Nunca se tinha visto nada assim. Há quatro séculos sob administração portuguesa, a pacata “Cidade do Nome de Deus na China” viveu, entre 1966 e 1968, a agitação da Grande Revolução Cultural do Proletariado lançada pelo líder comunista Mao Tse-tung. Em Macau, inspirada pelos Guardas Vermelhos que faziam tremer a República Popular, uma multidão amotinada invadiu o Palácio do Governo, vandalizou arquivos e derrubou a estátua do coronel Vicente Nicolau de Mesquita, herói da única batalha portuguesa contra chineses, em 1849. Declarada a lei marcial, polícias e militares responderam com uma força bruta que fez oito mortos – todos chineses, na maioria jovens; feridos, foram mais de duzentos. Os ânimos não acalmaram. Pelo contrário.
Debaixo de crescente pressão, o governador de Macau, o brigadeiro José Nobre de Carvalho, haveria de acatar a imposição de um pedido de desculpas público, assumindo todas as responsabilidades pelo que o “Diário do Povo”, jornal oficial do Partido Comunista da China, classificara de “sangrento incidente fascista”. Os maoistas rejubilaram, mas, no seu plano, ainda havia um alvo a abater: a Igreja.
Seguiram-se longos meses de ataques contra a doutrina católica, o clero, templos, monumentos, escolas e edifícios da assistência social. Nada escapava à fúria “vermelha”, que apenas esbarrou na determinação férrea do bispo de Macau. A intransigência teve custos que Paulo José Tavares talvez não tivesse antecipado, incluindo dissabores com o próprio governador português, que defendeu a cedência da Igreja e o afastamento do prelado. Em fevereiro de 1968, todavia, a diocese mais antiga do Extremo-Oriente declarava vitória: “A primeira confrontação da Igreja Católica com o Comunismo Chinês, em Macau, está decididamente ganha, graças a Deus, à energia e firmeza de D. Paulo José Tavares”.
Contra os seguidores do “criminoso” Jesus Cristo
Já muito se escreveu sobre os motins que, em Macau, ficaram para a história como “1, 2, 3”, alusão à data dos acontecimentos em cantonês: o “12” refere-se ao mês de dezembro, enquanto o “3” designa o dia do assalto às instituições portuguesas e dos confrontos entre a PSP, a guarnição militar e os maoistas. Estes episódios do final de 1966, depois da obstrução à reconstrução de uma escola pelos habitantes chineses da ilha da Taipa, correspondem às primeiras manifestações da Revolução Cultural chinesa na então colónia portuguesa.
No entanto, em janeiro de 1967, mês em que Nobre de Carvalho confessa os “sérios crimes”, é posta em marcha a segunda fase do plano comunista contra as entidades e instituições portuguesas, um capítulo bem menos conhecido e estudado, até agora inédito na imprensa portuguesa.
Depois de “prostrar” o governo (o verbo é de Moisés Silva Fernandes, o investigador que mais aprofundou as relações entre Portugal e a China comunista), procurava-se fazer o mesmo à Igreja. “Para algumas organizações comunistas, a hora do ataque à Religião e à Igreja Católica não devia tardar”, observa o bispo Paulo José Tavares na introdução do relatório que encomendou sobre aqueles tempos de constantes ofensas, provocações e ameaças.
O documento é uma narrativa minuciosa sobre “o ciclone da ‘revolução cultural’ chinesa”, que começou a soprar “em princípios de dezembro de 1966 e em meados de maio de 1967 nos dois oásis de paz e progresso, respetivamente, de Macau e Hong Kong”.
Intitulado “O Comunismo Chinês contra a Igreja Católica em Macau”, o relatório, entregue em mãos ao presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar, detalha como a “perseguição” à Igreja foi feita por todos os meios, na imprensa, na rádio, em manifestações, em cartazes afixados por toda a cidade, em representações teatrais, “impropérios pessoais e até pedradas”. Nada foi poupado. “Não conhecemos edifício algum das Missões Católicas, em Macau e nas ilhas de Taipa e Coloane, que não tivesse sido visado pelo furor desses ‘extremistas’”, lê-se no documento.
Não escaparam, sequer, as ruínas de S. Paulo, a fachada que restava da igreja da Madre de Deus, de 1602, esculpida pelos cristãos japoneses perseguidos, contígua ao antigo colégio com o nome do apóstolo e que foi a primeira universidade de tipo ocidental na Ásia Oriental. “A própria fachada de S. Paulo – ‘ex-libris’ de Macau – foi completamente desfeada, tendo os comunistas coberto, com ‘Vivas a Mao Tse-tung’ e outros ‘slogans’ comunistas, ateus e anti-imperialistas, os sagrados nomes de Jesus e ‘Mater Dei’, titular da dita igreja. O largo, escadaria e campo-santo dessas ruínas ficaram, desde 1967, transformados num centro de propaganda e representações noturnas do ateísmo militante”.
Os comunistas haveriam também de tomar conta da Rádio Vila Verde, criada por Pedro José Lobo, o célebre chefe dos Serviços de Economia de Macau e magnata do ouro, em quem Ian Fleming se terá inspirado para imaginar Goldfinger, o contrabandista do metal precioso e vilão de James Bond. Pelas ondas da primeira estação de rádio comercial de Macau difundiam-se ataques à “divindade” de Jesus Cristo (“se ele não fosse um criminoso, não o teriam matado e com uma morte tão horrorosa”).
