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[Este é o último de três artigos a pretexto da edição em português, pelas Edições 70, do primeiro de dois volumes com os “Diálogos” do filósofo romano Lucius Annaeus Seneca. Aqui pode ler o primeiro e o segundo]

O filósofo milionário

Um tema recorrente nos escritos de Séneca é o desprezo pela acumulação de bens materiais. Na segunda das Cartas a Lucílio, por exemplo, afirma que “não é o homem que pouco possui que é pobre, mas o homem que ambiciona possuir mais. De que serve a um homem ter o seu cofre e o seu armazém recheados, serem numerosos os seus rebanhos e pingues os seus lucros, se ele cobiça a propriedade do vizinho e faz contas, não aos ganhos pretéritos, mas à expectativa dos ganhos por vir? Perguntas-me quais são os limites adequados para a riqueza? Primeiro, ter o necessário, em segundo lugar, ter o suficiente”.

Na VI carta, Séneca parte de uma máxima de Epicuro – “A pobreza, se for conforme à lei da natureza, é riqueza” – para especificar que a riqueza deve ser apenas a suficiente para “evitar a fome, a sede e o frio” e conclui que “são as coisas supérfluas que fazem o homem suar, são as coisas supérfluas que deixam as nossas vestes no fio, que nos levam a envelhecer enquanto labutamos, que nos arrojam em costas distantes. O essencial está ao alcance das nossas mãos. Aquele que firmou um pacto justo com a pobreza é rico”.

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Toda a carta XVII é devotada a defender que a falta de meios materiais não é obstáculo a que abracemos a filosofia e a dissuadir os que crêem que, antes de começarem a adquirir sabedoria, precisam de amealhar fortuna. Pelo contrário, sublinha, “muitos foram os homens a quem as riquezas impediram que alcançassem a sabedoria, enquanto a pobreza não carrega fardos e está livre de preocupações”. E conclui: “Tal como pouco importa ao homem doente se jaz num leito de madeira ou num leito de ouro […], também pouca diferença faz ao espírito enfermo estar rodeado de riquezas ou de pobreza. A sua doença acompanha-o”.

Porém, na sua vida, Séneca esteve muito longe de pôr em prática este desprendimento pelos bens materiais e é duvidoso que alguma vez tenha experimentado as privações que costumam afligir os pobres e os remediados.

Lucius Annaeus Seneca “o Jovem” nasceu em Corduba (a actual Córdova), por volta do ano 1 d.C., tendo por pai Lucius Annaeus Seneca (conhecido como “o Velho”), membro da classe dos cavaleiros, procurador imperial e professor de retórica em Roma, e por mãe Helvia, que pertencia a uma proeminente família da Baetica (a província de que Corduba era a capital).

Estátua de Séneca em Córdova, criada em 1965 por Amadeo Ruiz Olmos

O pai, que passava a maior parte do tempo em Roma, fê-lo vir, ainda em tenra idade, para a capital do império, onde recebeu educação esmerada, sendo iniciado na filosofia estóica – à qual aderiria e da qual viria a ser um dos mais conhecidos mestres – por Átalo o Estóico. A sua poderosa rede familiar e os seus dotes oratórios fizeram-no ser nomeado questor e senador, mas a sua carreira sofreu um rude golpe em 41, durante o reinado de Cláudio, quando foi acusado de adultério com Júlia Lívila (sobrinha de Cláudio), por Messalina, a depravada esposa (e prima) de Cláudio, o que lhe valeu ser condenado à morte pelo Senado, pena depois comutada em exílio na Córsega. Neste (dourado) retiro se quedou até 49, quando Agripina a Jovem, sobrinha de Cláudio, se tornou esposa deste (após Messalina ter sido executada por ordem do imperador) e intercedeu pelo filósofo, fazendo-o ser nomeado pretor e preceptor do seu filho Nero (37-68), então com 12 anos.

Cláudio como Júpiter, século I: O escultor (anónimo) foi extremamente lisonjeiro com Cláudio, que estava longe de ser um atleta e sofria de variados problemas de saúde

Em 54, quando Nero, com apenas 16 anos, ascendeu a imperador, após a morte de Cláudio (provavelmente envenenado, possivelmente por Agripina), Séneca, juntamente com Agripina e Sexto Afrânio Burro, prefeito da Guarda Pretoriana, asseguraram a regência – Séneca foi nomeado cônsul e, na prática, desempenhou (com competência e bom senso, segundo alguns historiadores) o papel de primeiro-ministro de Nero até 62, altura em que o jovem imperador decidiu livrar-se de Séneca e Burro (já se desenvencilhara da mãe em 59) e concentrar todo o poder nas suas mãos. No interim, a posição privilegiada que Séneca ocupara no aparelho de Estado permitiu-lhe tornar-se num dos homens mais ricos de Roma, adquirir vastas propriedades em Itália e no Egipto e até encomendar cinco centenas de mesas com pernas de marfim, todas iguais, o que pode parecer uma pura excentricidade, mas que dariam, por certo, imenso jeito nas festas que o eminente filósofo estóico tinha o costume de organizar e que chegavam a reunir um milhar de convidados.

