Meredith Wadman é norte-americana, jornalista da revista Science (antes colaborou, por exemplo, com o The New York Times ou o Washington Post) e autora do livro The Vaccine Race: Science, Politics and the Human Costs of Defeating Disease. Antes do surgimento das primeiras vacinas, recorda-nos, milhares de pessoas (sobretudo crianças) morriam de poliomielite, sarampo e outras doenças infecciosas. Estas doenças não estão erradicadas (sobretudo em países mais pobres) e surgem cada vez mais surtos das mesmas nos Estados Unidos e na Europa — como o recente surto de sarampo em Portugal, que causou uma morte — por existirem pais que optam por não vacinar os filhos. Meredith garante que o mundo era “um lugar muito mais perigoso” antes do aparecimento das vacinas e que “é muito mais seguro para eles [pais] terem os filhos vacinados”. No livro, a autora recorda muitas das histórias (algumas controversas) que estiveram na origem de muitas das vacinas hoje conhecidas, desde a história do feto de “Mrs. X”, que fez uma farmacêutica lucrar milhões, aos testes em “voluntários” — que nunca foram informados de que o eram.
Como era o mundo antes do aparecimento das primeiras vacinas?
O mundo era um lugar muito mais perigoso antes do aparecimento das vacinas. Repare que nos Estados Unidos, em 1900, a esperança média de vida à nascença era de 47 anos. Em 2000, era de 77 anos. Grande parte do cenário sombrio de 1900 devia-se a doenças infeciosas que hoje podem ser prevenidas através da vacinação. Estas doenças matavam pessoas regularmente, em especial na infância. Repare, por exemplo, que em 1958, antes de haver uma vacina, o sarampo afetou 763.094 americanos e matou 552, a maioria crianças.
Quando é que foi desenvolvida a primeira vacina? E porquê?
É difícil dizer quando é que a primeira vacina foi desenvolvida. No século XV já os chineses usavam uma técnica para imunizar contra a varíola, recolhendo pus de um doente infetado com varíola e inoculando uma pessoa saudável com ele, numa tentativa de induzir uma infeção menor, mas imunizante. Na medicina ocidental, a primeira vacina é atribuída a Edward Jenner, um médico e cientista britânico que demonstrou que, ao inocular pessoas com varíola bovina, um vírus próximo ao da varíola, elas ficavam imunes à varíola.
No livro, relata várias histórias que hoje chocariam as pessoas — mas à época não chocaram. Quer recordar, por exemplo, a história de “Mrs. X”?
“Mrs. X” é uma mulher sueca, que era casada com um operário. Ele era um alcoólico imaturo e estava muitas vezes fora da cidade, em trabalho. Ela já tinha diversos filhos quando, em 1962, descobriu que estava grávida e sentiu que não podia enfrentar o nascimento de mais um filho. Na Suécia, o aborto era legal naquela altura, mas muitos médicos recusavam executá-los. “Mrs. X” estava grávida de quatro meses quando encontrou uma ginecologista simpática disposta a efetuar a interrupção da gravidez. Depois do aborto, o feto foi levado para um laboratório do Instituto Karolinska, em Estocolmo, e os seus pulmões foram dissecados e enviados, em gelo, para os Estados Unidos. Em Filadélfia, um jovem biólogo chamado Leonard Hayflick recebeu-os e usou-os para desenvolver as “WI-38” — um grupo de células auto-replicantes, que rapidamente se tornaram importantes “fábricas” microscópicas para efetuar vacinas virais. A mais importante foi a vacina contra o sarampo alemão, também conhecido como rubéola. Mas nada disto foi do conhecimento de “Mrs. X”, até vários meses depois. O seu feto tinha sido usado sem o seu conhecimento ou consentimento.
Pouco depois de o livro ser publicado, a Meredith descobriu “Mrs. X”, certo? Uma mulher que nunca recebeu uma recompensa pelo uso das células do seu feto — mas essas células geraram milhões de dólares em lucros para outros, e continuam a gerar ainda hoje.
Eu descobri quem é a “Mrs. X” e confirmei que ela nunca foi recompensada pelo uso do seu feto. Nem exigiu uma recompensa — ela quer esquecer esse capítulo da sua vida. Mas muitos cientistas e empresas lucraram com o uso das células do seu feto. O caso mais evidente é o da [farmacêutica] Merck, que usa as células do feto de “Mrs. X” todos os anos para fazer a vacina contra a rubéola (ou sarampo alemão) que é vendida nos Estados Unidos e em outros 40 países. Em 2016, a Merck fez 1,64 mil milhões de dólares com as suas vacinas infantis, incluindo a da rubéola. E a vacina contra a zona, que foi inicialmente desenvolvida em algumas células fetais, trouxe à companhia mais 685 milhões de dólares no ano passado. Claro que estas vacinas também protegem dezenas de milhões de pessoas de doenças.