Um particular foco dos maoistas dirigia-se contra as escolas católicas; nos jornais de Macau próximos dos comunistas, denunciava-se que ensinavam uma “educação de escravos”. Eram comuns artigos a ridicularizar o cristianismo e crenças como as das crianças no Pai Natal. De acordo com o relatório, “toda a Igreja Católica (a sua doutrina, o seu fundador, os seus santos, o seu chefe hierárquico, o seu episcopado, o seu clero, a sua educação, as suas obras) foi combatida e ridicularizada, publicamente, na ‘Cidade do Nome de Deus’, no ano da graça de 1967”.
O bispo que apostava na Educação e nos padres chineses
O ensino católico em Macau remonta ao século XVI e à chegada dos primeiros portugueses acompanhados dos missionários que tinham por desígnio converter a China e o Japão. Foi só no século XX, no entanto, e já depois da implantação da República – em Portugal e na China –, que as escolas católicas se abriram aos alunos chineses, que passaram a frequentar aqueles estabelecimentos em número crescente.
Durante o bispado de Paulo José Tavares, entre 1961 e a sua morte por doença, aos 53 anos, a 12 de junho de 1973, registou-se aquilo que a diocese de Macau considera “um desenvolvimento espetacular na área da assistência social aos necessitados e da educação da juventude”, com a construção e ampliação de vinte estabelecimentos assistenciais e de instrução católicos. Foi também neste período que se criou o Conselho das Escolas Católicas, através do qual saiu o relatório sobre os ataques comunistas.
Mas o bispo Paulo José Tavares também rompeu com tradições seculares. Numa terra onde mais de 90 por cento da população era chinesa, “pela primeira vez, os padres chineses passaram a ganhar o mesmo que os outros sacerdotes, pondo o prelado fim a uma discriminação de vários séculos”, diz ao Observador António Pedro Costa, autor do livro “D. Paulo José Tavares – O bispo diplomata”, lançado em janeiro deste ano. Paulo José Tavares foi igualmente responsável pela nomeação do primeiro padre chinês para vigário-geral e governador do bispado, António André Ngan Im ieoc, nascido em Macau.
António Pedro Costa acrescenta que esta iniciativa valeu ao bispo “muitas inimizades com o clero português, que era ultraconservador”.
A oposição interna de Paulo José Tavares não sossegava. Em maio de 1967, conta Moisés Silva Fernandes em “Sinopse de Macau nas Relações Luso-Chinesas – 1945-1995”, “cinco membros do clero tradicional de Macau subscrevem uma carta ao núncio apostólico em Lisboa, cardeal Maximiliano Furstenberg, a denunciar o bispo D. Paulo José Tavares”. Uma das acusações era a entrega do “governo do bispado” a António André Ngan Im ieoc, “considerado pelos subscritores da carta como fisicamente incapacitado para dirigir a diocese”. Alegam, ainda, que o prelado fez “despesas exorbitantes na construção e recuperação de igrejas e moradias sem consultar o Cabido e de ter adjudicado as obras a um único empreiteiro, sem concurso”.
O bispo não fraquejou. “A grande preocupação” de Paulo José Tavares, frisa, por sua vez, António Pedro Costa, era a “educação da juventude”, bem como “a assistência aos necessitados”. Era a missão pastoral que norteava a sua ação.
O autor da biografia de Paulo José Tavares considera que esta atenção às questões da Educação se deve muito à participação do bispo de Macau no Concílio Vaticano II. “Foi marcante”, constata António Pedro Costa, explicando assim que Paulo José Tavares tenha lançado o apelo, em Macau, para um trabalho “mais em profundidade no ministério da palavra e no ensino da doutrina cristã, portadores de nova primavera missionária”. Foi nesse sentido, também, que “as missas, que eram celebradas em latim, passaram a ser em português, cantonês e inglês”.
Paulo José Tavares esteve em todas as sessões do Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965. Foi mesmo o escolhido para a leitura do Evangelho na abertura solene, presidida pelo Papa João XXIII. Na última sessão, coube-lhe igualmente a leitura do texto sagrado. O papado era já o de Paulo VI, amigo pessoal de Paulo José Tavares dos tempos em que ambos trabalharam na Secretaria de Estado do Vaticano, onde o português esteve 15 anos.
“D. Paulo José Tavares destacava-se com os seus dotes diplomáticos notórios e ocupou um lugar de relevo, dado ter sido considerado um hábil diplomata, um eloquente teólogo, filósofo, pensador e hábil político”, afirma António Pedro Costa. Naquele que a Santa Sé descreve como “o dicastério da Cúria Romana que mais de perto coadjuva o Sumo Pontífice no exercício da sua suprema missão”, Tavares desempenhou as funções de adido, secretário e auditor. Seria, ainda, promovido a Conselheiro da Nunciatura do Vaticano. Devido a estes cargos, entende António Pedro Costa, Paulo José Tavares era “um eclesiástico muito sensível à situação política, religiosa, económica e militar da China Continental, Macau, Hong Kong e de Taiwan. Era, portanto, um bispo treinado nas questões diplomáticas e prestava particular atenção ao que os padres chineses e ocidentais diziam sobre a conjuntura naquelas regiões”.
Um espectro assombra o mundo
O Concílio Vaticano II, realizado mais de um século depois do anterior, foi convocado para refletir e regulamentar vários temas da Igreja Católica, que procurava uma “oportuna atualização” num tempo de “rápidas transformações”, como recordaria o Papa João Paulo II, um dos padres conciliares.
