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O que é que a Alemanha tem que os outros não têm?

Em 8 de Maio de 1945, quando capitulou perante os Aliados, a Alemanha era um país devastado; poucos anos volvidos era a potência económica n.º 1 da Europa. O que aconteceu entretanto?

O Olympiapark, onde decorreram os Jogos Olímpicos de 1972, é uma das mais aprazíveis áreas de Munique. É hoje difícil adivinhar a história terrível que se oculta sob a relva que cobre a maior elevação do parque.

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Olympiaberg, uma colina no Parque Olímpico de Munique

O Olympiaberg é uma das muitas colinas artificiais criadas após a II Guerra Mundial com os escombros resultantes dos bombardeamentos aliados (os alemães chamam-lhes Schuttbergen ou Trümmerbergen). Quase todas as grandes cidades alemãs têm pelo menos uma – a Teufelsberg, com 115 metros, é o segundo ponto mais elevado de Berlim, a Grüner Heiner de Stuttgart é ponto de encontro dos entusiastas do aeromodelismo, a Fockeberg de Leipzig serve de palco a um Grande Prémio para carrinhos de rolamentos e outras carripanas sem motor – e foram laboriosamente erguidas no rescaldo da guerra pela população civil, sobretudo pelas mulheres, as chamadas Trümmerfrauen (“mulheres dos escombros”).

Zentralbild Berlin im Juli 1946. Berliner Frauen bei Aufräumungsarbeiten in der Jägerstrasse.

Limpeza de escombros, Berlim, Julho de 1946

Os bombardeamentos aliados destruíram um quarto dos 16 milhões de lares alemães (e danificaram outro quarto), com as perdas a atingirem máximos de 70% em Colónia, 66% em Dortmund, 64% em Duisburg, 53% em Hamburgo, 52% em Hannover e 50% em Berlim, produzindo um volume total de escombros estimado em 400 milhões de metros cúbicos e deixando sem casa 18 a 20 milhões de alemães.

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Colónia em 1945, com a catedral ao fundo

Em Dresden, que fora em tempos uma jóia da arquitectura barroca, conhecida como a “Florença do Elba”, os especialistas em planeamento urbano estimaram que a reconstrução levaria pelo menos 70 anos – e acabaram por não andar longe da verdade, já que a Frauenkirche, uma das mais belas igrejas da cidade, só viu o seu restauro concluído em 2005.

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Dresden, final de 1945

A guerra causou também a destruição de 40% das infra-estruturas e de boa parte das indústrias, que eram alvo privilegiado dos bombardeamentos. As perdas humanas elevaram-se a 4,5 milhões de soldados e 1,5 milhões de civis, a que é preciso somar os três milhões de soldados feitos prisioneiros pelos soviéticos, dos quais mais de um terço pereceria devido ao tratamento desumano (replicando o que os alemães tinham antes dispensado aos prisioneiros soviéticos) e cuja libertação só ocorreu, para a maioria, cinco anos após o fim da guerra (os menos afortunados só regressaram à Alemanha em 1957).

Um major britânico, citado em Savage Continent: Europe in the Aftermath of World War II, de Keith Lowe (editado em Portugal como Continente Selvagem, pela Bertrand), constatava que “nos milhares de quilómetros que percorremos na Alemanha, o facto mais espantoso de todos foi a ausência de homens com idades compreendidas entre os 17 e os 40 anos. Era uma terra de mulheres, crianças e velhos”. O regresso dos prisioneiros em mãos soviéticas não foi suficiente para atenuar a falta de homens: 15 anos depois do fim da guerra, ainda havia na Republica Federal Alemã 126 mulheres para cada 100 homens.

Na Alemanha de 1945 não só havia um milhão de órfãos de guerra como muitas famílias tinham ficado separadas devido às deslocações e convulsões dos últimos meses de guerra. No Verão de 1945 havia 53.000 crianças perdidas só em Berlim.

