Antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, um dos homens mais próximos de António Costa, hoje um dos mais influentes deputados socialistas, António Mendonça Mendes não retira uma vírgula ao que disse Pedro Nuno Santos na rentrée do partido: se o Governo insistir no IRS Jovem e na redução transversal do IRC para as empresas, os socialistas não viabilizarão o documento.
Em entrevista ao Observador, no programa Vichyssoise, Mendonça Mendes explica que se Luís Montenegro insistir nestas duas medidas, terá então de “procurar o Chega e a IL para viabilizar o Orçamento do Estado” porque os socialistas estão fora. Ao mesmo tempo, o deputado socialista lança as bases da contraproposta do PS: uma redução seletiva do IRC e uma redução da IRS Jovem nos termos em que os governos de António Costa foi implementando.
Desafiado várias vezes a dizer se está ou não disposto a chumbar um Orçamento sabendo que o cenário de eleições antecipadas é real, Mendonça Mendes recusa que esse desfecho seja uma inevitabilidade e deixa a decisão nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa, de quem é, aliás, bastante crítico. Em todo o caso, se houver eleições, o PS está pronto, garante. “Nunca temos medo de ir a eleições. Mas não me parece é que fosse positivo para o país que existissem eleições, não me parece que fosse positivo”, salvaguarda.
Quanto ao futuro mais longínquo, António Mendonça Mendes admite duas coisas: que Mário Centeno seria “indiscutivelmente um bom candidato” à sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa e que pode estar disponível para entrar na próxima corrida eleitoral num dos concelhos do distrito de Lisboa. Qual? Mendonça Mendes mantém, para já, o tabu.
“Governo não tem mostrado vontade de negociar”
O PS já passou de “é praticamente impossível viabilizar o orçamento” para “não há linhas vermelhas” e agora, afinal coloca duas linhas vermelhas muito claras a questão do IRC e do IRS Jovem, o PS tem uma estratégia ou está só a navegar à vista?
Acho extraordinário duas coisas. Em primeiro lugar, que o país político pare a discutir o Orçamento do Estado como se não existisse mais vida para além do Orçamento. E, em segundo lugar, num instrumento que é uma proposta do Governo, todas as questões são dirigidas ao PS, que é o principal partido da oposição. Ou seja, eu tenho muita dificuldade em compreender que toda a pressão esteja a ser colocada no PS.
Vamos insistir. Ainda em julho Pedro Nuno Santos deu uma entrevista ao canal Now, onde dizia três coisas: que estava otimista, que tinha “a expectativa de poder vir a viabilizar o Orçamento do Estado” e que a questão do IRC não era uma condição para aprovar o documento. Agora, o PS já não está otimista e já coloca linhas vermelhas. É um sinal de desorientação?
Acho que aquilo que tem sido o percurso do Governo em matéria de condução do processo negocial faz com que hoje o PS esteja numa posição diferente daquela que estava há dois meses, no sentido em que o Governo não tem mostrado vontade de negociar. Não dá a informação que é necessária para que haja uma negociação séria e mesmo a forma como os membros do Governo, em particular o primeiro-ministro, e os dirigentes do PSD, em particular o líder parlamentar do PSD, se têm referido ao PS, não parece que estejam muito interessados em que haja um acordo. O secretário-geral do PS tem sido muito claro agora.
Agora? Mas e quando disse “praticamente impossível” e depois disse estar otimista?
Como toda a pressão tem sido feita sobre o PS, foi necessário fazer uma revisão para a opinião pública daquilo que era a posição do PS, que se tem mantido igual. Em primeiro lugar, a disponibilidade para poder contribuir para a viabilização do Orçamento de Estado tem pressupostos: o primeiro é que haja informação sobre a situação orçamental que seja dada. O segundo tem que ver com as propostas que o Governo já entregou na Assembleia da República. Se estas propostas relativamente ao IRC e relativamente ao IRS Jovem forem aprovadas — porque elas têm condições de serem aprovadas na Assembleia da República pelo Chega e pelo Iniciativa Liberal — o Governo terá de procurar o Chega e a IL para viabilizar o Orçamento do Estado.