Nas reuniões do Vaticano, todavia, há um assunto que se vai destacar pela intrigante ausência (pelo menos, dos documentos oficiais), sobretudo, porque marcava indelevelmente o mundo de mudanças de que falava o sumo pontífice: o comunismo.
O Concílio Vaticano II começou apenas um ano após a construção do Muro de Berlim. O “espectro” que Marx e Engels tinham anunciado, em 1848, materializava-se e dividia o mundo. Mas a exclusão do comunismo dos temas abordados nas quatro sessões de Roma também surpreende porque a Igreja nunca se tinha mostrado, até então, alheada de uma ideologia que condenara como “doutrina nefanda”, a expressão usada, já em 1846, pelo Papa Pio IX. A “peste mortífera”, como declararia depois o Papa Leão XIII, em 1878, continuou a ser vigorosamente denunciada nas décadas seguintes.
A mensagem também chegaria a Macau, às portas de um país onde o comunismo iria mudar o curso da História. Numa missa da festa do Santíssimo Rosário, em outubro de 1967, quando Macau se inquietava com os fortes ventos da Revolução Cultural, o padre José Barcelos Mendes lembrava a receita para “impedir o alastramento da maior heresia de todos os tempos – o comunismo”: “Não faltar à oração”, “emenda de vida”, a “salutar penitência, que outra coisa não quer dizer que sincero arrependimento dos pecados passados e propósito de não voltar a eles, mas sim de lutar pela virtude”.
Quem assistisse à homilia perceberia que nada do prescrito se verificara, porque, na leitura do padre, “os homens, surdos aos avisos maternais de Maria, se vêm entregando cada vez mais ao lodaçal do vício e estão cada vez mais estragados nos seus costumes como na sua mentalidade”. Com este diagnóstico, os comunistas até podiam concordar, mas por diferentes razões.
É preciso acabar com as velhas ideias
Apesar de os estatutos do Partido Comunista da China deixarem de fora qualquer referência a religião, figuras divinas ou até ateísmo, ao declararem que se abraça o marxismo-leninismo fica subentendido que a renúncia à crença num deus sobrenatural faz parte do programa.
Com a Revolução Cultural, iniciada em maio de 1966, Mao atirou os Guardas Vermelhos, estudantes de vários níveis escolares, contra os “quatro velhos”: as velhas ideias, a velha cultura, os velhos costumes e os velhos hábitos. Eram os valores tradicionais e “burgueses”, antirrevolucionários, que prendiam o país num sistema feudal. Foi, assim, aberta uma enérgica ofensiva contra tudo o que representava a China do passado. Livros, obras de arte, património, objetos, tudo foi zelosamente destruído em nome da pureza revolucionária. Todos – ou quase – foram visados. Até o próprio presidente chinês, Liu Shaoqi, grande adversário político de Mao, que iria ser saneado dos cargos que ocupava e expulso do Partido Comunista da China; acabou por morrer na prisão, vítima de maus tratos.
Também a religião fazia parte do “antigo regime” do qual era necessário libertar o país. Os cristãos são declarados “inimigos do povo” e perseguidos, juntamente com artistas, professores e demais intelectuais, perigosos contrarrevolucionários.
A campanha para a abolição de falsos ídolos vai, contudo, servir também para elevar Mao a objeto de um culto e uma devoção próprios de uma divindade. A palavra do líder torna-se inquestionável, infalível e, juntamente com a sua imagem, propaga-se por toda a China. Foi com o “livro vermelho” das citações de Mao que dezenas e dezenas de jovens invadiram o Palácio do Governo de Macau no final de 1966. No ano seguinte, foi com os pensamentos revolucionários do líder comunista que se cobriram igrejas e escolas católicas.
Amores patrióticos proibidos
Apesar do ambiente de contestação que se respirava na China continental e que se estendia a Macau (onde ecoa o espectro marxista: “Tudo o que é sólido dissolve-se no ar, tudo o que é sagrado é profanado”), as investidas sobre a Igreja vão ter um pretexto, uma causa específica. “Deu-se o início ao ataque às Missões Católicas”, indica o bispo de Macau na introdução do relatório da diocese, “explorando-se um incidente forjado, que teria acontecido no Colégio de S. José, mas cuja veracidade nunca foi comprovada”.
Paulo José Tavares refere-se à denúncia, por parte de alunos da escola católica, de que alguns tinham sido, no início de 1967, “impedidos de amarem Mao Tse-tung e a China comunista”. Em concreto, era apontado o dedo ao professor Lam Sai-chong, classificado, pelos estudantes queixosos, como “agente nacionalista e pró-americano”. As acusações vão arrastar-se até ao fim desta confrontação, numa contradança que foi deixando cada uma das partes imóveis na posição de partida.
Em maio, a Associação Geral dos Estudantes Chineses de Macau, que irá negociar com representantes do Colégio de S. José, assume o caso publicamente e reforça as imputações, culpando a direção da escola de atividades nacionalistas; quanto ao professor Lam, teria “arrancado o emblema de Mao aos alunos”. São formuladas três exigências: “Castigar severamente o agente pró-americano e pró-Chiang Kai-shek [presidente da República da China/Formosa], professor Lam Sai-chong, por ter reprimido as atividades ‘patrióticas’ dos alunos; assegurar que, de futuro, não se reprimirão quaisquer atividades ‘patrióticas’ dos alunos (dentro do colégio); garantir que, para o futuro, os agentes pró-americanos e pró-Chiang não exercerão qualquer atividade hostil à República Popular da China, dentro do colégio”.
