Ficha técnica

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Título: At Night All Blood Is Black // De Noite Todo o Sangue é Negro
Autor: David Diop
Tradutor: Anna Moschovakis // Miguel Serras Pereira
Editora: Pushkin Press // Relógio d’Água
Ano da Edição: 2020 // 2021
Páginas: 145 // 121
Preço: 11,85€ (paperback) // 18€

O romance foi publicado pela Pushkin Press no Reino Unido. A edição portuguesa é da Relógio d’Água

Alfa Ndiaye e Mademba Diop eram dois jovens soldados senegaleses que lutavam por França na Primeira Guerra Mundial. Amigos de infância, tinham aprendido tudo o que havia para aprender em conjunto e foi também em conjunto que se alistaram para combater no conflito. A ideia tinha sido de Mademba, o mais frágil mas o mais determinado dos dois. Alfa decidiu acompanhá-lo. Mademba era de estatura pequena e contrastava fortemente com o melhor amigo, que ao pé de si parecia um gigante. Mas juntos eram invencíveis. As fraquezas de um eram as forças do outro. Ou pelo menos assim pensavam, até que a guerra os separou para sempre.

Quando De Noite Todo o Sangue é Negro, o romance de galardoado com o International Booker Prize 2021, começa, Mademba Diop já está morto. Morreu durante um ataque contra as tropas inimigas, às mãos de um alemão de olhos azuis. Alfa, que relata na primeira pessoa a morte trágica do amigo, conta que Mademba “levou demasiado tempo a morrer”. Mortalmente ferido na zona abdominal, o jovem soldado só morreu várias horas depois, segurando as entranhas e pedindo clemência a Alfa, que se recusou a ajudá-lo. “Pediu-me três vezes que acabasse com ele; recusei três vezes.” Uma recusa que o irá assombrar para sempre.

A morte do amigo tem nele um efeito devastador. É esse efeito que conduz toda a narrativa do romance de David Diop, publicado originalmente em França em 2018 e traduzido para inglês em 2020, o que lhe permitiu ser selecionado para o International Booker Prize, que acabou por vencer em junho passado. Escrito num fluxo de consciência, De Noite Todo o Sangue é Negro, que chegou recentemente a Portugal pela Relógio d’Água, procura reproduzir os pensamentos de Alfa, recorrendo para isso a um discurso coloquial que o inglês, pelas suas características, acentua mais do que o português. Não faltam, por isso, repetições e outros maneirismo típicos da oralidade, que apenas fortalecem a sensação de que o livro é uma porta aberta para a mente transtornada de Alfa Ndiaye.

Alfa culpa-se repetidamente pelo que aconteceu. A certa altura, declara que foi ele quem matou o amigo ao desafiá-lo a sair primeiro da trincheira. “Foi por causa da minha grande boca que ele irrompeu uivando do ventre da terra para me mostrar o que eu já sabia, que Mademba era corajoso”, admite. Essa ideia torna-se uma obsessão e leva-o a questionar noções, como a de “dever”, que antes não seria capaz por em causa. “Não fui humano para com Mademba, meu mais do que irmão, meu amigo de infância. Deixei que o dever ditasse a minha escolha. Não lhe ofereci mais do que maus pensamentos, pensamentos comandados pelo dever, pensamentos recomendados pelo respeito pelas leis humanas, e não fui humano”, reflete.

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Estas reflexões, associadas ao choque da perda de Mademba, transformam Alfa numa outra pessoa. Outrora um soldado exemplar, torna-se numa fonte de medo para os seus companheiros de trincheira, senegaleses e franceses, e de terror para os seus inimigos alemães. A voz do comando deixa de pesar nas suas decisões e passa a ouvir apenas a sua voz interior, que dita as suas ações. Mas ao tornar-se noutro, Alfa deixa, aos olhos das tropas francesas, o lado humano para assumir o monstruoso — já não é um soldado, mas um feiticeiro devorador de almas, que durante a noite entra nas trincheiras inimigas distribuindo a morte entre os alemães de olhos azuis. O seu troféu são as mãos decepadas que leva consigo para o outro lado.

Farto da situação, o capitão Armand decide afastá-lo da frente de batalha e deslocá-lo para a Retaguarda, onde, sob os cuidados do doutor François, Alfa recorda a infância passada numa longínqua aldeia do Senegal. Neste ponto da história, Armand acredita que o soldado não está bom da cabeça; François tem fé nos seus progressos; e o leitor duvida de tudo isto. Onde estará a verdade? Numa inesperada reviravolta, David Diop faz dissipar todas as questões, revelando o abismo psicológico em que Alfa Ndiaye afundou. Como muitos soldados antes e depois dele, os horrores da guerra levaram-no à loucura, despontada pela morte do amigo, mas presente muito antes do incidente na frente de batalha. Afinal, as vozes já estavam dentro da sua cabeça — à espera que Alfa as deixasse falar.

De Noite Todo o Sangue é Negro é um pequeno mas poderoso romance que mostra de forma crua, e muitas vezes gráfica, os horrores da guerra e os efeitos que esta tem nos indivíduos que nela participam. É também um pequeno tratado sobre a força da amizade. O romance lembra-nos que há ligações que sobrevivem mesmo após a morte, mesmo após a maior das tragédias humanas. No último capítulo, Mademba Diop, que fala a partir do mundo dos mortos, afirma: “Pela verdade de Deus, juro-te que no instante em que penso, de agora em diante ele é eu e eu sou ele”. Na morte, mas também na vida, Alfa e Mademba tornaram-se um só.