Um banquete na Roma Clássica, por Roberto Bompiani, final do século XIX

Bem prega frei Tomás…

A flagrante contradição entre a fabulosa fortuna de Séneca e a vida austera que propugnava suscitaram, inevitavelmente, críticas e remoques (o poeta Marcial designava-o como “Seneca praedives”, isto é “Séneca o super-rico”), levando o filósofo a sentir-se obrigado a justificar-se, o que fez no diálogo “Da vida feliz”.

Neste, Séneca alega, por um lado, que “jamais alguém condenou à pobreza a sabedoria” (23.1) e aduz elaborados argumentos para o fundamentar: “O sábio não se considera indigno de nenhum dos dons da Fortuna. Não ama as riquezas, mas prefere tê-las, não as acolhe no seu coração, mas na sua casa; não repudia as riquezas que possui, mas tem domínio sobre elas e quer com elas proporcionar condições melhores para o exercício da virtude” (21.4); “Porquê duvidar de que o sábio manifeste a sua grandeza mais facilmente na riqueza do que na pobreza? Na pobreza só há uma forma de exercício da virtude: não se deixar vergar nem abater por ela; já na riqueza, a temperança, a liberalidade, a diligência, o equilíbrio e a munificência encontram vasto campo de acção” (22.1); “Ao sábio, as riquezas oferecem a mesma sensação agradável que sente o navegante quando um vento favorável o empurra, ou um dia claro e um lugar aquecido pelo Sol no meio do Inverno e do frio” (22.3); “Não há mal essencial em ser rico, que a riqueza é útil e facilita a existência” (24.5); “A riqueza é serva na casa do sábio, mas senhora na casa do estulto; o sábio não lhe dá importância, para vós, ela é tudo. Vós, como se alguém vos tivesse prometido a sua eterna posse, acostumai-vos e apegai-vos a ela; já o sábio nunca medita tanto sobre a pobreza do que quando está rodeado de opulência” (26.1).

Busto de Séneca, autor anónimo do século XVII

Por outro lado, Séneca admite que o seu comportamento não é exemplar, pois ainda não alcançou a sabedoria: “Da virtude falo, não de mim; reprovo os vícios, a começar pelos meus. Quando me for possível, viverei como é devido” (18.1). E argumenta que, ainda que a sua virtude seja uma obra em curso, os seus defeitos são menos numerosos e graves do que os daqueles que lhe reprovam a incoerência.

Outro elemento central da defesa de Séneca é a ideia de que não há mal em que o filósofo possua “amplas riquezas, desde que não sejam produto de roubo, nem estejam manchadas de sangue alheio, ou tenham sido colhidas como fruto de injustiça ou sórdidos negócios” (23.1). Ora, embora uma fracção da lendária fortuna de Séneca proviesse de heranças familiares, são vários os indícios de que a sua maior parte foi obtida de forma dúbia e até ilegítima.

Mesmo considerando 1) que o escrutínio da actuação das altas figuras do Estado não tinha na Roma imperial o rigor que tem nos modernos regimes democráticos, 2) que senadores, governadores e outros altos funcionários não eram obrigados a apresentar periodicamente declarações de rendimentos e património, 3) que o abuso de poder, o peculato, a corrupção, a prevaricação e a participação económica em negócio (para usar a terminologia jurídica moderna) eram encarados com maior permissividade do que hoje, e 4) que, consequentemente, era muito frequente que quem era chamado a desempenhar altos cargos do Estado romano se servisse destes para locupletar-se, a dilatação da fortuna de Séneca durante os oito anos passados no topo da hierarquia do Estado teve proporções escandalosas.

Parte desse incremento foi conseguido graças a generosas doações (“liberalidades”, dirão outros) feitas por Nero, outra parte fazendo empréstimos a juros exorbitantes e usando métodos ardilosos e medidas de coacção para “espremer” os devedores. Um dos seus golpes mais lucrativos terá sido a extorsão de 40 milhões de sestércios à aristocracia da província da Britânia, o que gerou um descontentamento que terá sido uma das principais razões para uma revolta (fracassada) das tribos da região contra o ocupante romano, em 60-61, que ficou conhecida como Revolta de Boadiceia (ou Boudica).

