Desde o passado dia 15 que todos os gregos com mais de 60 anos arriscam-se a pagar uma multa de 100 euros, caso não estejam vacinados contra a Covid-19. No Quebec vai ser aplicado um imposto de saúde extraordinário para não vacinados. Em Singapura, estas pessoas não vão poder voltar ao trabalho presencial, mesmo que comprovem que não têm Covid-19. Sem falar do tenista Novak Djokovic, que foi impedido que participar em dois torneios, na Austrália e em França, por não estar imunizado.
Estes são apenas alguns exemplos das muitas medidas adotadas nas últimas semanas para, nas palavras do Presidente francês, Emmanuel Macron, “irritar os não vacinados”, ou seja, “fazer pressão sobre os não vacinados, limitando, tanto quanto possível, o seu acesso a atividades da vida social”.
A estratégia de Macron para controlar a pandemia: “Irritar os não vacinados”
No difícil equilíbrio entre a proteção da saúde e as liberdades individuais há cada vez mais países a optar por apertar o ‘cerco’ aos que recusam ser imunizados. Mas será esta uma estratégia que funciona? Será ética e proporcional?
Depende de a quem é colocada a questão. “Se falar com médicos, vai ter uma leitura. Se falar com constitucionalistas, possivelmente terá outra leitura. Isto, logo à partida, significa que não há um olhar único sobre a questão”, diz Tiago Correia, especialista em Saúde Internacional do Instituto de Higiene e Medicina Tropical.
O tema tem estado em debate no mundo inteiro, nos planos científico, político, legal e ético, e já levou milhares de pessoas à rua em protesto.
Covid-19. Mais de 105.000 protestaram em França contra passe e vacinas
Especialistas ouvidos pelo Observador dizem que é preciso fazer uma distinção muito clara: a vacinação obrigatória para todos é uma questão; certificados e a multiplicidade de regras para o acesso a determinados espaços são outra.
Vacinação obrigatória: uma medida “mais honesta” e com “jurisprudência”
Que medidas estão a ser adotadas pelo mundo fora para, como diz Macron, “irritar” os não vacinados? Além das listadas acima, em países como Luxemburgo e Itália são precisos certificados para ir trabalhar, ainda que no caso italiano seja só para pessoas com mais de 50 anos. Na Áustria, que em menos de duas semanas se tornará o primeiro país europeu a ter vacinação obrigatória, e onde cerca de 51% da população se diz contra a obrigatoriedade de ser vacinada, chegou a haver um confinamento só para não vacinados.
A opção tem gerado protestos sucessivos — de não vacinados mas, também, de vacinados solidários com quem tem outra posição sobre o tema —, da mesma forma que a aplicação de medidas restritivas da liberdade dos cidadãos, num primeiro momento, e a introdução dos certificados Covid, mais tarde, também geraram reações adversas. E o mesmo se passa nos Países Baixos e na Alemanha. Há uma semana, os mais de mil protestos que organizados por todo o país levaram quase 200 mil pessoas às ruas para se manifestarem contra a vacinação obrigatória. Nuns e noutros países, o discurso é o mesmo: em defesa da liberdade individual e contra a imposição de uma medida sanitária.
Um pouco por todo o mundo, tem-se verificado uma apertar dos requisitos para aceder a determinados espaços. É, na terminologia europeia, uma passagem do 3G para o 2G. Enquanto que, até muito recentemente, a maioria dos países dava três opções (3G) para que as pessoas pudessem entrar em locais como restaurantes, bares, salas de espetáculo, hotéis, ginásios — vacina, teste negativo ou recuperação recente de Covid —, agora, vários deixaram de aceitar o teste negativo (2G).
É o caso de França, com o novo passe de vacinação, e de Itália, com o seu “super” certificado de saúde. Nestes dois países, a regra abrange também os transportes públicos (incluindo de longo curso, no caso francês), e foi tão controversa que obrigou a exceções em Veneza, onde os canais impedem que o carro seja uma alternativa de deslocação para os não vacinados. O governo italiano acabou por autorizar que crianças em idade escolar possam usar o ‘vaporetto’, bem como os que precisam de usar este transporte público marítimo por motivos de saúde.
Roland Pierik, professor de Filosofia Legal na Universidade de Amesterdão, diz-se totalmente contra o método 2G, porque coloca nas mãos dos cidadãos tarefas que deveriam caber ao Estado. “Representa uma exclusão de todas as pessoas não vacinadas da vida social. Isso gera muita animosidade. Estamos a obrigar os cidadãos — donos de bares, alguém que trabalha numa piscina, etc. — a excluir não vacinados. Não podemos pôr indivíduos a fazer o trabalho do governo”, diz, em entrevista ao Observador.
Quanto ao método 3G, o investigador mostra mais abertura, por considerar “menos intrusivo”. “Todos temos acesso aos espaços [que quisermos] se pudermos mostrar que não somos um risco para os outros, porque estamos vacinados ou fomos recentemente testados ou já tivemos a doença”, afirma.
Já Tiago Correia mostra reservas em relação à generalidade dos certificados que, diz, “criam categorias de cidadãos”. “É uma falsa noção de liberdade, de autodeterminação. Porque a pessoa deixa de poder fazer coisas quotidianas. Em tempos de paz, não há memória da utilização de certificados para organizar as preferências e as vontades individuais”, diz ao Observador.