Estas reivindicações vão ser “apoiadas nos dias seguintes pela Associação de Educação e algumas escolas comunistas”, refere o relatório. “A agitação cresceu”. Tal como o tom. Os jornais afetos aos comunistas publicam uma “lista de ‘10 crimes’” cometidos pela direção do Colégio de S. José, encabeçada por Luís Ho, que abandonou o cargo depois dos primeiros distúrbios, no início de dezembro de 1966 (outro dos visados pelos comunistas, o professor Lam, “abandonou, espontaneamente, o ensino do colégio”, no dia 12 de maio, tendo, “dias depois, deixado Macau”).
Um dos “crimes” teria sido o facto de o cónego Ho ter impedido “um grupo de alunos de S. José de participar nas manifestações dos dias 2 e 4 de dezembro de 1966”, que incluíram vandalismo contra instituições do governo português e culminaram nos sangrentos confrontos com as autoridades. O relatório assinala que não ter deixado os alunos participarem nestes acontecimentos “apenas pode constituir motivo de louvor, da parte sobretudo do governo de Macau, para o Colégio de S. José”.
Mas o Executivo liderado por Nobre de Carvalho tinha outras ideias. “Agravaram a situação não só as pretensões dos comunistas”, comenta o bispo Paulo José Tavares, “habituados a obter tudo o que queriam, particularmente quando não tinham razão (as suas exigências aumentam sempre na proporção da falta de razão), mas sobretudo a falta de compreensão das autoridades civis. Tudo se permitiu. Com que fim? Não se sabe”.
O prelado lamenta que “a diocese, desde o princípio, não recebeu das autoridades civis nem defesa nem compreensão”. As atitudes iam mesmo em sentido inverso. “Era seu desejo que se cedesse e que se assinasse ‘qualquer coisa’, para contentar os comunistas”, nota Paulo José Tavares, considerando que “teria sido tão fácil, até para o prestígio da administração civil, compreender o valor da existência das escolas católicas e pôr-se ao lado delas, como dignos baluartes das liberdades da população da cidade e da presença do Portugal missionário em Macau”.
Ameaças, revolução e violência
Os ataques vão passar rapidamente das páginas dos jornais para “as manifestações públicas, cada vez mais violentas”. No dia 23 de maio, “a cidade de Macau adormece com as paredes dos edifícios repletas de cartazes comunistas, tendo sido especialmente alvejado o edifício do curso secundário masculino do Colégio de S. José, à Praia Grande”.
As três exigências não ficaram esquecidas. Num comício noturno realizado a 28 de maio, a Associação Geral dos Estudantes Chineses volta a brandir a questão do Colégio de S. José, defendendo o cumprimento incondicional das reivindicações. No dia 30, o diário “Ou Mun”, jornal oficioso da China continental em Macau (ainda em atividade), “ameaça o colégio com revolução e violência, se não assina os pedidos”.
Os cartazes comunistas continuam a aparecer, até no interior do Colégio de S. José. No dia 1 de junho, “O Clarim”, jornal da diocese de Macau (continua a publicar-se atualmente), dá conta da cada vez mais extensa lista de locais onde se afixavam os posters maoistas: “Nos edifícios públicos, nas igrejas, nos monumentos, nas escolas, nos postes de eletricidade, nos clubes recreativos, e com a pintura de caracteres garrafais nas paredes quer das moradias particulares, quer nos estabelecimentos de ensino”. Suspirava-se: “Nem os inofensivos pavimentos de certas vias públicas escaparam”.
Ainda em junho, no dia 5, os diretores das escolas católicas, reunidos no Paço Episcopal, decidem que “não se havia de entrar em mais conversações com os comunistas”. Citam o Papa Paulo VI, que considerava “o diálogo com eles muito difícil, para não dizer impossível”. Ponto igualmente assente é que não se aceitariam as três exigências, “mas, a fim de lhes salvar a face e mostrarmos a nossa boa vontade em colaborar com o governo de Macau para a paz entre os cidadãos, enviar-se-lhes-ia, prontamente, uma resposta, por escrito”.
A diocese expressava, deste modo, a sua posição sobre as exigências comunistas, basicamente negando as pretensões: “O professor Lam Sai-chong deixou, há algum tempo, o nosso colégio e não ensina nele; o Colégio de S. José é um estabelecimento de ensino católico e, portanto, não interfere em assuntos de carácter político. Sempre que qualquer aluno, no tempo das aulas, deseja participar em qualquer atividade, fora do colégio, necessita da autorização dos pais ou tutores. Dentro do colégio, com efeito, os alunos têm de observar o regulamento, a fim de se manter a disciplina necessária. O nosso colégio não emprega pessoal algum com afiliação política”.
Esta resposta, “a primeira e a última a ser enviada” pela diocese, foi rejeitada numa reunião da Associação Geral dos Estudantes Chineses de Macau na noite de 10 de junho. No dia seguinte, apareceu “criticada aleivosamente nos jornais”.
“Vem aí uma nova bronca e é o fim”
Segundo o relato do que se passara na reunião da Associação Geral dos Estudantes Chineses de Macau feito pelo “Ou Mun”, a resposta da diocese foi criticada ponto por ponto. Para os comunistas, dizer que o Colégio de S. José não interferia na política era “a maior mentira que pode existir”, uma vez que “o colégio reacionário sempre exerceu atividade contra a Nova China”. E questionava-se: “Então isto não é política? Todos os anos, no dia 10 de outubro [Dia Nacional de Taiwan], organizavam-se festas ilegítimas, dentro da escola, e penduravam-se bandeirolas ultrapassadas e dísticos reacionários. Isto não é política? Sob a capa da religião, dentro da escola, houve reuniões anticomunistas e afixaram-se ‘slogans’ reacionários. Isto não é política? A capa da religião que usais para exercer actividades contra a Pátria já foi arrancada. A vossa cara verdadeira de antipatriotas já se encontra a descoberto e à luz do sol. A quem podereis enganar? Afinal de contas, analisando o que dizeis, ‘não interferir na política’ significa não deixar os alunos amar a Pátria. Isto não é claríssimo?”
