desobediência civil consiste em organizar jantares clandestinos durante confinamentos enquanto cantam músicas do Zeca Afonso.
O desobediente civil em John Brown, Thoreau e na Virgínia, Vila Morena
Nina Simone’s Gum
Warren Elis
(Faber & Faber)
Tem todos os ingredientes para um livro triunfal: é o primeiro livro de Warren Elis, dos Bad Seeds, Nick Cave escreveu o prefácio e fala de uma pastilha que Nina Simone deixou debaixo de um piano num concerto em Londres. Tudo isto com uma capa extraordinária.
Um Amor
Sara Mesa
(Relógio d’Água)
Um romance sobre o difícil que é contar uma história quando percebemos o peso que cada palavra tem. Se a literatura for a capacidade de olhar para o quotidiano sem o submeter a simplificações abusivas ou a um filtro anonimizante, Um Amor é um livro extraordinário. Se se optar por outra descrição qualquer do que é afinal essa coisa estranha a que chamamos literatura, a conclusão é mais ou menos a mesma.
Nuno Costa Santos
A Lição do Sonâmbulo
Frederico Pedreira
(Companhia das Ilhas)
Escavação ágil da infância e da idade adulta, com referências que juntam condimentos aparentemente díspares como jogos de bola, marcas de sumos e livros de James Joyce. O resultado é destemido, com uma verdade própria e um pessoalíssimo sentido de humor. Mais do que um relatório de memórias, este é um exercício de rememoração edificado com uma linguagem rara, dinizmachadiana — no seu entrelaçar de alusões, descrições, divagações impressivas, burlescas e vivas sobre pessoas-personagens. Um livro, já agora, premiado por quem terá topado estas e outras qualidades.
Os Invisíveis
Roy Jacobsen
(Relógio D’Água)
Há uma personagem (Ingrid Barrøy), o seu trajeto, a História e as suas guerras determinantes para os destinos da cada um. Mas o que fica, acima de tudo, da experiência de leitura deste livro é o transporte, servido por uma prosa ao mesmo tempo seca e sugestiva, para a verdade inóspita de um ambiente insular nórdico — o território de origem de uma parte da família do autor – de há cem anos. Uma homenagem assumida à vida num lugar onde a Natureza e os elementos se agigantam e às gentes que o habitaram, com dignidade, nervo e projeto.
Manhã e Noite
John Fosse
(Cavalo de Ferro)
Fosse é do teatro. E quem diz teatro pode dizer palavra dita, poética, inventiva. Esta artilharia formal está estendida em “manhã e noite”, uma ficção dividida em duas partes, que, por uma questão de organização, se podem dividir em nascimento e morte. Fosse domina a linguagem, consegue incorporar diálogos na corrente narrativa, brinca, qual Joyce, às interjeições, e pratica a arte de fazer passar o tempo de forma abrupta – e de, com isso, surpreender o leitor com o seu murro lírico. Tudo num ambiente rural-marítimo, com gente concentrada na família, com trabalhos simples, e humaníssimos destinos, entre o céu e a terra. Convém salientar: esta edição é ainda de novembro de 2020, mas aqui conquistou o espaço que merece neste 2021 que agora termina, o mesmo ano em que a Cavalo de Ferro publicou também a Trilogia, do mesmo Fosse.
Todos os Poemas
Friedrich Hölderlin
(Assírio & Alvim)
Poesia maior que merece ser conhecida na sua globalidade, nos seus desequilíbrios, na forma como se foi transformando com o tempo, na sua celebração dos gregos, da Natureza, do sagrado, da inquietação metafísica, do épico e do comum. Com o labor de João Barrento, tornou-se possível conhecer os diferentes registos de Hölderlin, do poema longo à lírica curta, e tragar, com um prazer maior, na sorna das tardes indolentes, o seu verbo e as suas escolhas:
“Se esquecerdes os amigos, se desprezardes o artista
E virdes o espírito profundo de forma mesquinha e vulgar,
Deus vos perdoará – mas nunca perturbeis
A paz dos amantes”
Integrado Marginal
Bruno Vieira Amaral
(Contraponto)
Um autor que, com recursos vários, se dedica a escavar a sua própria história fez-se à estrada da biografia de um outro e saiu-se muito bem. Escrever uma vida dá muito trabalho e esse esforço de pesquisa é bem visível neste calhamaço. Mas não está aqui apenas um esforçado alinhamento documental e de ocorrências. Está uma reflexão sobre a obra de um autor, sobre o país onde se fez, sobre os regimes que atravessou, sobre as relações que experimentou, sobre a forma, exigente, como entendia a literatura.