[Berlim em Julho de 1945, em impressionantes e raras imagens a cores]

A derrota da Alemanha na I Guerra Mundial deixara-lhe o território e a população civil quase intactas, mas a derrota na II Guerra foi bem diferente: a Alemanha conduzira a guerra com extraordinária brutalidade, sobretudo na Frente Leste, o que levou a que recebesse tratamento recíproco; por outro lado, Hitler convenceu os alemães a segui-lo numa resistência fanática e vã, continuando a lutar quando tudo estava irremediavelmente perdido e infligindo à população civil sofrimento e destruição numa escala inaudita (o estertor do Reich é magistralmente descrito e analisado em Até ao Fim: Destruição e Derrota da Alemanha de Hitler 1944-1945, de Ian Kershaw).

A obstinação na luta para lá de tudo o que era razoável e a escala da destruição só teve equivalente no Japão em 1944-45. Como a Alemanha, também o Japão conduzira a guerra com uma desumanidade decorrente de um sentimento de superioridade racial e também se obstinou numa resistência irracional que deixou o país arrasado. Ao contrário da Alemanha, o Japão não conheceu combates terrestres no âmago do território nacional, mas as 160.000 toneladas de bombas lançadas pela Força Aérea Americana terão causado 240.000 a 500.000 mortes entre a população civil e destruído 40% da área das 66 cidades que foram alvo de ataques, deixando 8,5 milhões de pessoas sem tecto.

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Shizuoka após um bombardeamento americano: a construção em madeira corrente no Japão de então favoreceu a criação de “tempestades de fogo” que arrasavam as cidades até aos alicerces

Só o raid sobre Tóquio na noite de 9 para 10 de Março de 1945 matou 80.000-100.000 pessoas, o que fez dele o mais mortífero de sempre – até ao ataque atómico contra Hiroshima.

Com as infra-estruturas e indústrias em ruínas, a economia estrangulada pelo bloqueio naval aliado e o fiasco da colheita de arroz de 1945, a fome teria devastado o país caso a guerra tivesse continuado.

À medida que a guerra se aproximava do fim, na Europa e no Extremo Oriente, os vencedores discutiam o que fazer às duas potências que tinham desencadeado a mais selvagem e mortífera guerra de todos os tempos. Para Henry Morgenthau Jr., Secretário de Estado do Tesouro das administrações Roosevelt, entre 1934 e 1945, o futuro da Alemanha não deveria ser muito diferente da bucólica imagem do Olympiaberg que abre este texto: a forma de impedir a Alemanha de voltar a desencadear uma guerra seria privá-la de qualquer indústria pesada, convertendo-a num “país de natureza essencialmente agrícola e pastoril”.

O Plano Morgenthau previa que as principais zonas mineiras fossem internacionalizadas ou anexadas aos países vizinhos e que toda a indústria pesada fosse destruída ou confiscada. Face à resistência fanática sustentada pelos nazis, Morgenthau advogava também uma ocupação em moldes severos: “É fundamental que cada alemão compreenda que a Alemanha é um país derrotado”.

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Henry Morgenthau Jr., em 1947

O plano encontrou resistência no interior da administração Truman (que assumira a presidência em Abril de 1945, por falecimento do muito debilitado Roosevelt), mas as políticas impostas em 1945-46 acabaram por seguir a ideia genérica de limitar a indústria alemã, nomeadamente através do desmantelamento de 700 fábricas e da redução da capacidade de produção de aço para 6 milhões de toneladas.

O ex-presidente Herbert Hoover foi dos mais críticos do plano Morgenthau – afirmava que o retorno ao estado “pastoril” só seria viável se se exterminassem 25 milhões de alemães – e acabou por fazer ver a Truman que impedir os alemães de reconstruir o seu país iria gerar o caldo de cultura favorável à eclosão de movimentos extremistas: “Podemos ter vingança ou podemos ter paz, mas não podemos ter ambas.”

A imposição de regimes comunistas aos países do Leste europeu por um Stalin cada vez mais belicoso e ameaçador acabou por levar os EUA e os restantes parceiros a perceber que uma Alemanha forte seria indispensável para fazer face aos desígnios da URSS.