No dia 11 de junho, dia desta edição do “Ou Mun”, realiza-se aquela que o relatório diz ter sido “a maior manifestação contra o Colégio de S. José”.
Começou pela manhã. Às onze daquele domingo, “cerca de 700 estudantes, com um automóvel munido de dois altifalantes, efetuaram uma manifestação em frente ao colégio e colaram muitos cartazes nas suas paredes exteriores, operação esta que se repetiu, à noite, até às 4 da madrugada do dia seguinte”.
O bispo Paulo José Tavares e o Papa Paulo VI aparecem caricaturados em paredes, como que “ocultando dois agentes criminosos, sob a romeira da batina”. Por cima, lia-se: “Não interferimos em política. Sob a capa da religião praticais toda a espécie de crimes”. Tanto o vigário-geral da diocese como o secretário das Escolas Católicas pediram ao governador que mandasse tirar as “caricaturas infames”, mas Nobre de Carvalho “sempre se recusou, até que o vento e a chuva as varreram, após meses de exposição”.
No mesmo dia 11, da parte da tarde, o secretário do Conselho das Escolas Católicas, o padre Benjamin Videira Pires, e o padre Luís Rubini, são chamados ao Palácio do Governo, “a fim de tratar da redação de uma nova resposta dilatória”. Videira Pires regressaria sem demora à sede do Executivo para informar o governador de que a diocese não podia assinar mais nenhuma carta para os comunistas, uma vez que tinham rejeitado a primeira, “metendo-a malcriadamente debaixo da porta do colégio”, iniciando, logo depois, “um ataque geral não só a S. José, mas a toda a Igreja em Macau”.
Benjamin Videira Pires chama a atenção para a importância do que se estava a passar. “O assunto em questão é um colégio católico, atacado sob o pretexto de ‘política’ e falta de ‘patriotismo’ (como se este fosse exclusivo do comunismo, que, de si, não tem pátria), mas os princípios de liberdade de ensino, envolvidos no problema, são gerais e afetam toda a sociedade e, sobretudo, a Religião. As responsabilidades desta e os seus interesses transcendem o tempo e o espaço”. Profundo conhecedor da história de Macau (foi autor de livros que se tornaram referência), Videira Pires argumenta com lições de tempos remotos. “Na crise religioso-política de 1742, em Macau, teve de se arrasar, por ordem do imperador Kien-long [Qianlong], a igreja de Nossa Senhora do Amparo e proibir o proselitismo católico entre os chineses. Estes, porém, não estavam, como hoje estão, sujeitos às nossas leis nem habitavam permanentemente na cidade muralhada. Além disso, o Prelado e Superiores das Ordens religiosas, os ‘homens bons’ e o Leal Senado resistiram o mais que puderam a essa ordem iníqua e somente se sujeitaram, sob protesto escrito”. Mas a história, agora, era outra.
Nem o governador, Nobre de Carvalho, nem o secretário-geral, Alberto Eduardo da Silva, se mostram impressionados. Os dois homens insistem que é necessário assinar “qualquer coisa, hoje mesmo”. Caso contrário, alertam, “vem aí uma nova bronca e é o fim”. A posição dos padres, porém, é irredutível.
“Se acontecer o pior, isso será devido à fraqueza do governo”
Em junho, de “licença graciosa” em S. Miguel, nos Açores, terra natal, o bispo de Macau é instado a regressar ao Oriente “urgentemente” através de um telegrama do padre Rubini. Pela mesma altura, o governador de Macau escreve ao ministro do Ultramar “mostrando-lhe o inconveniente de o nosso Prelado estar ausente de Macau nas presentes circunstâncias”. Paulo José Tavares está de volta ao território no final do mês. “É posto imediatamente a par de todos os factos ocorridos contra o Colégio de S. José e a Igreja”. Não há tempo a perder.
Entretanto, corre em Macau o boato de que os portugueses vão ser retirados da cidade e enviados para Timor, onde até se teriam construído três mil palhotas para acolher os refugiados. O rumor, que não se confirma, vai circulando à boca pequena e na correspondência privada.
A 14 de julho, na qualidade de secretário-geral do Conselho das Escolas Católicas, Benjamin Videira Pires entrega ao governo o novo Regulamento Geral das Escolas Católicas, que o relatório descreve como “tendente a evitar a subversão comunista”. Ao padre, o governador “manifesta, várias vezes, a ideia de que as Escolas Católicas só deveriam receber alunos já católicos”, mas a Igreja considera que tal “seria acabar com a liberdade da família em dar aos seus filhos a educação que entender e obrigá-la a sujeitar-se à escola comunista”. Por outras palavras, “seria destruir a liberdade da Igreja em ‘pregar o Evangelho a toda a criatura’”.