Se o Governo insistir na questão do IRS Jovem e na questão do IRC, o PS chumba o Orçamento?
A bola estará do lado do Governo. É o Governo que tem de dizer em que medida é que está disponível para rever a sua estratégia relativamente ao IRC.
A pergunta aqui é ao contrário: se o Governo insistir no IRS Jovem e no IRC, o PS chumba o Orçamento?
Se o Governo insistir com as propostas da autorização legislativa e se as aprovar na Assembleia da República com o Chega e com a Iniciativa Liberal, terá de encontrar no Chega e na IL os parceiros para aprovar o Orçamento. Um Orçamento que tenha implícito ou explícito essas duas propostas tal como estão não poderá contar com o apoio do PS. A posição do PS é bastante clara sobre essas matérias: descidas de IRC seletivas; e defendemos o modelo de IRS Jovem que já hoje existe e que naturalmente pode ser aprofundado depois.
“Não podem pedir ao PS que viabilize medidas de que discorda”
O Governo tem-se queixado precisamente que não percebe muito bem o que o PS quer em concreto relativamente a esses dois pontos, ao IRC e ao IRS Jovem. No IRC, por exemplo, o PS não admite ir além daquilo que tem no programa, que é só a redução de tributações autónomas nas viaturas, ou concede conversar sobre mais benefícios fiscais como o que vigora agora sobre a capitalização das empresas?
Ao longo dos últimos anos, temos feito descidas seletivas de IRC. Baixámos os impostos às empresas que valorizam os salários, que retêm capital nas suas empresas, que reinvestem os lucros das suas empresas ao invés de os distribuir pelos acionista. A nossa estratégia relativamente ao IRC foi sempre uma estratégia de descida seletiva. Por isso, cabe agora ao Governo dizer em que medida é que quer alterar essa estratégia e porque é quer alterar essa estratégia agora.
Na questão do IRS Jovem. O PS admite correções intermédias em relação à proposta do Governo? No programa, o PSD admitia que aquilo que está em vigor ainda precisava de alguns ajustamentos como, por exemplo, a questão do nível de escolaridade. Há margem aí?
Estamos disponíveis para, na mesa negocial, discutir essas questões. Também deixamos claro: este modelo de IRS Jovem que o Governo propõe é um modelo que não beneficia os jovens. É um modelo que é negativo para o conjunto da sociedade.
Mas até onde é que o PS está disponível para ir então na alteração do modelo que o Governo propõe?
Neste momento, é o tempo do Governo poder responder.
Mas é legítimo esperar que o Governo abdique das suas das suas principais bandeiras?
Acho que é legítimo que o Governo queira cumprir o seu programa. Aquilo que não pode exigir é que quem não concorda com o programa de Governo tenha que viabilizar a concretização desse programa de Governo. Portanto, o primeiro-ministro, quando disse ao Presidente da República que tinha condições de formar governo, e o Presidente foi muito rápido a dizer que o primeiro-ministro tinha condições de fazer Governo… Era nessa altura que tinham de avaliar em que condições é que podiam concretizar o seu programa. O primeiro-ministro sabe que não é seguramente com o PS que vai cumprir a parte do programa relativamente à estratégia do IRC e à estratégia do IRS. Não podem pedir ao PS que viabilize medidas de que discorda profundamente. É totalmente legítimo que o Governo queira cumprir o seu programa, mas o tem de ter condições para cumprir o seu programa e essas condições foram aquelas que Luís Montenegro e o Presidente da República consideraram que tinham.
“Presidente é um fator muito imprevisível e muito perigoso”
Em 2021, perante um chumbo do Orçamento do Estado, Marcelo Rebelo de Sousa decidiu dissolver a Assembleia da República e convocar eleições antecipadas, não deveria fazer o mesmo agora?
Essa decisão foi errada e continuo a achar que o Presidente da República introduziu mais um fator de instabilidade na vida política portuguesa que foi considerar o Orçamento do Estado como uma moção de confiança ou uma moção de censura ao Governo. Isso é errado e, aliás, é surpreendente vindo de um professor de Direito Constitucional.