Boadiceia (Boudica), rainha da tribo dos icenos, apela à revolta das tribos da Britânia, numa gravura de 1793 por William Sharp, a partir de quadro por John Opie (1761-1807)

Segundo Tácito e Cássio Dio, só nos primeiros quatro anos como braço direito de Nero (de 54 a 58), a fortuna de Séneca dilatou-se em 300 milhões de sestércios, quando, à data, a fortuna média dos membros da abastada classe senatorial romana era de cinco milhões de sestércios e o rendimento anual de um legionário romano rondava os 500 sestércios.

Em 58, a reprovação do comportamento de Séneca assumiu uma forma mais concreta quando Públio Suílio Rufo (Publius Suillius Rufus), que tinha sido quaestor (procurador) durante o reinado de Cláudio, o acusou, perante o Senado, de usar o cargo para enriquecer através de procedimentos imorais, de seduzir mulheres e rapazes, de lisonjear e ludibriar idosos ricos para que o nomeassem seu herdeiro e de “ocultar a sua ganância sob a capa filosófica da frugalidade”. Séneca reagiu movendo um processo por corrupção a Suílio (que estava longe de ser um modelo de probidade) e o tribunal condenou Suílio à perda de metade dos seus bens e ao exílio nas Ilhas Baleares. É possível que tenham sido as acusações de Suílio, e, em particular, a de “ocultar a ganância sob a capa filosófica da frugalidade” – uma estocada assaz dolorosa para quem se apresentava como figura de proa dos estóicos – que espicaçaram Séneca a escrever “Da vida feliz”.

Mesmo que nem todas as acusações feitas por Suílio tivessem fundamento, existem elementos disponíveis para concluir que o fabuloso pecúlio de Seneca não foi amealhado honestamente, o que confere à autodefesa lavrada em “Da vida feliz” um nauseante odor a hipocrisia, que nem a sua elaboração retórica nem a sua prosa cativante conseguem disfarçar. Mas mesmo que a fortuna de Séneca tivesse, por hipótese, sido amassada apenas com inteligência, trabalho, diligência e sorte, continuaria a existir uma falácia crucial na argumentação de “Da vida feliz”: é inquestionável que “jamais alguém condenou à pobreza a sabedoria”, mas o que os contemporâneos de Séneca lhe reprovavam não era que fosse sábio e rico, era que o seu discurso como sábio consistisse em exortar os outros a cultivar a austeridade e fosse obscenamente rico. Para tornar o caso de Séneca ainda mais indefensável, a escola estóica defendia que a verdadeira filosofia de cada um consistia, não nos princípios que enunciava, mas na forma como se comportava.

Zenão de Cítio (c.334-c.262), cópia romana da era de Augusto a partir de um original grego do século III a.C. O fundador do estoicismo seguramente não aprovaria o estilo de vida de Séneca

Os moralistas do nosso tempo e as suas contradições

Na Antiguidade como hoje, a quem publicamente proclama elevados princípios morais e deriva a sua fama e respeito junto das massas disso, exige-se que aja em consonância com o que prega. E como, nos nossos dias, os filósofos têm ínfima expressão no espaço público, são os políticos que mais frequentemente vêem a incoerência entre as suas palavras e os seus actos denunciada.

O que obrigou Ricardo Robles a renunciar, em 2018, ao cargo de vereador, pelo Bloco de Esquerda, na Câmara Municipal de Lisboa, e a retirar-se da actividade política não foi apenas a revelação de que tinha em curso um lucrativo negócio de “alojamento local” em Lisboa – foi a coincidência de ter sido eleito com um programa que pugnava contra a proliferação do “alojamento local”, a gentrificação e a especulação imobiliária.

O que fez Pablo Iglesias perder credibilidade junto do eleitorado espanhol de esquerda e extrema-esquerda, levando-o a renunciar à actividade política, não foi apenas a revelação, em 2018, de que o líder do Podemos adquirira uma moradia de 600.000 euros nos subúrbios de Madrid – foi a coincidência de, seis anos antes, Iglesias ter, no Twitter, criticado asperamente Luis de Guindos, ministro da Economia do Governo de Mariano Rajoy (Partido Popular) por ter adquirido um apartamento de… 600.000 euros.