A França, compreensivelmente agastada por ser invadida de tempos a tempos por godos belicosos, pugnara para obter reparações de guerra, para que a indústria alemã fosse desmantelada e para que as zonas mineiras do Ruhr, Saarland e Rhineland ficassem sob controlo francês, mas em 1948 acabou por render-se à evidência de que os EUA e a Grã-Bretanha não aceitariam as suas exigências e que, atendendo a que a sua própria recuperação não poderia dispensar o carvão alemão, a melhor solução seria integrar a Alemanha numa estrutura europeia, onde, como diz Tony Judt em Post-war: A History of Europe Since 1945 (editado em Portugal pelas Edições 70 como Pós-Guerra: História da Europa desde 1945), ela “não poderia fazer mal do ponto de vista militar, mas poderia ser benéfica do ponto de vista económico”. Foi deste entendimento que nasceu, em 1951, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a precursora da CEE.

O ex-presidente Herbert Hoover foi dos mais críticos do plano de desindustrialização da Alemanha, afirmando que o retorno ao estado “pastoril” só seria viável se se exterminassem 25 milhões de alemães: “Podemos ter vingança ou podemos ter paz, mas não podemos ter ambas.”

Entretanto, na Alemanha sob ocupação soviética, a pretexto das reparações de guerra (e se havia país com direito a reclamar reparações da Alemanha era a URSS), as fábricas continuavam a ser sistematicamente esvaziadas de toda a maquinaria – esta era enviada para a URSS onde foi reinstalada nas fábricas ou simplesmente deixada a enferrujar, por não ter utilidade ou por ninguém saber como operá-la. A URSS tinha ainda ficado com direito a 15% do equipamento industrial da Alemanha Ocidental, mas a partir de 1946 os americanos opuseram resistência e acabaram por suspender os envios de maquinaria.

Além das perdas humanas e materiais acima mencionadas, a Alemanha via-se a braços com oito milhões de refugiados internos, muitos dos quais tinham fugido ao avanço do Exército Vermelho, a que se somariam em breve mais 11-12 milhões, expulsos da Polónia (sete milhões), Checoslováquia (três milhões), Lituânia, Roménia, Hungria e Jugoslávia, em resultado dos reajustamentos de fronteiras e do afã de limpezas étnicas do pós-guerra.

Entretanto, a ração média diária, que fora declinando ao longo da guerra, descera para 1400 calorias por altura da rendição alemã (os valores recomendados são de 2000-2500 calorias), continuou a baixar, já sob a ocupação aliada, para cerca de 1000 calorias em Setembro de 1945, e manteve-se em níveis perigosamente baixos durante os anos seguintes, com um ponto crítico a ser atingido no Inverno de 1946-47. Não é de admirar que a mortalidade infantil na Alemanha tenha registado valores duas vezes superiores à média da Europa Ocidental até 1948.

ADN-ZB- Röhnert Streiks u. Unruhen i. Deutschland U.B.z.: Wegen der katastrophalen Ernährungslage legten am Montag, 31.3.1947, in Krefeld Tausende die Arbeit nieder und versammelten sich zu einer Protestkundgebung auf dem Karlsplatz. Zahlreiche Transparente brachten die Forderungen der Arbeiter zum Ausdruck.

Alemanha, Março de 1947: Manifestantes reclamam carvão e pão

Havia mesmo economistas que previam que, sem as férteis terras agrícolas da Prússia Oriental e da Silésia, que a Alemanha perdera em 1945 para a Polónia, o país teria um défice alimentar crónico.

Mas a ruína não era apenas material, era também moral: só em Berlim havia 240 assaltos por dia e eram presas 2000 pessoas por mês – um aumento de 800% em relação aos valores de antes da guerra. Como escrevia no seu diário uma berlinense citada por Lowe, “toda a noção de propriedade foi completamente arrasada. Todos roubam a todos, porque já todos foram roubados”. A pouca supervisão exercida pelos pais, mais preocupados em assegurar a subsistência em condições de penúria extrema, ou até a sua completa ausência, fizeram a criminalidade juvenil atingir valores nunca vistos, com bandos de miúdos entregues ao roubo e até ao homicídio, como num O Deus das Moscas entre escombros.