Rita Cipriano
Hamnet
Maggie O’Farrell
(Relógio d’Água)
Um dos livros de 2020 no Reino Unido e um dos livros de 2021 em Portugal, onde foi editado em maio pela Relógio d’Água (com tradução de Margarida Periquito). Hamnet, de Maggie O’Farrell é um romance forte e inesquecível sobre a perda, o luto e o amor incondicional de uma mãe por um filho. O fio condutor da história é Hamnet, o filho de William Shakespeare, que morreu devido à Peste Negra. Diz-se que foi a sua morte precoce que levou o dramaturgo a escrever uma das suas peças mais famosas, Hamlet, mas no romance Shakespeare é apenas uma personagem secundária. A narrativa é dominada pela sua mulher, aqui chamada Agnes, figura singular, destemida e fascinante, que vê o seu mundo desabar após a morte do filho. A dificuldade em lidar com a perda e a incapacidade de fazer o luto, alteram as dinâmicas com aqueles que lhe são mais próximos, cavando um fosso no seu casamento que nunca mais será capaz de encurtar.
“Hamnet”. Um extraordinário e poderoso romance sobre a perda, o luto e o amor
O Avesso da Pele
Jeferson Tenório
(Companhia das Letras)
O avesso da pele, de Jeferson Tenório, narra a história de Henrique, assassinado durante uma rusga policial. Após a sua morte, o filho, Pedro, tenta reconstruir a sua história, partindo do contacto com os seus objetos pessoais. Romance que denuncia uma sociedade marcada pelo racismo e violência, O avesso da pele aborda igualmente o impacto que a descriminação tem nos relacionamentos humanos, que o escritor brasileiro retrata com perspicácia e sensibilidade. É, ao mesmo tempo, um tratado sobre o luto e a procura de um filho pelo pai que nunca chegou a conhecer verdadeiramente. O romance foi recentemente e merecidamente premiado com o Jabuti de Literatura, o mais prestigiado galardão literário brasileiro.
Jeferson Tenório. Uma “verdade inventada” sobre as várias matizes das relações humanas
De Noite Todo o Sangue é Negro
David Diop
(Relógio d’Água)
Alfa Ndiaye e Mademba Diop são dois jovens soldados senegaleses que lutam pelo exército francês na Primeira Guerra Mundial. Durante um ataque às tropas inimigas, Mademba morre, segurando as entranhas e pedindo clemência a Alfa, que se recusou a ajudá-lo. O trauma da morte do amigo e o fantasma da recusa assombram Alfa, que se lança num projeto macabro de vingança e num abismo psicológico do qual já não sairá. Vencedor do do International Booker Prize de 2021, De Noite Todo o Sangue é Negro, do francês David Diop, é um retrato cru dos horrores da guerra e dos efeitos que estes têm em quem nela participa, que parte de factos históricos pouco conhecidos e raras vezes abordados — a presença senegalesa nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial.
“De Noite Todo o Sangue é Negro”: os horrores da guerra e a força da amizade
Vita Nova
Louise Glück
(Relógio d’Água)
Prosseguindo com o projeto de publicação da obra poética completa de Louise Glück, a editora Relógio d’Água lançou em 2021, entre outros, Vita Nova, oitavo livro de poesia da norte-americana, numa tradução da também poeta Ana Luísa Amaral. De inspiração clássica, temática cara a Glück, Vita Nova é um livro de poemas sobre uma descida aos infernos, motivada por um desgosto de amor, e uma viagem de regresso em direção a uma vida nova (vita nova). As personagens são figuras bem conhecidas da mitologia clássica, que sofreram por amor: Orfeu, Dido e Penélope… Esta última inesperadamente mencionada num dos mais belos poemas do livro, sobre um pássaro que tece um ninho como “a primeira Penélope / mas com vista a um fim diferente”. As histórias são necessariamente trágicas, mas “a vida é muito estranha”, e por vezes coisas surpreendentes acontecem: “Pensei que a minha vida terminara e que o meu coração se partira. / Foi então que me mudei para Cambridge”.