O que fez o eurodeputado húngaro József Szájer, do Fidesz, renunciar ao cargo e abandonar a política não foi apenas o facto de, em 2020, ter sido apanhado (para mais, com droga na mochila) numa rusga policial a uma orgia gay em Bruxelas, um “convívio” que infringia o regime de confinamento decorrente da pandemia de covid-19 – foi a coincidência de o Fidesz, partido de extrema-direita, de que Szájer foi membro fundador, pugnar pelos valores cristãos e pela família tradicional e ter vindo a cercear seriamente os direitos da comunidade LGBTQ+ na Hungria.

Todavia, nem sempre a revelação pública de flagrantes contradições entre as palavras e os actos de um político resulta no termo da sua carreira, ou, pelo menos, em indignação popular e perda de popularidade.

É o caso de Donald Trump, cujos simpatizantes parecem aceitar de bom grado que ele enalteça os valores familiares e, estando casado, recorrer amiúde aos serviços de prostitutas de luxo e haver pelo menos 18 mulheres que o acusam de assédio sexual e violação, tal como não se incomodam por ele demonizar os imigrantes ilegais e prometer tratá-los de forma intransigente e expulsá-los do país, mas empregá-los nas suas empresas.

Também o apreço dos sectores mais conservadores da sociedade britânica por Nigel Farage, fundador e ex-líder do UKIP (UK Independence Party) e do Brexit Party, parece ser imune ao desacerto entre o que este político populista ultraconservador defende publicamente e o que faz em privado: sendo crítico acerbo do estilo de vida opulento das elites, usufruiu durante anos dessas mesmas mordomias, com a agravante de terem sido pagas, não pelo seu trabalho ou património, mas pelo milionário Arron Banks, seu correligionário; sendo chefe-de-fila do anti-europeísmo no Reino Unido e crítico feroz do Parlamento Europeu (PE) e restantes instituições da União Europeia, é beneficiário não só da generosa pensão de reforma atribuída aos eurodeputados, como de um (não menos generoso) complemento de reforma destinado a eurodeputados (na verdade, um esquema de pirâmide que acabará, em última análise, por ser pago pelos contribuintes europeus); pugnando pelos valores ancestrais britânicos e por um Reino Unido etnicamente “puro”, tendo amiúde produzido declarações xenófobas e apresentando-se como obreiro-mor do Brexit e adversário da imigração, do multiculturalismo e do cosmopolitismo, providenciou que duas das suas filhas obtivessem passaportes alemães, que lhes permitem circular livremente na União Europeia pós-Brexit.

Nigel Farage discursando na Conservative Political Action Conference (CPAC), no estado de Maryland, EUA, em 2018; foto de Gage Skidmore

À partida, não é incompatível ser-se de esquerda e viver-se desafogadamente, nem ser-se de direita e ser-se homossexual ou adúltero – o problema surge se esse esquerdista tiver um discurso moralista contra a riqueza ou se se esse direitista tiver um discurso moralista que condena a homossexualidade e o sexo extraconjugal.

As contradições escandalosas entre o que se prega e o que se faz não se confinam, claro, à filosofia e à política. As religiões têm um longo e infame historial de divergência entre os preceitos que advogam – renúncia aos bens materiais; ênfase na vida espiritual; abstinência sexual ou restrição do sexo ao propósito da procriação e, ainda assim, observando regras estritas de contenção e decoro; conduta proba; auxílio aos mais fracos, indefesos e pobres – e a prática efectiva de muitos dos seus membros, sejam eles santimoniosos padres e bispos da Igreja Católica, austeros ayatollahs ou seráficos yogis hindus.

No final do século XX, as vedetas do entretenimento de massas – actores, músicos, desportistas, etc. – ganharam tremendo peso no espaço público e muitos começaram a disputar a primazia na influência sobre as massas aos políticos e líderes religiosos e hoje é frequente que superem largamente estes em número de seguidores nas redes (ditas) sociais – o critério supremo de popularidade, apreço e respeito do nosso tempo. Muitas dessas vedetas adoptaram discursos moralistas que nem sempre são congruentes com as suas opções de vida: Bono, o vocalista dos U2, arvora-se em paladino dos desvalidos, deplora a persistência da desigualdade no mundo e condena a ganância das grandes empresas, a torpeza dos políticos e o recurso a paraísos fiscais, mas em 2006 o Sr. Paul David Hewson transferiu o seu domicílio fiscal da Irlanda natal para a Holanda, onde os seus rendimentos são taxados mais “suavemente”, e em 2017, a divulgação dos “Paradise Papers” revelou que também tinha dinheiro investido em “offshores” em Malta (nota: o Sr. Paul David Hewson e Bono são a mesma pessoa).