E agora era mais justo manter a coerência ou emendar a mão e não o fazer?
Terá de ser o Presidente da República a responder por aquilo que é a sua atuação. O Orçamento do Estado não é nem uma moção de confiança nem uma moção de censura ao governo e, portanto, o Presidente da República fala muito quando não deve e muito provavelmente enreda-se depois na teia que ele próprio cria.
Então compreenderia se não houvesse eleições antecipadas com o chumbo do Orçamento?
O Presidente da República teria que explicar a mudança de critério porque a única diferença que existe entre as duas situações é agora estar um governo de direita, que é da sua família política, e antes não. Este Presidente da República já não nos pode surpreender em nada. O Presidente da República deu posse a um governo do PS, com maioria absoluta e disse que a permanência daquele governo estava dependente da permanência do primeiro-ministro. Foi um erro que o PS cometeu: deveria ter denunciado desde o início, deveria ter sido bastante enfático a contrariar esta interpretação muito sui generis que o Presidente da República tem dos seus poderes constitucionais. Acho que o Presidente da República é um fator muito imprevisível e muito perigoso no nosso sistema atual. Portanto teremos que aguardar para ver o que é que o Presidente da República diz.
Em 2022, essas eleições antecipadas deram muito jeito ao PS, que teve uma maioria absoluta graças a elas.
O resultado final para o PS, do ponto de vista eleitoral, foi bom, não vamos esconder que foi bom.
Numa leitura mais cínica podemos dizer que o PS gostou das eleições antecipadas na altura e agora está preocupado com elas e não as quer.
Acho que toda a gente se recorda que ninguém estava à espera que o PS tivesse maioria absoluta, nem o PS, nem os dirigentes ao mais alto nível do PS e, portanto, não era esperado que o resultado fosse esse. É muito injusto a esta altura dizermos que o PS queria ter eleições antecipadas. Não queríamos ter eleições antecipadas. Nessa altura ainda estava no Ministério das Finanças, lembro-me do esforço hercúleo que fizemos até ao fim para salvar o Orçamento. Foi muito negativo para o país haver eleições nessa altura.
E é por isso que ainda se mantém alguma hesitação nos dias de hoje ou é porque o PS tem medo dessa clarificação política e de ir votos?
O PS não tem nenhum receio de ir a eleições. Seja em que altura for. Mas há uma segunda dimensão que é: o PS não defende hoje uma coisa diferente daquilo que defendia antes. Consideramos que as legislaturas devem ser estáveis e os governos devem cumprir os seus mandatos. O chumbo do Orçamento do Estado implicar a dissolução da Assembleia da República é uma interpretação muito original, para ser simpático, que o atual Presidente da República teve e que terá que ser o Presidente da República a explicar o critério que terá em cada uma das decisões.
Estariam mais descansados em chumbar o Orçamento com a garantia de Marcelo Rebelo Sousa que não provocaria eleições?
Não temos medo de ir a eleições e o secretário-geral do PS já se disponibilizou para, em caso de necessidade, aprovar um Orçamento Retificativo que garanta que os tetos de despesa aprovados no Orçamento são suficientes para que, em regime de duodécimos, se possa cumprir os compromissos que existem relativamente a várias classes.
Mas acreditam que num cenário de eleições antecipadas é possível vencer sabendo que historicamente quem provoca essa queda costuma ser penalizado nas urnas?
Esse não pode ser o cálculo que preside a decisão que o PS tem que tomar relativamente ao sentido de voto no Orçamento do Estado. Temos 50 anos de história, já tivemos derrotas eleitorais muito pesadas. Agora, o PS é hoje de longe o maior partido nacional, o PSD só ganhou as eleições porque foi em coligação. O PS é o maior partido português, quer do ponto de vista legislativo quer do ponto de vista autárquico. Nunca temos medo de ir a eleições. Mas não me parece é que fosse positivo para o país que existissem eleições, não me parece que fosse positivo. É o Presidente da República que se tem que justificar relativamente aos critérios que tem. Agora, estamos verdadeiramente concentrados em ajudar a resolver os problemas do país. Já nos disponibilizámos para ajudar na viabilização do Orçamento do Estado e portanto estamos à espera que o Governo se sente e possa negociar.
