Sobre os escombros espirituais e materiais da II Grande Guerra, ergueu-se ou, melhor dizendo, reergueu-se a Democracia. Graças ao Plano Marshall, os EUA estenderam-nos a mão de que precisávamos para recuperar uma Europa devastada e falida. Com a avalanche dos dólares, e com a memória fresca da brutalidade da guerra e da selvajaria dos regimes totalitários – fascistas, nazis ou comunistas –, os governos europeus e as sociedades europeia§s estabeleceram um consenso sobre as prioridades: remover os escombros, reedificar os países, difundir a Democracia e o mercado livre, mas guiado pela mão bem visível do Estado Social. Tudo, ou o principal, correu bem. Em Maio de 1968, uma geração mimada e irresponsável, que não conhecera as agruras da guerra e crescera num ambiente de abundância, exigia não apenas o que seria razoável mas também que houvesse praias sob o pavimento das avenidas parisienses. A vida era ou parecia fácil. Porém, a crise petrolífera de 1973 veio por água na fervura. Afinal, a abastança não caía do céu; era preciso trabalhar e suportar privações. A partir daí, nenhuma Democracia se pôde dar ao luxo de nos presentear com a possibilidade de não pensar no presente nem acautelar o futuro. Nós, geração de 68, acolhemos esta nova realidade com mau humor. Mas, a muito custo, e muito contrariados, lá nos resignámos à ideia de que não existem almoços grátis. Porém, desde 1973, a Democracia esteve intermitentemente debaixo de fogo. A partir dos anos noventa, falava-se regularmente em crise da Democracia. A tendência não se alterou com a entrada no século XXI, pelo contrário.
Porquê ? Principalmente porque fechara as mãos largas de outrora; o Estado tornou-se avaro. Sim, claro, a Democracia assentava nos preciosos Direitos Humanos, nas eleições livres, no Estado de Direito e na separação de poderes. E, muito principalmente, garantia a liberdade individual e colectiva. Com a passagem dos anos e das décadas, todavia, estas benesses foram dadas como banalidades adquiridas e garantidas. As sociedades europeias começaram a manifestar um crescente desapego à Democracia: esta já dera o que tinha para dar e certamente não podia fornecer uma razão ou um sentido para a vida de cada um. Com efeito, a Democracia não oferece nenhum alimento espiritual. É um mero mecanismo de selecção e recrutamento dos governantes e das elites políticas, legitimados pelo voto universal. Em contrapartida, oferece um bem único e precioso: Liberdade. Mas aqui começam os problemas: a grande maioria das pessoas não precisa de Liberdade – precisa de um certo desafogo, de um SNS e de segurança. Aliás, desde a Revolução Francesa que a paixão igualitária sempre se sobrepôs ao amor da liberdade, conforme denunciaram já no século XIX um Benjamin Constant, um Alexis de Tocqueville ou um Alexandre Herculano. Este liberal dos quatro costados bem percebeu que “quanto mais igual for uma sociedade menos livre ela será”; Constant, por volta de 1820, considerava que “Um dos maiores erros da nação francesa é nunca ter dado suficiente importância à liberdade individual.” Tocqueville não hesitou em escrever que os radicais “adorariam a igualdade nem que se caísse na servidão”.
O liberalismo, portanto, nunca pôde nem poderia no futuro servir de argamassa social. O igualitarismo radical também não, porque conduz em linha directa à omnipotência do Estado, incumbido de suprimir as diferenças misteriosamente cavadas pela mecânica espontanea das sociedades. Só uma vigorosa pujança cultural poderia gerar o grude necessário para manter uma comunidade natural e voluntariamente unida por um destino percebido como comum. O pós-modernismo, com o seu nihilismo epistemológico e a absoluta relativização de todos os valores e inclusive de todos os factos, destruiu esta possibilidade. A Europa e a União Europeia não deveriam ser conceitos geográficos e políticos, deveriam representar “uma noção espiritual que é sinónimo de Ocidente” (Milan Kundera, 1983). Uma identidade europeia apenas poderia sustentar-se sobre os alicerces de grandes criações espirituais. A cultura espelha e simultaneamente cria os principais valores que, partilhados, asseguram a coesão nacional ou civilizacional. Infelizmente, não existe hoje em dia, no Ocidente europeu, nada disto. A somar ao fracasso cultural, a obsessão identitária deu e continua a dar um indesejável contributo para a fragmentação das sociedades ocidentais.