Leonardo DiCaprio patrocina organizações ambientalistas e tem sido orador em numerosas conferências sobre alterações climáticas e conservação da natureza; Gwyneth Paltrow recomenda que se urine no duche para poupar água; Juliette Binoche sobe a uma árvore numa rua de Paris para expressar apoio a um eco-activista que se opõe ao abate de árvores; Arnold Schwarznegger, Harrison Ford, James Cameron e Paul McCartney apelam a que se reduza ou cesse o consumo de carne; Jane Fonda, Ben Affleck, Meryl Streep, Mark Ruffalo, Joaquin Phoenix, Shailene Wooley, Natalie Porter, Mélanie Laurent e Marion Cotillard intervêm em documentários/manifestos contra a degradação ambiental e incitam os seus fãs a separar o lixo, a moderar os impulsos consumistas, a rejeitar a “fast fashion”, a fazer “escolhas ambientalmente conscientes” e a pressionar os governantes para que tomem medidas em prol da redução das emissões de carbono. Todavia, não prescindem do seu estilo de vida ambientalmente insustentável, que envolve, entre outras benesses e mordomias, mansões opulentas, carros de luxo e jactos privados (ver Urinar no duche não adia o fim do mundo).

Leonardo DiCaprio, acompanhado por John Kerry, nos bastidores da conferência Our Ocean, em Washington DC, em 2016

O mesmo pode dizer-se de outra vedeta planetária do entretenimento de massas, a família real britânica, que também gosta de posar como defensora do ambiente, da sustentabilidade e do tratamento ético dos animais – por exemplo, na peugada de Marie Antoinette e do seu Hameau de la Reine, o príncipe Harry e a sua esposa Meghan Markle gostam de “brincar aos pobrezinhos”, encenam para as câmaras uma vida “rústica” e “simples” e, numa das suas mansões, até acolhem galinhas “resgatadas” das garras dos aviários industriais. Porém, o seu estilo de vida é tão consumista e insustentável quanto o dos seus colegas do “showbiz” (ver Alterações climáticas: Estaremos todos no mesmo barco?). Na hipocrisia ambiental, o jet set é acompanhado pelas mega-empresas multinacionais – sobretudo as do sector energético e automóvel – que gastam fortunas em anúncios de tom moralista e aura virtuosa, em que se arvoram em paladinas da preservação do planeta e juram que o seu desiderato é criar um “futuro verde”, ao mesmo tempo que prosseguem o seu obnóxio “business as usual” e incitam ao consumismo (ver Promessas, ilusões e falácias da mobilidade eléctrica e o capítulo “Os mestres do ilusionismo” em As alterações climáticas e a conferência das Nações Unidas: O Grande Circo Carbónico).

O animalismo, cuja expansão no século XXI tem sido tão rápida quanto o recuo do humanismo, recorre a um tom usualmente estridente, intransigente e de superioridade moral, confunde o tratamento ético dos animais com a sua equiparação a seres humanos e esforça-se por que as pessoas que consomem carne ou até qualquer produto de origem animal se sintam como assassinos, bárbaros ou irresponsáveis. Todavia, o animalismo encoraja os seus crentes a rodear-se de cães e gatos de estimação, sem parecer dar-se conta de que a alimentação destas criaturas absorve hoje em dia cerca de 20% da produção mundial de carne (ver capítulo “Quando os nossos amigos comem outros animais sencientes” em Há animais mais iguais do que outros?).

A superioridade moral é o tom dominante entre os “activistas” (de rua ou de sofá) do ambientalismo e do animalismo (duas “ideologias” que frequentemente se sobrepõem), mas acontece que a maioria deles provêm da classe média-alta e têm padrões de consumo – em todas as vertentes da vida: habitação, conforto, alimentação, vestuário, meios de locomoção, viagens, lazer – mais sumptuários e ambientalmente mais danosos do que os da grande massa da população a quem exortam a viver frugalmente (ver capítulos “Uma besta que compra e compra e compra” e “O capitalismo e a natureza humana” em Mark Stoll, a economia e a natureza: É o capitalismo que está a devorar o planeta?). Séneca reconheceu publicamente a dissonância entre a sua filosofia e a sua actuação, mas os jovens devotos de Santa Greta que atacam obras de arte, cortam estradas, se colam ao chão na entrada de sedes de empresas e organismos de Estado e se penduram em viadutos, exigindo o fim imediato da extracção e consumo de combustíveis fósseis, parecem não ter a mais pequena consciência da sua condição de privilegiados, nem de como esta está (e continuará a estar durante os próximos anos) estritamente dependente dos combustíveis fósseis.