O braço-de-ferro prolonga-se. No dia 22 de julho, há uma tentativa de reatar as conversações com os comunistas. Intervém Ho Yin, empresário, líder informal da comunidade chinesa de Macau, muito próximo do poder, em Cantão e em Pequim, e pai daquele que viria a ser o primeiro chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Macau, Edmund Ho. O representante oficioso dos comunistas junto das autoridades portuguesas entregara ao bispo de Macau, dias antes, uma proposta de alteração à redação do segundo ponto da carta da Igreja. Era uma declaração curta, mas que ia ao cerne das reclamações maoistas: “o Colégio de S. José não adotará, de futuro, textos escolares que sejam hostis à República Popular da China, bem como não exercerá quaisquer actividades hostis à mesma”.
O relatório sublinha que “a caligrafia dessas minutas para sondagem era sempre a do Sr. Ho Yin, facto que nos leva a crer que era ele que tentava dirigir os cordelinhos, por detrás de tudo, embora afirmasse que não”. Sobre este ponto, o relatório da Igreja realça que “o próprio governo português de Macau se mostrava mais interessado que ninguém em que Ho Yin se alçapremasse, mais uma vez, a chefe incontestado dos jovens revolucionários da província. Isto, porém, nunca se podia realizar, à custa dos interesses espirituais, que são a base da nossa sociedade. Esta a posição da Igreja”. Por outro lado, argumenta-se, o Colégio de S. José era uma instituição particular e, como tal, “nem o governo português pode interferir nele, desde o momento que respeite e lei vigente em Macau”.
O encontro não dá em nada. Já no final de agosto, Ho Yin “vai ao Palácio avisar o governo de que é preciso resolver o problema de S. José”. Videira Pires torna a ser chamado à sede do poder executivo. Procurando influenciar o padre, o chefe de gabinete do governador, o major Manuel de Mesquita Borges, dava orientações. Segundo o militar, havia uma regra fundamental para o governo de Macau: os comunistas “não se podem contradizer”; Mesquita Borges aconselha, por isso, como devia decorrer qualquer conversação: “Eles falam de alhos e nós falamos de bugalhos”. Mas Videira Pires transmite a mensagem que o governador não queria ouvir. A diocese estava decidida, considerando que “os católicos cumpriram a sua obrigação e não têm medo”. Mais: “Se acontecer o pior, isso será só devido à fraqueza do governo”.
Antes quebrar que torcer
Com as férias escolares a terminarem, uma meia centena de alunos “das mais importantes escolas secundárias dos comunistas”, Colégio Pui Tou e Hou Kong (ainda em funcionamento), “as mais ativas na luta contra o S. José, afixam cartazes mesmo no átrio interno do edifício, pintam-se a óleo no portão de ferro da fachada os dísticos: ‘Temos razão para o nosso combate’ e ‘Amar a Pátria (comunista) não é pecado’”. Há, ainda, letreiros com “morras ao Tavares”. No dia 28 de agosto, mais cartazes no interior do Colégio de S. José. “Foi chamada a Polícia, mas não apareceu”. No dia 31, nova manifestação contra o Colégio de S. José. São afixados novos posters e há “invasão até ao primeiro andar”. Por duas vezes, os padres chamam a polícia, mas, novamente, “não compareceu”.
Sem que se tenha realizado o habitual Curso de Verão, as aulas arrancam no S. José no dia 2 de setembro. Estão inscritos mais de 300 alunos. No período de pausa letiva tinham continuado as negociações com vista à nova redação de uma resposta. Sem efeito. Perante o arrastar do impasse e das manifestações contra o Colégio de S. José, no início de setembro há um telefonema “pouco gentil” de Nobre de Carvalho para o bispo.
No dia 4, Paulo José Tavares reúne-se com o secretário-geral do governo para discutir um eventual acordo sobre a versão do pedido de desculpas que a diocese deveria apresentar à Associação Geral dos Estudantes Chineses de Macau. Debalde. No dia 8 de setembro, o bispo de Macau é informado de que os “estudantes extremistas” não aceitam os termos da nova redação. Paulo José Tavares, para quem os comunistas vinham distorcendo a posição da Igreja, diz ao secretário-geral do governo que “as conversações se davam por completamente terminadas”, considerando que “já se manifestou demasiado boa vontade, da qual eles abusaram”.
Na sua posição, o bispo deixa claro que, “perante os ataques comunistas e a incompreensão das autoridades civis, era meu dever, mais do que direito, esclarecer a população sobre todo problema”. Assim, no dia 10 de setembro de 1967, “O Clarim” publica, na primeira página, um “esclarecimento” sobre o Colégio de S. José, assinado por Paulo José Tavares.
Na explicação, o bispo informa que “a direção do colégio entrou, por duas vezes, em diálogo com a Associação Geral dos Estudantes Chineses livremente, a fim de contribuir para o bom entendimento e paz entre os cidadãos desta terra. De modo algum, porém, o colégio se reconheceu obrigado a semelhante diálogo e muito menos, durante ele, a aceitar quaisquer exigências que pugnem contra a consciência ou contra os princípios da doutrina católica”.
Paulo José Tavares defende que a principal exigência feita ao colégio é que “não interfira com as atividades ‘patrióticas’ dos seus alunos, nem as impeça”. Segundo o bispo, “toda a gente sabe o que são essas atividades”. Além disso, continua, “a doutrina comunista não pode ser englobada sob capa do patriotismo, pois o verdadeiro amor da pátria é independente de qualquer ideologia ou credo político”. Além disso, alega, “o comunismo puro é internacional e não tem pátria”. Acrescia que cumprir aquela exigência era “abrir o Colégio de S. José à doutrina e atividades comunistas, deixando ele, ‘ipso facto’, de ser um estabelecimento de ensino católico”; semelhante coisa, sublinha Paulo José Tavares, “nunca um católico o pode admitir”.