No lado aliado havia quem temesse que os alemães mais novos, que tinham sido submetidos à doutrinação nazi, fossem irrecuperáveis. Um major britânico, também citado por Lowe, descrevia assim a mais jovem geração alemã: “Não há nada de decente, gentil ou humilde nela. Tudo é bestial, libidinoso e cruel. Trata-se de uma geração de homens treinados na barbárie […] Todos os alemães nascidos depois de 1920 estão sob um feitiço satânico. Quanto mais jovens, mais violentamente impregnados estão com este veneno maléfico […] É uma geração perdida.”

O clima de devastação material, dissolução moral e desespero reinante na Alemanha do pós-guerra ficou indelevelmente retratado em Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero, 1948), que Roberto Rossellini rodou nas ruínas de Berlim.

Todavia, no 4.º trimestre de 1949 a República Federal Alemã já atingira o volume de produção da Alemanha de 1936, e um ano depois já excedera este valor em 1/3. Entre 1950 e 1960, a economia cresceu à taxa média anual de 8% e o poder de compra dos trabalhadores aumentou 73%. A Alemanha converteu-se numa potência exportadora, com os seus produtos a imporem-se não por serem baratos, mas pela qualidade, inovação tecnológica e fiabilidade.

As exportações cresceram ainda mais rapidamente do que o PIB e o seu volume sextuplicou só entre 1948 e 1951. A quota da Alemanha nas exportações mundiais passou de 2% no final da década de 40 para 10% no início da década de 70 – e isto apesar de o marco alemão ter conhecido sucessivas valorizações. O fenómeno ficou conhecido como Wirtschaftswunder – o “milagre económico”.

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Evolução do PIB per capita das principais potências entre 1900 e 1970 (preços ajustados a 1990)

O pós-guerra assistiu a bons desempenhos económicos em vários países da Europa Ocidental, graças, em parte, ao Plano Marshall, que a Europa de Leste (ou Stalin por ela) recusou. Em França fala-se de Les  trente  glorieuses para designar o período de crescimento vigoroso entre 1945 e 1975 e a Itália também teve o seu Miracolo  economico entre 1950 e 1963. A Suécia até conseguiu fazer melhor do que a Alemanha, crescendo à vertiginosa taxa média anual de 12,5% entre 1947 e 1974 – porém, a Suécia teve as tremendas vantagens de ter passado incólume (ou até com chorudos lucros) pela II Guerra Mundial e de não ter tomado partido na Guerra Fria.

O Plano Marshall não basta para explicar o surpreendente desempenho alemão, já que a ajuda recebida pela Alemanha Ocidental – 1.400 milhões de dólares – foi cerca de metade da recebida pela França – 2.800 milhões – e pela Grã-Bretanha – 3.165 milhões – e aproximadamente a mesma que foi recebido por Itália e pelo Benelux – 1.500 milhões. A ajuda do Plano Marshall também não explica a diferença de desempenho da Grécia e da Áustria no pós-guerra, já que ambas receberam cerca de 700 milhões de dólares.

Também o clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber, é de pouca ajuda a explicar a particularidade alemã, já que as regiões de forte predominância luterana – Brandenburg, Prússia e Saxónia – ficaram no que viria a ser a República Democrática Alemã, o que deixou a RFA num equilíbrio 50-50 entre católicos e protestantes.

Em The Wealth and Poverty of Nations (publicado em Portugal pela Gradiva como A Riqueza e a Pobreza das Nações), uma iluminadora panorâmica da economia mundial desde a Idade Média ao final do século XX, David S. Landes é evasivo quando chega a altura de explicar o milagre económico alemão: diz que foi realizado com “a energia e os hábitos de trabalho” do povo alemão.

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Fábrica da Volkswagen, anos 50

Umas linhas abaixo diz algo de semelhante do “milagre económico” japonês – “assentou em trabalho, educação e determinação” – e acrescenta uma explicação adicional: uma “ética de responsabilidade colectiva […] que produziu trabalho de equipa eficaz, partilha de ideias entre trabalhadores e gestores e uma atenção a detalhes que permitiu eliminar o erro”, uma atitude que também se aplica à Alemanha.