Tanto Correia como Pierik concordam que a vacinação obrigatória, aplicada à população em geral, é preferível a este sistema de regras, cada vez mais restritivas.
“Já há jurisprudência a defender a vacinação obrigatória e isso existe em muitos países. É errado assumir que estamos a abrir uma caixa de pandora e de repente os Estados estão a tornar-se super repressivos, comparativamente ao passado. É um erro de interpretação. Falamos numa posição de um certo conforto, falamos de barriga cheia porque já não se morre de sarampo, já não se morre de rubéola, já não se morre de tétano, já não se morre de poliomielite. Mas essas vacinas em muitos países tiveram de ser obrigatórias para que isso passasse a acontecer”, afirma o investigador português.
Neste momento, não há ainda muitos países que tenham avançado para essa opção, pelo menos não de forma generalizada: a Indonésia já o fez (há multas de 300 euros em Jacarta para quem recusar), a Áustria começa a 1 de fevereiro, na Alemanha a questão vai ser votada no parlamento.
Mas há uma longa lista de vacinação obrigatória parcial. Profissionais de saúde, bombeiros, trabalhadores de lares têm de ser imunizados em países como França, Grécia, Itália, Reino Unido, Letónia e Polónia (a partir de março). Na Hungria, Nova Zelândia e Canadá, aplica-se a funcionários públicos e a professores de escolas públicas. E há ainda países como a Austrália, que apenas permitem a entrada de estrangeiros vacinados — o que explica o afastamento do tenista Novak Djokovic.
Apesar de considerar que o mundo caminha para um cenário de vacinação obrigatória generalizada, Correia ressalva que este é “um caminho que tem de se fazer com muitos degraus“, para evitar crispação social. “É preciso um amplo consenso. Não é uma medida fácil, indiferente, que se tome com leveza. Penso que esse caminho ainda não foi feito, mas a decisão está a ser pressionada pela necessidade de não voltar a confinar”, acrescenta.
O holandês Roland Pierik considera “mais honesto” avançar para uma vacinação obrigatória do que implementar constantes regras e restrições. “Se um governo acha que a vacinação é importante, deve dizê-lo. Digam: ‘É tão importante que se vacinem que vamos multá-los se não o fizerem’. É direto, honesto, e quem implementa é o governo. Se o objetivo é forçar as pessoas a vacinarem-se, não devem fazer o dono do bar implementar as políticas. Se querem mesmo que os não vacinados tomem a vacina, devem tornar a vacinação obrigatória“, comenta.
Mas impor uma medida destas não pode ser contraproducente? Não gera protestos em massa nas ruas, instabilidade social? O investigador da Universidade de Amesterdão desvaloriza: “Os não vacinados são uma minoria que se sente ameaçada e por isso sai à rua, mas são realmente uma minoria.”
Roland Pierik considera que caminhamos, na verdade, para um cenário oposto: o de uma agitação dos vacinados. “Acho que está a emergir uma contra-movimento da maioria. E isso pode justificar uma medida obrigatória. Os vacinados sentem que estão em suspenso por causa de uns poucos que não se vacinam. E acho que esse movimento, que começou por ser uma irritação silenciosa, vai tornar-se cada vez mais explícito”, diz.
É neste contexto que insere os comentários do Presidente francês, que, no entendimento do especialista em Filosofia Legal, tentou obter “benefícios políticos” com a provocação. “Foi muito direto, disse que queria chateá-los até se vacinarem. Acho que há outros [líderes e governos] que são menos explícitos, mas acho que é verdade que cada vez mais vacinados estão fartos desta situação, e sabem que a principal causa do problema é o número muito pequeno de não vacinados que estão a ocupar os cuidados intensivos“, explica.
Macron quer ser o novo líder da Europa. Mas, primeiro, é preciso não “irritar” os franceses
A primeira ‘pandemia globalizada’
Roland Pierik diz que é preciso relativizar o receio de instabilidade social e aprender com o passado. Quando os casos de sarampo começaram a subir em locais onde a adesão à vacina estava a baixar — França, Itália, Califórnia (EUA) — a vacinação obrigatória foi implementada. “As pessoas disseram que ia haver uma revolta contra a vacinação obrigatória, mas isso não aconteceu. Não houve revolta e a taxa de vacinação subiu consideravelmente. Haverá sempre uma minoria muito descontente com isso, uma minoria que faz muito barulho, mas uma minoria“, remata o holandês.
Tiago Correia rejeita que a reação negativa às vacinas contra a Covid-19 seja maior que a registada no passado, com outras doenças. O que mudou, diz o especialista, é o contexto em que vivemos, onde os media e a Internet amplificam e disseminam as discussões. “Tivemos a Guerra do Golfo em direto, foi a primeira guerra globalizada, e esta é a primeira pandemia globalizada. Significa que discutimos ciência, discutimos política, discutimos leis todos os dias. Não nos surpreende nada que o debate sobre as vacinas seja intenso, porque tudo o resto, todos os outros debates, foram intensos: utiliza ou não utiliza máscara, há ou não confinamento, as escolas devem ou não devem fechar, há pandemia ou não há pandemia?”, enumera. “Não compararia este debate sobre a vacinação contra a Covid-19 com outras campanhas de vacinação, porque não acho que seja comparável”, conclui.