A este vazio cultural e moral não é decerto estranha a amputação da Mitteleuropa, no fim da II Guerra, transmutando-se o que era uma “noção espiritual” num conceito meramente geográfico: os países de Leste (ou a Europa de Leste). Esse alfobre de inteligência e criatividade, encravado entre a Alemanha ocidental e a cortina de ferro, desapareceu do mapa, absorvido que foi pela União Soviética, que se encarregou de cilindrar o que nesse espaço ainda borbulhava culturalmente. Só a Áustria escapou ao caterpillar comunista. Mas, isolada e brutalmente desligada do todo que antes constituíra a Mitteleuropa – checos, húngaros, polacos – a intelligentsia austríaca não se revelou capaz de compensar ou suprir a estiagem das anteriores fontes de inspiração. A Europa ocidental viu-se privada do viveiro de pensadores, escritores, pintores, romancistas e cientistas que durante séculos, imersos num mundo ainda enraizado no longínquo império Habsburgo, tinham presenteado a Europa com um contributo insubstituível para a cultura ocidental no seu todo. A lista dos criadores oriundos da Mitteleuropa é interminável. Destaquem-se, porém, os judeus, que “no século XX foram o principal elemento cosmopolita e integrador da Europa Central, a condensação do seu espírito criador, da sua unidade espiritual. A Europa Central não é um Estado, mas uma cultura ou um destino”. (M. Kundera, 1983) Por que razão não deu a Europa pelo eclipse da Mitteleuropa? Porque, responde Kundera, “a Europa já não sente a sua unidade como uma unidade cultural”.
Hoje em dia, a União Europeia é, em essência, uma Super-Direcção-Geral de Contabilidade e Finanças, que os países do Sul, incluindo a França, espremem o mais que podem. Esta desertificação não é alheia ao facto de que, por mais que os nossos governantes se abracem em Bruxelas, o europeísmo tem vindo a esmorecer, como se pode verificar pela proliferação de partidos nacionalistas anti-Europa, para não mencionar o desligamento em curso da Grã-Bretanha (vulgo: Brexit).
“Falta à Europa um fôlego político [e] uma verdadeira dimensão espiritual”, lamentava Vaclav Havel em 2007, acrescentando logo de seguida: “Pela primeira vez na história , assistimos ao desenvolvimento infrene de uma civilização deliberadamente ateia.” Por ateísmo Havel não entende a irreverente negação da existência de Deus; ele próprio não adere a nenhuma religião revelada. Entende-o como o materialismo de uma civilização tecnológica e avidamente consumista, para a qual apenas importam o evidente e os bens mensuráveis e palpáveis, como o lucro, por exemplo. Entende ainda por ateísmo o confinamento do ser humano dentro dos limites dos fenómenos físicos observáveis e portanto comprováveis, como se o ser mais íntimo e profundo do homem pudesse ser captado pela sua conformação biológica. Entende ainda por ateísmo a incapacidade de sentir o insondável Mistério do Universo e da nossa própria existência terrena. E também a recusa de que há algo de comum a toda a Humanidade, que é una porque em todos os tempos e em todas as culturas os antropólogos deparam com os mesmos mitos e rituais, que contam todos as mesmas histórias, mesmo que essas culturas nunca tenham estado em contacto umas com as outras: “Todas as culturas” – desde os tempos mais arcaicos – “assumem a existência de algo a que se pode chamar «a memória do Ser»” (V. Havel, 1995).
Existia (ou ainda existe ?) uma mitologia ameríndia cujos tópicos e arquétipos apresentam semelhanças flagrantes com todas as demais mitologias no mundo inteiro (Filipe P. C. Verde, RTP2, Outubro de 2017). O ateísmo contemporâneo impede a apreensão desta Transcendência, que galga indivíduos, países, continentes e oceanos para dar a conhecer a unidade da natureza humana e, por conseguinte, a pertença de cada um a um mesmo e único Ser. O ateísmo “despreza tudo o que de alguma maneira resiste à deprimente estandardização e ao racionalismo de uma civilização técnica” (V. Havel, 1955).