É verdade que nem tudo no milagre japonês passou pela ética e os métodos que empregaram para impedir a concorrência de produtos importados no seu país foram francamente desonestos – uma vez que não podiam impor barreiras alfandegárias, por receio de retaliações, sujeitaram a comercialização de produtos no Japão a especificações absurdamente minuciosas, concebidas para excluir tudo o que não fossem os produtos japoneses. Chegaram, como conta Landes, a tentar bloquear a importação de skis franceses alegando que não eram adequados à neve japonesa.

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Taxa de crescimento da produtividade, em %, na Alemanha (azul escuro), França (roxo), Itália (azul claro), Áustria (laranja), Japão (amarelo) e média da Europa Ocidental (vermelho). Os aumentos de produtividade da Alemanha na década de 50 seriam superados pelos do Japão na década de 60

Judt oferece em Post-War explicações menos vagas para o milagre económico alemão: uma foi a descentralização; outra foi a reforma das instituições de forma a que não voltassem a viver-se os anos caóticos da República de Weimar, cuja instabilidade política favorecera os movimentos extremistas. As novas disposições constitucionais, que limitavam os poderes do governo mas também não permitiam que ele pudesse ser facilmente derrubado, ajudaram a que o Partido Democrata-Cristão (CDU) se mantivesse no poder em ininterruptamente entre 1949, quando tiveram lugar as primeiras eleições da RFA, e 1966.

Konrad Adenauer, chanceler entre 1949 e 1963, e Ludwig Erhard, ministro da Economia entre 1949 e 1963 (e chanceler entre 1963 e 1966), apostaram na “economia social de mercado”, que acreditava no comércio livre e na iniciativa privada, mas não se abstinha de intervir na economia. Nos anos 50, o Estado “detinha ou controlava 40% da produção de carvão e aço, 1/3 da geração de electricidade, 3/4 da produção de alumínio e a maioria dos bancos”. E, uma vez que, em 1950, 17 milhões de habitantes da RFA ainda não tinham casa ou viviam em condições muito precárias, foi o Estado que lançou vastos programas de habitação social.

Igualmente crucial foi a minimização dos conflitos laborais, graças a uma lei de 1951 que “obrigou as grandes empresas dos sectores do aço, carvão e ferro a incluir representantes dos trabalhadores nos conselhos de supervisão, prática depois alargada a outros sectores”.

Uma das principais vantagens de que a Alemanha desfrutava era a abundância de mão-de-obra barata e qualificada: as muitas vidas perdidas na guerra foram compensadas pelos milhões de Vertriebene, os alemães expulsos dos territórios perdidos a Leste e das operações de limpeza étnica noutros territórios com secular presença alemã, e pelos alemães que fugiram da zona de ocupação soviética. Dos 12-13 milhões de Vertriebene, nove milhões instalaram-se no que viria a ser a RFA e dos que ficaram na zona soviética, mais 1,5 milhões acabariam por deslocar-se para ocidente – isto antes de as autoridades da RDA terem posto fim à sangria de população.

À mão-de-obra germânica juntaram-se, a partir de final dos anos 50, os emigrantes (Gastarbeiter) vindos dos países da bacia mediterrânica, destinados sobretudo a trabalhos pouco qualificados.

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Gastarbeiter turcos desembarcam em Hamburgo

Como escreve Judt, nas duas décadas do pós-guerra não foi preciso envidar esforços para desviar o interesse dos alemães da política em favor da produção e do consumo, já que os alemães se entregaram de alma e coração à produção e ao consumo. E fizeram-no com o mesmo espírito cumpridor e escrupuloso com que tinham obedecido às mais bestiais ordens de Hitler.

Os engenheiros que tinham aperfeiçoado os fornos crematórios de forma a reduzir o tempo de cada fornada de cadáveres punham os seus conhecimentos ao serviço da concepção de aspiradores fiáveis. Os funcionários que tinham organizado meticulosamente o transporte ferroviário de milhões de judeus vindos de toda a Europa para os campos de extermínio ocupavam-se agora com igual zelo da maximização da eficiência das linhas de montagem da Volkswagen.