O discurso moralista é uma receita garantida para obter a adesão das massas, proporciona belos floreados retóricos e coloca quem o profere no topo de uma coluna de mármore branco sobranceira a um lamaçal de corrupção, venalidade e mesquinhez, mas obriga – ou deveria obrigar – a que se viva à altura dos virtuosos preceitos que se apregoam.

O maior fiasco de Séneca

Ainda que Séneca tenha estado longe de viver em consonância com os seus ensinamentos, levando a que, ao longo dos dois últimos milénios, tenha sido alvo de comentários reprovadores e de acusações de hipocrisia, é possível que o maior fracasso da sua filosofia tenha sido Nero.

Nero Cláudio César Augusto Germânico (37-68), filho de Cneu Domício Enobarbo (Gnaeus Domitius Ahenobarbus) e de Agripina a Jovem (Julia Agrippina Minor – o cognome “a Jovem” serve para a distinguir da sua mãe, Vipsania Agrippina), entrou na linha sucessória imperial quando, em 49, após o falecimento do seu pai biológico, a sua mãe (cuja ambição só tinha rival no seu maquiavelismo e na sua ausência de escrúpulos) casou com o seu tio, o imperador Cláudio, e persuadiu este a adoptar Nero e a designá-lo como seu herdeiro. Nesse mesmo ano, Agripina fez vir Séneca do exílio para ser preceptor de Nero, então com 12 anos; quando, em 54, o jovem Nero se tornou imperador, Séneca passou a ser seu conselheiro, juntamente com Sexto Afrânio Burro, o que, dada a inexperiência de Nero, significou que estes dois homens e Agripina foram quem tomou nas mãos os aspectos práticos da governação do Império. Nero, impermeável aos austeros princípios estóicos que Séneca tentou inculcar-lhe, começou a ter um comportamento cada vez mais extravagante e caprichoso e a tentar libertar-se da influência da mãe, que, aparentemente, pretendia governar Roma através do filho. Em 55, suspeitando de uma aliança entre Agripina e o seu meio-irmão Britânico (Tiberius Claudius Caesar Britannicus), então com 13 anos, mandou envenenar este e justificou a sua morte com um ataque epiléptico. Em vez de fazer frente ao seu depravado discípulo ou afastar-se da governação e da corte imperial, Séneca redigiu o diálogo “Da clemência”, onde lisonjeava o jovem imperador e tentava persuadi-lo de que o poder deve ser exercido de acordo com a razão e que o governante deve ser clemente.

Nero e Séneca, escultura de 1904 por Eduardo Barrón

Ao longo da história, muitas têm sido as mentes brilhantes e animadas de boas intenções que alimentaram a ilusão de terem o poder de seduzir tiranos narcísicos, calculistas e sem escrúpulos (como Hitler, Stalin ou Putin), chamá-los à razão e recolocá-los no bom caminho, e também Séneca é culpado dessa mescla de presunção e ingenuidade. Se leu “Da clemência”, Nero deve ter-se ficado pela parte da bajulação, pois clemência, racionalidade e moderação foram qualidades de que nunca deu mostras. Ainda em 55, farto das interferências da mãe, expulsou-a da corte imperial, retirou-lhe honrarias e privilégios e demitiu Marco António Palas, um importante aliado de Agripina, do cargo de tesoureiro. Por volta de 58, Nero tornou-se amante de Popeia Sabina, esposa do seu amigo Marco Sálvio Otão (o próprio Nero estava casado, desde os 14 anos com Cláudia Octávia, filha de Cláudio e, logo, sua meia-irmã), o que terá abespinhado Agripina, que viu em Popeia uma rival apostada em anular a sua influência sobre Nero – a desconfiança de Agripina era fundamentada, já que Popeia fazia campanha junto de Nero para que este se libertasse de vez da mãe e assumisse integralmente as prerrogativas imperiais (e, claro, fizesse dela imperatriz) e provocava-o chamando-lhe “menino da mamã”.

Ou devido às pressões de Popeia ou simplesmente por estar a ficar exasperado com as incessantes ingerências, manipulações e intrigas de Agripina, Nero decidiu assassinar a mãe. Após várias tentativas falhadas de envenenamento, recorreu a armadilhas de sofisticação e tortuosidade dignas de Wile E. Coyote e que, como as engenhocas desta personagem, fracassaram. A última delas, em 59, recorreu a um sumptuoso navio de recreio que ofereceu à progenitora e cujo convés tinha sido concebido para abater-se sobre ela no momento oportuno, mas Agripina escapou ilesa, saltou do navio e nadou até à costa; Aniceto (outro ex-preceptor de Nero), que fora responsável pela (desastrada) execução deste golpe, recebeu, então, instruções para eliminar Agripina de forma mais expedita, ainda que menos subtil: à punhalada.