Virá a morte e terá os teus olhos
Cesare Pavese
(Edições do Saguão)
Um dos nomes mais importantes da literatura italiana do século XX, Cesare Pavese foi tradutor, romancista e poeta. Algumas das suas obras em prosa, com destaque para A Lua e as Fogueiras, romance que antecedeu em apenas alguns meses o seu suicídio, foram recentemente publicadas pela Livros do Brasil, mas foi a poesia que a independente Edições do Saguão escolheu recuperar neste Virá a morte e terá os teus olhos. O volume, com tradução de Rui Caeiro, responsável pela primeira antologia em português da poesia de Pavese, e de Rui Miguel Ribeiro, reúne duas recolhas póstumas, A Terra e a Morte, com poemas datados de 1945, e Virá a Morte e Terá os Teus Olhos, com os últimos versos do escritor, escritos em 1950. Muito diferentes no tom e forma, as recolhas revelam lados diferentes da mesma voz poética, forte, ardente e melancólica. Cada poema é uma pequena obra-prima.
Simão Lucas Pires
Sonda o meu coração no meio da noite
(Guerra & Paz)
Ano após ano, o tema do nazismo dá azo a numerosas publicações, desde biografias de homens sanguinários até romances oportunistas. Sonda o meu coração no meio da noite (Guerra & Paz) é, no meio da enxurrada, um livro especial: um conjunto de cartas e anotações da Resistência ao III Reich. De Edith Stein ao camponês anónimo que se dirige aos pais antes de morrer, somos interpelados por consciências heroicas que enfrentaram o regime. Um precioso documento histórico, no qual a opção de confiar a vida a Cristo aparece em todo o seu escândalo e todo o seu esplendor. Fora-de-série.
Memórias de um Craque
Fernando Assis Pacheco
(Tinta-da-China)
Além de ter o índice mais engraçado da literatura portuguesa, Memórias de um Craque (Tinta-da-China) distingue-se por outros méritos: uma prosa viva e libérrima; um jeito raro para discorrer sobre os encantos do desporto; a capacidade de jogar brilhantemente com a perspetiva da infância. É armado dessas virtudes que Fernando Assis Pacheco nos leva a conhecer as aventuras da sua meninice em Coimbra. E quando vemos que os textos foram publicados no Record, nos anos 70, ocorre-nos a pergunta: não será possível construir hoje um espaço público menos formatado e com mais rasgo?
Que filosofar é aprender a morrer
Michel de Montaigne
(VS editor)
Ao considerarmos as reflexões produzidas neste tempo de pandemia, dá a ideia de que a única coisa que tem escapado é o próprio centro da crise — a circunstância de sermos mortais e de a ampulheta não poupar ninguém na sua contagem decrescente. A publicação pela VS do ensaio de Montaigne sobre a relação entre filosofia e morte chegou por isso em boa hora, e constitui um gesto editorial diante do qual eu tiro o chapéu. Enquanto continuamos sem poder gozar de uma edição completa dos Essais em português, vale-nos este texto que foca, entre outras coisas, a “negligência bestial” dos homens e o modo como a perspetiva sobre o futuro determina a organização da vida.