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A Volkswagen festeja a saída da fábrica do centésimo milésimo exemplar da carrinha Typ 2, em 1954

O poeta e ensaísta Hans Magnus Enzensberger observava, a propósito da energia, zelo e determinação com que os alemães se entregaram ao trabalho e ao consumo, que esta resultava da conversão dos seus defeitos – como a obediência cega – em virtudes: os alemães “tinham literalmente perdido o juízo e essa era a condição para o seu sucesso futuro”.

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Clientes aguardam a abertura de uma nova loja, 1951

Enquanto a Alemanha Ocidental vivia neste frenesim de produção e consumo, o que se passava a Leste? Os alemães da RDA tinham uma ética de trabalho, uma disciplina e um nível de formação comparável aos da RFA, ainda que a sua força de trabalho tivesse sido drenada pela fuga de muitos elementos mais qualificados e com mais iniciativa para ocidente. Mas essas qualidades de pouco serviam no contexto de um regime repressivo e de uma economia centralizada e planificada.

O que Anne Applebaum escreve em Iron Curtain: The Crushing of Eastern Europe (publicado em Portugal pela Civilização como A Cortina de Ferro: O Fim da Europa de Leste) a propósito das fábricas polacas pode ser extrapolado para as da RDA e de toda a Europa de Leste: não tinham incentivos para produzir artigos de qualidade “porque como havia falta de tudo, qualquer coisa que uma fábrica produzisse encontrava sempre comprador”.

Como os preços eram fixados pelo Estado, não valia a pena produzir artigos diferenciados, visando clientes mais exigentes, e, dado que gestores e operários eram empregados do Estado, com salários pagos pelo Estado, ninguém via “necessidade de se entregar a esforços especiais”. Bem podia Walter Ulbricht, um dos mais influentes políticos da RDA, convocar as massas para a batalha da produção com frases grandiloquentes como “o novo ser humano socialista deverá pensar como Lenin, agir como Stalin e trabalhar como Stakhanov”.

Judt dedica um capítulo de Post-war à comparação entre os paradoxais destinos das economias da Alemanha e da Grã-Bretanha no pós-guerra: em 1958 a economia do grande derrotado da II Guerra Mundial já ultrapassara a do único país europeu que averbara uma incontestável vitória nesse conflito. Harold Macmillan, um dos mais proeminentes políticos britânicos do pós-guerra e que foi primeiro-ministro entre 1958 e 1963, tinha razão para desabafar: “Claro que se tivéssemos conseguido perder duas guerras mundiais, ver perdoadas as nossas dívidas […] e não ter que manter forças no Ultramar, poderíamos estar tão ricos como os alemães.”

Em 1958 a economia do grande derrotado da II Guerra Mundial (a Alemanha) já ultrapassara a do único país europeu que averbara uma incontestável vitória nesse conflito (a Grã-Bretanha).

Parte do sarcasmo de Macmillan era justificado, já que a Grã-Bretanha, a fim de financiar seis anos de conflito, contraíra, sobretudo junto dos EUA, uma dívida colossal, que em 1945 atingia 200% do PIB, valor que só fora antes atingido no final das Guerras Napoleónicas. Seria um fardo incómodo para as finanças britânicas do pós-guerra e a última prestação só seria liquidada em 2006.

Por outro lado, a Alemanha, que fora a causadora e a derrotada da guerra, ficara num estado de destruição tal que ninguém insistiu muito no pagamento de dívidas ou de reparações de guerra significativas (ver Uma factura detalhada para Angela Merkel). Tendo os Aliados imposto restrições à dimensão e nível de equipamento das novas forças armadas alemãs, a despesa militar da RFA era relativamente baixa – em 1955 representava cerca de 4% do PIB, enquanto a Grã-Bretanha, com tropas espalhadas por um império a minguar mas ainda vasto, gastava 8,2% do PIB.