Nero perante o cadáver de Agripina, por Antonio Rizzi, c.1897-99. A recriação é fantasiosa, uma vez que Nero estaria longe do local do assassinato de Agripina

Tácito informa que o assassinato de Agripina terá contado com o assentimento de Séneca e Burro (que há muito andavam de candeias às avessas com Agripina), Cássio Dio sugere mesmo que o estratagema do barco armadilhado terá sido ideia de Séneca (e que terá deliciado Nero). Mesmo que Séneca não tenha estado envolvido no matricídio, foi ele quem redigiu o “comunicado” de Nero ao Senado, informando que Agripina se suicidara na sequência do desmantelamento de uma (suposta) conspiração urdida por si para assassinar o próprio filho.

A partir de 59, Nero foi assumindo cada vez mais a governação e a influência de Popeia Sabina sobre ele foi aumentando, ao mesmo tempo que a de Séneca e Sexto Afrânio Burro declinava. Em 62, a morte de Burro (por envenenamento, segundo Cássio Dio e Suetónio) deixou Séneca ainda mais desamparado e impotente perante os desmandos do seu antigo discípulo. Foi nessa altura que Séneca fez uma primeira tentativa para abandonar o cargo de conselheiro, mas Nero não acedeu ao seu desejo, tal como recusou novo pedido feito por Séneca em 64, após o Grande Incêndio de Roma, que desencadeara novas demonstrações de crueldade e prepotência pela parte do imperador, como sejam a perseguição aos cristãos, a quem culpou pelo sinistro, e a promoção de um megalómano complexo de palácios e jardins na área ardida, a Domus Aurea. De qualquer modo, uma vez que Nero deixara de solicitar o seu conselho, Séneca começou a passar cada vez mais tempo numa das suas villae e a dedicar-se à escrita.

Porém, se Séneca já não tinha para Nero qualquer utilidade, o imperador não estava disposto a conceder-lhe uma velhice tranquila, no gozo das formidáveis posses que acumulara: em 65, a descoberta de uma conspiração contra Nero (esta, real), organizada por Caio Calpúrnio Pisão (Gaius Calpurnius Piso), deu pretexto ao imperador para fazer uma purga sangrenta. Entre as numerosas vítimas da repressão contaram-se Séneca (que não teria estado envolvido na conjura) e um seu sobrinho, o poeta Lucano (que fazia parte dos conjurados). Os “conspiradores” foram “convidados” a suicidar-se e Séneca pôs termo à vida pelo método usual entre a aristocracia romana, abrindo as veias no banho.

O suicídio de Séneca imprimiu uma forte marca na história da cultura ocidental e foi tema de vários quadros – um dos mais célebres é o que foi pintado por Peter Paul Rubens, c.1612-15

Nero só viveria mais três anos: em 68, eclodiu uma revolta na Gália contra os pesados impostos decretados por Nero (em parte para custear a sumptuosa Domus Aurea), o que levou, após peripécias várias, a que Sérvio Sulpício Galba, governador da Hispania Tarraconensis, se assumisse como candidato a imperador. Galba ganhou rapidamente apoios na Península Itálica e Nero, dando o império por perdido, considerou várias formas de, ao menos, salvar a pele; após vacilações e fugas atabalhoadas, acabou por concluir que o suicídio era a única saída que lhe restava – não o enfrentou, todavia, com a dignidade do seu mestre e, por falta de coragem, teve de arranjar alguém que o matasse (ver capítulo “Nero” em Pão, circo, veneno e punhaladas).