O “esclarecimento” do bispo tem uma consequência quase imediata. Num gesto inesperado, o governo suspende a publicação de “O Clarim” por dez dias.
Diz o relatório: “Não há memória, na história de Macau, de que a censura do governo tivesse suspendido um jornal católico, apenas por ele ter publicado um documento assinado, não por qualquer autoridade eclesiástica, mas pelo próprio bispo, sem que ele fosse submetido à censura prévia. E sobretudo porque é que a imprensa comunista tem completa liberdade em Macau e o Bispo da Diocese não pode defender a liberdade religiosa ameaçada, sem se curvar perante o governo civil?”
“As atrocidades sanguinárias do imperialismo português em Macau”
Foi na “completa liberdade” que gozava a imprensa “de cores rubras mais carregadas”, como descreve o relatório, que o “Ou Mun” publicou, no dia 25 de setembro de 1967, o panfleto “Luta Contra as Atrocidades Sanguinárias do Imperialismo Português em Macau”, cujo título desfaz qualquer dúvida sobre o objetivo a que se propunha. A única posição pública sobre este ataque ao governo de Macau e de Portugal parte do jornal da diocese. Num artigo chamado à primeira página, “O Clarim” considera que o opúsculo comunista se trata de uma “publicação extemporânea” que “desfigura a realidade dos factos”, sendo “inteiramente alheada à verdade da História”.
Em chinês, português e inglês, “Luta Contra as Atrocidades Sanguinárias do Imperialismo Português em Macau” é a versão do Partido Comunista da China sobre o que se passara durante o “1, 2, 3”: “No Inverno de 1966, enquanto a grande revolução cultural proletária do nosso país entrou numa nova etapa, os imperialistas portugueses em Macau chegaram a servir de vanguarda precipitosa à contracorrente anti-chinesa, levantada pelo imperialismo norte-americano e pela camarilha dirigente revisionista soviética, e tiveram o atrevimento de pôr um fogo anti-chinês à porta do sul do nosso país, tendo provocado sucessivos incidentes sangrentos em que mataram e feriram um grande número de compatriotas chineses”.
O relato estende-se num jeito incriminatório até ao dia 29 de janeiro de 1967, data em que, numa sala dominada pelo retrato de Mao Tse-tung, “com as mãos a tremer”, foi apresentado, pelo governador Nobre de Carvalho, o “documento de confissão de crimes”. No exterior, “milhares e milhares de chineses patriotas (…) a fim de ver, com os próprios olhos, quanto atrapalhado ficava o imperialista ao baixar a cabeça a confessar os crimes, com o ‘prestígio’ todo perdido”.
Descrevendo os episódios de final de 1966 como uma “séria luta de classes internacional”, a publicação proclama que “os compatriotas chineses de Macau seguiram as instruções do Vice-Presidente Lin Piao de ‘Estudar as obras do Presidente Mao, atender aos seus ensinamentos e atuar de acordo com as suas instruções’”, método com que “repeliram os repetidos ataques dos inimigos, desfizeram uma por uma as intrigas e acabaram por conseguir obrigar os imperialistas portugueses em Macau apresentar publicamente desculpas à população chinesa”. Em suma, “foi uma brilhante vitória do pensamento de Mao Tse-tung”. Excluído da narrativa ficava o confronto com a Igreja, ainda em curso quando o folheto foi publicado.
De acordo com o relatório, para os católicos de Macau, a censura de “O Clarim” e a livre circulação de “Luta Contra as Atrocidades Sanguinárias do Imperialismo Português em Macau” foram entendidas como “uma arbitrariedade e uma prepotência, um ‘salvar a face aos estudantes comunistas e ao sr. Ho Yin fazendo a Igreja Católica bode expiatória, e ainda um escândalo desmoralizador para os portugueses patriotas e os chineses anticomunistas”.
“O bispo não terá bom fim”
A reação dos estudantes comunistas ao “esclarecimento” do bispo de Macau demorou mais de um mês a chegar. Foi um “silêncio misterioso”, quebrado no dia 26 de outubro, no “Ou Mun”, com uma “Declaração da Associação Geral dos Estudantes Chineses acerca dos acontecimentos no Colégio de S. José”. No texto, o bispo é acusado de “adotar uma atitude vil de retardar a resposta e argumentar astuciosamente, de forma que os acontecimentos ainda se encontrem sem solução”. Especificamente sobre o regulamento geral das escolas católicas, Paulo José Tavares teria elaborado o documento “sem escrúpulos”, com o objetivo de “reprimir ainda mais, e perseguir, por conseguinte, os professores e alunos chineses patriotas das escolas católicas pelo seu estudo e propaganda do grande pensamento de Mao Tse-tung”.
A retórica endurece. “O mau procedimento de Tavares causou imensa indignação nos estudantes patriotas chineses de Macau. O presidente Mao ensina-nos: ‘Tudo o que é reacionário é sempre igual: se não o golpeias, não cai’. Nós, estudantes, patriotas chineses de Macau, estamos determinados a continuar a seguir os ensinamentos do Presidente Mao, e, apoiados pelos demais chineses patriotas de Macau, a mobilizar-nos, organizar-nos e agora mais, levando até ao fim a luta pelo desbaratamento da nova ofensiva de Tavares e pelo esmagamento da sua conspiração de tentar servir-se dos acontecimentos do Colégio de S. José para efetuação de atividades anti-chinesas. Não cessaremos os esforços enquanto não conseguirmos a vitória total”.