Falta à Democracia uma dimensão espiritual alicerçada no reconhecimento da unidade humana, na partilha de um destino comum a todos os homens, na interpelação do mistério que é o Universo por muito que a NASA o investigue. O homem contemporâneo, escreveu Havel, “perdeu a sua âncora transcendente […] É por causa desta perda que a Democracia está a perder muita da sua credibilidade. […] Falta-lhe estabelecer uma ressonância ou sintonia com a nossa natureza mais profunda”. (It.meu) O que Havel nos dizia em 1995 é que a espiritualidade, isto é, a nossa capacidade para nos conectarmos com o Infinito e a Eternidade, é o que verdadeiramente nos qualifica como humanos. E, já agora, que a nossa sujeição aos “valores” de uma civilização puramente técnica faz de nós seres alienados, carentes de qualquer coisa que não sabemos nomear. Esta busca de qualquer coisa não é de agora, é pelo menos tão antiga como o homo sapiens. A questão está em que nesta “civilização tecnológica” os ocidentais cessaram de buscar. (Com muitas excepções, claro.)
O cerne do calcanhar da Democracia reside portanto numa falência cultural, pois a cultura, em sentido lato, é o domínio em que se aduba o solo no qual germinam e florescem os valores mais importantes que presidem ou devem subjazer e presidir à organização social. Havel pede à Democracia o que ela, por definição, não pode nem lhe compete dar: o equivalente de uma religião, uma religião paradoxalmente laica. Creio que o pensamento de Kundera, expurgado do misticismo que tinge o pensamento de Havel, aponta numa direcção mais certeira: a cultura contemporânea, escreveu Kundera logo em 1983, abdicou do seu papel, demitiu-se da sua missão de alimentar as aspirações e satisfazer as ânsias da sociedade e das pessoas.
Nem sempre foi assim. Na Idade Média era a religião comum que unia e definia a Europa católica, apostólica e romana. Na Idade Moderna, “quando o Deus medieval se transformou em Deus Absconditus”, a religião cedeu o lugar à cultura, que passou a ser o domínio em que se realizavam “os valores supremos pelos quais a humanidade europeia se compreendia a si própria e se identificava”. Ignora-se a quem ou a quê a cultura cedeu esse papel. “Creio saber apenas que a cultura prescindiu do seu lugar.” Kundera não divisava, já em 1983, “nenhuma criação valiosa e nenhum pensamento forte”. Talvez que pelo menos uma parte do enigma esteja no facto de que as criações culturais passaram a ser mercantilizadas e, como todas as mercadorias, estão de há muito sujeitas às leis da oferta e da procura, influenciáveis por críticos, museus e galeristas que, em última análise, detêm uma parte muito apreciável – senão decisiva, em muitos casos – na determinação do que é arte, literatura e por aí fora. Na maioria das Universidades, a progressiva eliminação do estudo das Humanidades, o banimento do que se chamava “uma educação liberal”, abrirão e deixarão todo o espaço aos comerciantes e contrabandistas. Uma coisa é certa: não podemos pedir à Democracia o que ela não foi feita para nos dar: o renascimento da espiritualidade. Semelhante desígnio, como demonstra o caso da Rússia, só pode conduzir à catástrofe.