O legado de Séneca

Se, na visão tradicional da História, era usual atribuir as virtudes de Alexandre da Macedónia ao facto de, entre os 13 e os 16 anos, ter tido Aristóteles como preceptor, já Séneca parece ter sido incapaz de transmitir a Nero o mais pequeno fragmento da sabedoria patente nos Diálogos ou nas Cartas a Lucílio. A culpa por este rotundo insucesso pedagógico pode ser imputada, antes de mais, a Nero: ao contrário do que defendem os psicólogos amáveis que hoje reinam e crêem piamente, como Jean-Jacques Rousseau, na bondade intrínseca das crianças (e dos “selvagens”), há mesmo maus rapazes (e más raparigas) e nem a educação mais cuidada é capaz de afastá-los da inclinação inata para a torpeza. Mas também é possível que Séneca, tal como não parece ter tido grande disposição para colocar em prática a nobre conduta que pregava, também não tivesse dotes pedagógicos para a transmitir. Ou talvez o jovem Nero fosse suficientemente arguto para se dar conta da incongruência entre a filosofia e o estilo de vida do seu preceptor e encarasse as prédicas deste com cinismo e distanciamento. Ou, quiçá, a convivência de Nero com a sua “tóxica” progenitora tivesse sido muito mais importante na modelação da sua personalidade do que a nobre filosofia do seu mestre. Seria, todavia, injusto atribuir todas as más influências a Agripina, quando a corte imperial era um poço de víboras e um viveiro de taras e até o seu pai adoptivo, Cláudio, retratado por Tácito como um idiota inerme e por Robert Graves de forma relativamente benévola, combinava argúcia com um carácter cruel e irascível, apreciava ver correr sangue e nunca hesitou em recorrer ao assassinato para alcançar os seus intentos.

Séneca e Nero, por Peter Paul Rubens, c.1617

Diga-se de passagem que a prolongada conivência de Séneca com os desmandos de Nero e as lisonjas que lhe endereçou tiveram antecedentes na sua relação com o imperador Cláudio: teceu-lhe elogios quando estava no exílio (esperando, provavelmente, convencer o imperador a perdoá-lo) e escreveu para ele um elogio fúnebre (lido por Nero no funeral do pai adoptivo), mas ridicularizou-o impiedosamente poucos meses depois da morte, numa sátira intitulada Apocolocyntosis divi Claudii (A aboborização do divino Cláudio).

Em “Do ócio”, Séneca defende, na linha do que advogava o estóico Zenão e contra a opinião dos epicuristas, que o sábio não só pode colocar a sua sabedoria ao serviço dos outros, como tem essa obrigação: “O que se exige ao homem é que seja útil aos outros homens […] Quando se torna útil aos outros, ocupa-se de uma causa comum” (3.5). Abre porém excepções: “se a política está tão corrompida a ponto de não poder ser ajudada, e se está apoderada de males […], se [o sábio] tiver pouca autoridade ou pouca força […], se a doença o impedir” (3.3).

Uma vez que a redacção deste diálogo costuma ser situada no ano de 62, pode ver-se nas palavras acima uma justificação para as escolhas de Séneca: até 62, ao lado de Nero, mesmo quando este já dava mostras de ser dominado por instintos obnóxios, na esperança de ser capaz de moderar estes; e requerendo a dispensa dos seus serviços em 62, quando a política (Nero) fora “corrompida a ponto de não poder ser ajudada” e estava “apoderada de males” e ao sábio (Séneca) restava “pouca autoridade ou pouca força”.

Séneca poderá ter sido hipócrita, bajulador e ganancioso, mas, ao menos, reconheceu as suas imperfeições: “Não sou sábio […] e nunca o serei. Exige-me pois, que não que seja igual aos melhores, mas melhor do que os piores. Isto é-me suficiente: tolher um dos meus defeitos a cada dia que passa e corrigir os meus erros” (“Da vida feliz”, 17.3).

Possamos nós, dois milénios depois, adoptar este (aparentemente) modesto programa de vida, tomando como farol, não a questionável conduta de Séneca mas os seus admiráveis escritos.

O suicídio de Séneca, por Jacques-Louis David, 1773

A moderna sociedade ocidental, que é guiada pelo hedonismo – a exaltação do consumismo, do materialismo, da busca de prazeres sensoriais e da recompensa instantânea –, que vive imersa num torvelinho de excitações fugazes, frívolas e inconsequentes, que faz os possíveis por ignorar e ocultar a realidade da morte (e tem esperança que o progresso tecnológico lhe ofereça a eternidade), que crê ser possível erradicar todo o sofrimento, desconforto, dificuldade e atrito e reclama por “safe spaces” e “trigger warnings”, que cultiva a auto-comiseração, a auto-indulgência, a auto-estima e a pieguice e anseia por “colinho” e “miminhos”, estará, naturalmente, pouco receptiva a conselhos vindos da escola estóica, que advoga uma conduta guiada pela virtude, hábitos de vida frugais, a aceitação do destino (tudo o que nos acontece é necessário, ainda que envolva perda e sofrimento), o aperfeiçoamento do autocontrolo, que permite libertar o ser humano do jugo das emoções (vistas pelos estóicos como destrutivas), e a constante e serena reflexão sobre a morte, entendida, não como mal, mas como pré-condição da vida. Mas talvez seja mesmo de uma cura de estoicismo que o mundo está a precisar.