Mas acredita que ganhavam se houvesse eleições depois do Orçamento?
As sondagens não dizem muito diferente daquilo que foi o resultado das últimas eleições, o PS ganhou as últimas eleições realizadas em Portugal, que foram as eleições europeias. Mas não deve ser isso que deve presidir à decisão do PS relativamente ao Orçamento do Estado. Vejo todas as possibilidades do Orçamento do Estado ser viabilizado, acho que essa viabilização está mais nas mãos do Governo do que nas mãos do PS.
“Centeno é indiscutivelmente um bom candidato presidencial”
Mário Centeno é o melhor candidato que o PS pode ter para recuperar a Presidência da República em 2026?
Não sei se é o melhor, mas é indiscutivelmente, e se estivesse disponível, um bom candidato.
Já o queriam para primeiro-ministro. Afinal Marcelo Rebelo de Sousa fez um favor ao PS ao deixar Mário Centeno solto e não seguir o que António Costa lhe propôs quando se demitiu?
Sabe, também nessa matéria o Presidente da República tem muitas explicações a dar ao país.
O que quer dizer com isso?
Quero dizer que o Presidente da República ainda tem muito para falar sobre todo o momento em que decidiu a dissolução de um Parlamento que tinha maioria absoluta.
Mas está a sugerir que tem muito a dizer. O que que não foi dito que devia ter sido dito?
Tenho a certeza que qualquer pessoa que desempenha durante tantos anos um cargo como o Presidente da República, no final, [deve] prestar contas e responda a tudo, longe do calor do momento, e possa dar todas as explicações que tem que dar, porque ainda não as deu.
Mas pode dar essas explicações só quando sair do cargo?
Até já as podia ter dado na altura.
Está a sugerir de alguma forma que Marcelo Rebelo mudou de ideias durante o processo?
Não vou adiantar rigorosamente mais nada, vou dizer é que o Presidente da República também nessa matéria ainda tem muito para explicar.
Há umas semanas, Luís Marques Mendes colocou o seu nome na corrida autárquica, mais concretamente à Câmara Municipal de Cascais. Quer ser candidato?
Luís Marques Mendes todas as semanas está a promover a sua candidatura a Presidente da República, portanto não é um candidato isento. Haverá decisões sobre autárquicas nos próximos meses, tenho muito gosto pelas questões autárquicas na área metropolitana de Lisboa, não necessariamente no concelho que Luís Marques Mendes indicou.
Não afasta essa possibilidade?
Tenho muito gosto e acho que são muito desafiantes os temas que se colocam aos vários conselhos da área metropolitana de Lisboa, veremos as decisões que iremos tomar, mas não vou esconder que gostaria de assumir um desafio autárquico, mas estou disponível para aquilo que for mais importante para o PS.
“Montenegro durante quatro anos? Preferia comer bacalhau todos os dias”
Chegou a querer ser jornalista, que notícia preferia dar em primeira mão: “Chega aprova o primeiro Orçamento de Luís Montenegro” ou “Pedro Nuno Santos salva Luís Montenegro”?
Como o Pedro Nuno Santos já salvou várias vezes o Luís Montenegro nos últimos meses, acho que daria a primeira opção, que era mais original.
Quem é que está a precisar de mais tempo para ler um bom romance de Vargas de Llosa: Pedro Nuno Santos ou José Luís Carneiro?
Quem tem menos tempo, neste momento, é seguramente o Pedro Nuno Santos. Por isso, escolheria José Luís Carneiro. Sugeria-lhe “O paraíso na outra esquina”, que é um romance muito interessante.
Preferia ter de comer um prato de bacalhau, que ao que apurámos também é dos que menos gosta, todos os dias da sua vida, ou ter Luís Montenegro como primeiro-ministro pelos próximos quatro anos?
Comer bacalhau todos os dias da minha vida.
E quem levava a jantar, não bacalhau, a um dos seus restaurantes favoritos, o Mandarim, para recordar os vossos bons velhos tempos nas Finanças: Mário Centeno ou João Leão?
Os dois, os dois.