Com efeito, no dia 31 de outubro, o relatório dá conta de nova escalada. “Cerca de 200 estudantes comunistas penetraram até à sala do trono do Paço Episcopal a fim de exigirem do bispo a aceitação das três condições e apresentarem uma carta de protesto”. Paulo José Tavares chama pessoalmente a polícia. “Em vão”. Acossado, o bispo consegue sair por uma porta lateral e entra num automóvel que o leva até à sua residência noutra zona da cidade, na colina da Penha.
Ao longo de novembro, realizam-se várias reuniões de sindicatos de operários e da poderosa Associação Comercial, de agricultores, professores, pescadores, todos a protestarem contra o ‘Esclarecimento’ do Bispo”. Registam-se ameaças de “mais manifestações, perturbando a normalização da vida de Macau e o Grande Prémio”, o principal evento desportivo e turístico do território (estatuto que mantém até aos dias de hoje).
O ano de 1967 termina, pois, com mais protestos dos comunistas. No dia 31 de dezembro, o semanário “Estudante de Macau” publica uma nova crítica ao “esclarecimento”, concluindo com ameaçadoras palavras do presidente da Associação Geral dos Estudantes Chineses: “O bispo não se dá conta da força do movimento das massas e não terá bom fim”.
O inimigo que “não desarma”
Assistindo a tudo, o governador Nobre de Carvalho exaspera com a intransigência do bispo. Na obra “Macau na Política Externa Portuguesa –1949-1979”, Moisés Silva Fernandes escreve que, durante este período de confrontação entre comunistas e a Igreja, foram “constantes os pedidos de Nobre de Carvalho para que Paulo José Tavares fosse afastado de Macau”, sempre sem sucesso. Num telegrama enviado para o ministro do Ultramar, Joaquim da Silva Cunha, o governador de Macau acusa o bispo de ser “um estrangeiro apenas ligado aos interesses de Roma”.
Incapaz de persuadir Lisboa e de demover Paulo José Tavares, Nobre de Carvalho não perde oportunidade para demonstrar o ressentimento. No dia 26 de dezembro, o governador manda suspender a transmissão da mensagem natalícia do bispo na Emissora de Radiodifusão de Macau. Ao ministro do Ultramar, Nobre de Carvalho alega que havia “três ou quatro passagens não convenientes num contexto geral pouco feliz aludindo à autonomia da igreja perante a autoridade civil (claramente referindo-se ao caso da suspensão dos jornais católicos)”. Por outro lado, justifica, usavam-se “recentes palavras do Papa sobre o dia 1 de janeiro dedicado à paz, algumas não adequadas a Macau”.
Estas desavenças entre a diocese e a administração portuguesa vão ser tema de um ofício que Paulo José Tavares envia, ainda no dia 26, ao conselheiro eclesiástico da embaixada de Portugal junto da Santa Sé, monsenhor Joaquim Carreira.
De acordo com Moisés Silva Fernandes, “apesar do cisma” entre o governador e o bispo, “a elite chinesa e a administração portuguesa foram os grandes derrotados neste confronto. A diocese não permitiu que fossem ministrados nas escolas por si tuteladas o ‘pensamento de Mao Tse-tung’ e o exercício de atividades políticas pró-China continental, e não se comprometeu a contratar professores indicados pela elite chinesa”. Moisés Silva Fernandes aponta, ainda, que, por esta altura, as figuras mais influentes da comunidade chinesa de Macau pareciam ter chegado aos limites das suas capacidades, esgotando-se os “meios políticos à sua disposição para prostrar a Igreja”.
Outro fator determinante tinha sido a alteração da situação em Pequim e em Cantão, onde as forças conservadoras e moderadas estavam em ascensão, depois do caos gerado pelos primeiros tempos mais intensos da Revolução Cultural. Do mesmo modo que os Guardas Vermelhos tinham já cumprido o seu papel na consolidação da liderança de Mao, afastando os dirigentes considerados “revisionistas”, também em Macau o poder vermelho se reorganizava e reforçava. Depois da capitulação da Administração portuguesa, não só Macau deixava de ser campo livre para as atividades subversivas nacionalistas de Taiwan, como, dali em diante, nada mais seria decidido sem a elite local que respondia perante o Partido Comunista da China.
Em suma, os “imperialistas” tinham sido expostos como meros “tigres de papel”, mas Macau podia continuar na tradicional ambiguidade, servindo os dois ancestrais senhores da sua história, desta feita nas versões de uma China comunista fechada ao mundo, necessitada de uma porta para o exterior, e de um império decadente e delirante, cada vez mais orgulhosamente só. Num lugar solitário ficara também a Igreja numa terra onde os pactos tudo pareciam comprometer, de preços e valores, a princípios e fins. Estava dado o aviso.
Logo após a declaração de vitória com que o relatório termina – “a primeira confrontação da Igreja Católica com o Comunismo Chinês, em Macau, está decididamente ganha” –, é deixada a advertência: “O inimigo não desarma e muda constantemente de tática. O futuro está nas mãos de Deus e também nas nossas, se soubermos e quisermos todos colaborar com Ele”.
O bispo de Macau subscrevia. A hora, dizia Paulo José Tavares, não era de assegurar “comodidade ou honra pessoais, mas o bem das almas e o prestígio da Igreja”. Deveres da “missão de pastor” a que o bispo não renunciava. “Mesmo com risco para a minha vida”.