“Que filosofar é aprender a morrer”: os desafios e os ensinamentos de Montaigne
A Armadilha
Emmanuel Bove
(Sistema Solar)
Felizmente, a Sistema Solar teve a ideia de publicar A Armadilha, um dos principais romances de Emmanuel Bove, escritor francês pouco conhecido por cá. Passado em França durante a ocupação alemã, relata a história de um resistente que quer juntar-se a De Gaulle em Inglaterra mas dá por si perdido entre corredores ministeriais e burocratas dúbios. O cenário político da trama não limita o alcance do livro, que explora questões como o papel da imaginação ou a inabilidade dos bem-intencionados. Notável a maneira como Bove consegue contar uma história com circunstâncias epocais tão carregadas e, ao mesmo tempo, criar um pesadelo de contornos quase míticos, relacionado com o problema de interpretação que a vida sempre é.
A Rebelião
Joseph Roth
(Cavalo-de-Ferro)
Pouco a pouco, a obra de Joseph Roth vai ficando disponível na nossa língua. Este ano saiu A Rebelião (Cavalo-de-Ferro), o seu terceiro romance. Brilham nele algumas das qualidades que fazem de Roth um escritor extraordinário — em particular, o poder subtil de transformar as personagens mais bizarras em sugestões perturbadoras acerca da condição humana. Neste caso, acompanhamos a vida do caricato Andreas Pum, um amputado de guerra que diz adorar Deus e está feliz por tocar realejo na rua, até descobrirmos que estamos a cair, nós mesmos, num alçapão de profundidades sombrias.
Vasco Rosa
Assim Acaba Este Dia: os Portugueses na baleação americana, 1765-1927
Donald Warrin
(Núcleo Cultural da Horta)
Numa altura em que os oceanos estão na ordem do dia (verdadeiramente?), é reconfortante ler esta história da baleação americana, essa vida rude e aventurosa em que portugueses açorianos se distinguiram. A edição deste livro maior sobre este tema é, aliás, obra duma antiga e discreta mas lúcida instituição cultural da ilha do Faial, que aqui elogiamos vivamente pelo esforço aplicado.
Aos Açores, “por prazer”: um guia para viajantes das Américas
Desenhando a Porta do Pacífico / Drawing the Gateway to the Pacific (1520-1671)
Henrique Leitão e José María Moreno Madrid
(By the Book)
Magnífico álbum celebrativo dos quinhentos anos do Estreito de Magalhães, ou da circum-navegação, com uma exuberância cartográfica em bibliografia portuguesa muito raramente vista depois dos anos dourados da Comissão dos Descobrimentos. O grande formato permite a consulta de pormenor aos mapas, e a impressão é excelente.
Pompeia. O tempo reencontrado, as novas descobertas
Massimo Osanna
(Quetzal)
Diretor do Parque Arqueológico de Pompeia, Massimo Osanna é o autor perfeito para dar conta de novas — recentíssimas — descobertas arqueológicas, pela derrocada dum edifício da velha cidade romana. Uma leitura deveras essencial para quem já lá foi e para quem lá queira ir.
Viagem ao País do Futuro
Isabel Lucas
(Companhia das Letras)
Uma aproximação ao Brasil pela obra de doze escritores, que faz mais pela diplomacia cultural do que dez institutos camões juntos (e duas alfândegas obtusas)… Curiosamente triste é notar que chegamos àquele país pela América do Norte, em consequência de idêntico registo da nossa melhor jornalista de literatura, também repórter de estrada, que é uma freelancer de muito talento — e que não desiste.
Ficção
António Ferro
E-Primatur
Livro do ano porque há décadas se esperava por ele, e pelos demais do modernista em primeiro grau que como ninguém foi alvo de mal-entendidos e negações, cegos ao vanguardismo do seu espírito. O editor Hugo Xavier veio mesmo — por uma vez — às primeiras páginas deste livro para afirmar, preto no branco, que “António Ferro é o mais abrangente de todos os modernistas”. A apresentação é de Luís Leal.
Radar Veneza. Arquitectos Portugueses na Bienal 1975-2021
Casa da Arquitectura e Direção-Geral das Artes
Compilação documental, textos e imagens, de quase meio século de representação da arquitectura (e artes plásticas) portuguesa na grande bienal da especialidade, “muitas vezes com orçamentos limitados e sem uma ‘casa’ física”. O livro, também catálogo da exposição homónima, foi desenhado por Pedro Nora.