Vladimir Putin tomou posse como Presidente da Rússia em 1999. Em 2012 revelou ao que vinha. Nada menos do que ao restabelecimento do antiquíssimo Império russo, embora aggiornato em função do mundo moderno. Rodeou-se de uma série de intelectuais e filósofos associados ao fascismo (e até ao nazismo), todos eles herdeiros de Ivan Ilyn, um teórico do totalitarismo cristão que se exilara após a revolução de 1917 e falecera em 1954. A esta fonte de inspiração, Putin acrescentou o “eurasianismo” de Lev Gumilev, filósofo e historiador falecido em 1991, um dos principais maîtres à penser do filósofo Alexander Dugin, também este um profeta do novo Império russo a quem podemos atribuir uma lista de epítetos: nostálgico da glória imperial; místico; fascista; nazi; nacionalista e imperialista. Coincidência ou não, foi naquele ano de 2012, quando Putin, num discurso oficial, cita Ilyn e sinaliza uma brusca viragem anti-europeia, que se constituiu o Clube Izborsk, onde pontificavam um tal Prokhanov e outras eminências que aconselhavam (aconselham?) Putin. No Manifesto da sua fundação, pode ler-se: “«O Estado russo actual, apesar da perda de grandes territórios, ainda tem a marca do Império. A geopolítica do continente euroasiático reúne vigorosamente os espaços que foram perdidos. É esta a legitimação do ‘projecto eurasiático’ iniciado por Putin.»” (Timothy Snyder, 2019, it.meu) O restabelecimento do Império exigia a reunião da Bielorússia (Belarus) e da Ucrânia com a Rússia. É neste contexto que devemos encarar a ocupação da parte oriental da Ucrânia como um passo na prossecução do sonho imperial.
De 2012 para cá, o principal objectivo estratégico de Putin é enfraquecer e, se possível, ajudar a destruir a União Europeia, aprovando toda a espécie de separatismos na Europa Ocidental, como a Catalunha, por exemplo. Mas as suas armas de propaganda anti-ocidental tocam as raias do delírio: o anti-semitismo feroz, com longas raízes na Rússia, e a condenação da homossexualidade.
A componente anti-semita é fulcral. Disse em entrevista Prokhanov: “«O anti-semitismo […] é um resultado do facto de os judeus dominarem o mundo e usarem o seu poder para o mal.»” Conclusão de Snyder: “A única defesa contra a conspiração judaica internacional era um redentor russo.” Dugin já vituperara a conivência das elites europeias com a homossexualidade, o que comprovava a depravação do Ocidente, desejoso que estaria de exportar a “homofilia” para perverter, enfraquecer e violar a pureza e a inocência da Mãe Rússia. Deve notar-se que Marine Le Pen, em visita a Moscovo, aplaudiu “com entusiasmo” ideia da missão civilizadora da Rússia de Putin, declarando que “«os direitos dos homossexuais eram a ponta de lança de uma conspiração liberal global contra as nações inocentes: a homofilia é um dos elementos da globalização»”. A Rússia seria demasiado autêntica e virtuosa para que por lá se contraísse a SIDA, por exemplo. No Verão de 2013, a Rússia far-se-ia a campeã da heterossexualidade. Dugin destacou-se com a sua tese fanática de que “«só uma extrema-direita unida podia salvar a Europa de um Satanás homossexual»” (T. Snyder). Intelectuais russos chegaram mesmo a teorizar o conceito de “geopolítica sexual”.
A Rússia, formalmente, é uma democracia. De facto, é uma autocracia oligárquica e cleptocrática, chefiada pelo messiânico Putin, que não hesitou nem hesita em adoptar um discurso fascista que lhe permite chegar directamente ao povo e passar por cima de um parlamento vergonhosamente submisso (Peter Pomerantsev, 2014). Observador atento da derrocada da Rússia durante o cómico consulado de Yeltsin, Putin tratou não só de restaurar a autoridade do Estado mas também, ou sobretudo, de explorar a velha tradição mística e messianista fundamente impregnada no povo russo, a fim de conquistar uma legitimidade que ia muito para além das contabilidades eleitorais. Socorreu-se de intelectuais e filósofos fascistas, anti-semitas, homofóbicos, imperialistas para fazer o que fazem todos os ditadores fascistas: estabelecer com o povo uma relação afectiva pessoal, directa e emocional, que dispensa as instituições democráticas de intermediação entre o povo e o Poder – que ele no entanto mantém (por ora) para inglês ver. Vêmo-lo na Televisão a praticar vários desportos, exibindo o seu físico musculado, símbolo da virilidade, da força física e da heterossexualidade. E o povo russo orgulha-se do seu líder, do seu Messias que devolveu à Mãe Rússia a dignidade transitoriamente perdida, e devolveu aos cidadãos de ser e um sentido para as suas vidas – ao custo de eles próprios se vergarem à servidão.
Como disse Churchill, numa frase omnicitada, a Democracia é o menos mau dos regimes conhecidos.