Falou de Leonard Hayflick. Ele travou uma batalha legal contra o governo dos Estados Unidos por causa das células WI-38…
Leonard Hayflick era um cientista jovem, teimoso, brilhante e determinado, que em 1962 queria deixar a sua marca no mundo. E conseguiu-o, primeiro ao fazer uma importante descoberta científica — a de que as células crescem e morrem em pratos de laboratório, o que lançou todo um novo campo, o estudo do envelhecimento celular — e depois ao desenvolver as células WI-38, que rapidamente foram amplamente usadas na produção de vacinas, sobretudo na Europa. Hayflick deu as células a muitas empresas produtoras de vacinas na década de 60. Mais tarde, no início dos anos setenta, começou a vendê-las a empresas por milhares de dólares. Mas ele tinha desenvolvido as células ao abrigo de um contrato governamental, pelos Institutos Nacionais de Saúde. E as letras pequenas nesse contrato declaravam que o governo era proprietário das células. Hayflick recusou aceitar isto, e levou as células de Filadélfia para um novo emprego em Stanford, em 1968, conduzindo perto de 5 mil quilómetros por todo o país com as células armazenadas num frigorífico de azoto líquido, ao lado dos seus filhos no banco de trás do seu carro familiar. O governo viria depois atrás dele, exigindo as células. Seguiu-se uma investigação e um processo, que acabou por se resolver fora do tribunal, e Hayflick foi autorizado a ficar com seis frascos das células. Muitos outros ainda estão congelados e ainda são propriedade do governo dos Estados Unidos.
Os períodos antes, durante e após a guerra representam quase sempre uma significativa evolução na ciência. É a própria guerra que a isso obriga. Contudo, durante a II Guerra Mundial assistiu-se a excessos nos testes [de vacinas] realizados em humanos — alguns deles soldados na linha da frente; outros (muitos deles menores de idade) nem soldadores eram.
É verdade. Durante a II Guerra Mundial a mentalidade na medicina norte-americana era a de usar todos os meios com o intuito de salvar a civilização de Hitler. Os soldados norte-americanos na linha da frente eram propensos a todo o tipo de doenças, de modo que os cientistas nos Estados Unidos usaram “voluntários” de casas de correção para delinquentes juvenis, presos e outra população mais carenciada e impotente para testar vacinas contra a gripe, a diarreia bacteriana violenta e doenças similares.
Eram, portanto, utilizadas cobaias humanas [em inglês é usada a expressão “human guinea pigs”]. Isso ainda acontece hoje?
Esse é um termo popular para seres humanos usados em experiências e investigação, pelo menos nos velhos tempos em que o consentimento informado e apropriado das pessoas não era frequentemente procurado. Ou seja, as pessoas não eram informadas de que estavam a ser testados ou que tinham a opção de não participar nos testes. Nos Estados Unidos, crianças em orfanatos, pacientes com cancros terminais, pessoas internadas em instituições para deficientes mentais, até mesmo bebés prematuros em enfermarias de hospitais foram testados sem o seu conhecimento, muitas vezes em estudos que os colocavam em perigo de vida ou prejudicavam. Nos Estados Unidos, isso mudou desde 1966, quando o governo implementou regulamentos e, mais tarde, leis que exigem que as pessoas que participam na pesquisa sejam protegidas por regras estritas e diretrizes éticas. Por exemplo, os investigadores têm que obter aprovação para estudos em humanos de um comité de ética que não inclui os próprios investigadores. Portanto, não, as experiências em cobaias humanas não acontecem hoje nos Estados Unidos. Mas não posso falar da situação em outros países.
Um problema que se sente no mundo, especialmente nos países mais pobres, é que surtos como o do vírus zika ou o da febre amarela poderiam não causar tantas mortes se os governos investissem mais dinheiro na prevenção e cura. Concorda?
Infelizmente, o negócio das vacinas e medicamentos não é altamente lucrativo para as empresas quando se trata de vacinas e medicamentos contra doenças que afetam principalmente países mais pobres. O vírus zika é um bom exemplo, sim. Dito isto, os especialistas estão a tentar resolver este problema através do desenvolvimento de fundos independentes para a investigação de tais vacinas. Em janeiro, vários governos europeus, a fundação Bill e Melinda Gates e o Wellcome Trust, lançaram um fundo de 460 milhões de dólares para financiar pesquisas sobre três vacinas desse tipo, contra a Febre de Lassa, a Síndrome respiratória por coronavírus do Oriente Médio (MERS) e o vírus Nipah.
A verdade é que muitos pais optam hoje por não vacinar os filhos. É uma questão ideológica ou mera desinformação? E quais são os riscos da não vacinação das crianças?
Acho que alguns pais temem as vacinas por causa da desinformação que é propagandeada pelos oponentes das vacinas, que, eles próprios, interpretam mal as vacinas. Eu penso que a empatia, a educação, são extremamente importantes para informar os pais hesitantes de que é muito mais seguro para eles terem os filhos vacinados do que não terem. Considere, por exemplo, que, muito raramente, as pessoas desenvolvem uma reação alérgica grave a uma vacina contra o tétano. Este risco é no máximo de 0,0006%. No entanto, se uma criança ou adulto contrai tétano, o risco de morrer é de 13,2%.
Nos Estados Unidos, o Presidente Trump é próximo de Robert F. Kennedy Jr., um conhecido “conspiracionista” contra as vacinas. Qual é o perigo que isto representa?
Em janeiro, pouco antes de tomar posse, o presidente-eleito Trump convidou Robert F. Kennedy Jr., um acérrimo crítico das vacinas, para se encontrar com ele. Kennedy disse, após a reunião, que Trump o tinha convidado a presidir a uma comissão sobre a “segurança das vacinas”. No entanto, o presidente Trump não fez mais menção a essa comissão. Talvez porque 350 médicos e grupos de saúde pública escreveram ao Presidente logo após o encontro. Eles lembraram-no de três coisas: as vacinas são seguras; as vacinas são eficazes; as vacinas salvam vidas.