Mas parte da culpa era dos próprios britânicos: as suas indústrias continuaram presas a processos obsoletos, os conflitos laborais sucediam-se e a gestão era incompetente. A ineficiência era tal que, como fazia notar John Maynard Keynes, não conseguia sequer tirar partido de o custo de mão ser obra inferior ao dos EUA numa proporção de 2 para 5. A melhor coisa que poderia acontecer à economia britânica, sugeria Keynes, era que a Força Aérea Americana “destruísse todas as fábricas da costa nordeste e do Lancashire, a uma hora em que as fábricas estivessem vazias mas os conselhos de administração lá estivessem reunidos”.

Começar do zero é sempre um processo penoso, mas, num mundo em mudança acelerada, pode dar vantagens sobre competidores que permanecem enredados em velhas estruturas e hábitos. Embora não seja um processo recomendável para renovar uma economia, a devastação que se abateu sobre a Alemanha e o Japão acabou por trazer benefícios no médio e longo prazo.

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A Alemanha e a prosperidade do pós-guerra

Hoje há quem veja na Alemanha reunificada uma super-potência com ambições hegemónicas, que em vez de subjugar a Europa com Panzers e Stukas a invade com Audis e Lidls e impõe unilateralmente regras de conduta rígidas e brutais aos seus parceiros meridionais da União Europeia – há mesmo quem se refira à Alemanha de hoje como o IV Reich.

Curiosamente, em Post-war, Tony Judt atribui o milagre económico da Alemanha do pós-guerra à política económica do III Reich: “os investimentos dos nazis – em comunicações, fabrico de armamento e veículos, equipamentos ópticos, indústria química e metalomecânica ligeira – foram realizados para sustentar uma economia de guerra, mas pagaram dividendos 20 anos depois”.

Segundo Keynes, a melhor coisa que poderia acontecer à economia britânica era que a Força Aérea Americana “destruísse todas as fábricas da costa nordeste e do Lancashire, a uma hora em que as fábricas estivessem vazias mas os conselhos de administração lá estivessem reunidos”.

Na verdade, muitos dos planeadores e gestores que ocuparam os cargos de decisão em empresas e no Estado no pós-guerra tinham começado as suas carreiras às ordens de Albert Speer, o ministro do Armamento e Produção de Guerra de Hitler. A ascensão da Alemanha no pós-guerra fez-se também à custa de uma amnésia selectiva, que atribuiu as culpas da guerra a uma minúscula minoria de fanáticos nazis e ilibou o resto da população.

O conceito de Stunde null (Hora zero), que corresponde à meia-noite de 8 de Maio de 1945, quando entrou em vigor a rendição da Alemanha, pode sugerir que não só o povo alemão tinha ali a oportunidade para um recomeço, mas também que tudo o que ficara para trás deveria ser esquecido e que o contador deveria ser posto a zero.

Uma coisa é não deixar que azedumes passados inquinem o presente e outra bem diversa é apagar completamente o passado – o equilíbrio entre as duas atitudes é muito delicado e basta uma situação de crise para que seja perturbado e para que velhas recriminações entrem em colisão com amnésias convenientes.

É o caso de um evento que contribuiu para a recuperação da Alemanha no pós-guerra, que esteve esquecido durante mais de meio século e que a presente crise da dívida soberana grega veio ressuscitar. Em 1953, o London Debt Agreement perdoou parcialmente à Alemanha uma dívida de 32 mil milhões de marcos, metade dos quais correspondiam a indemnizações respeitantes à I Guerra Mundial (cujo pagamento Hitler suspendera assim que tomara o poder em 1933) e outra metade dizendo respeito a empréstimos para a reconstrução no pós-guerra, contraídos sobretudo junto dos EUA. Não era uma dívida insustentável para uma economia em velocidade de cruzeiro – representava 25% do PIB alemão – mas era um fardo pesado para um país em reconstrução.

Invocando este antecedente, a Grécia, que era um dos credores envolvidos no acordo de 1953, tem vindo a reclamar que a sua dívida à troika seja também cancelada, mas convirá lembrar que o perdão concedido aos alemães em 1953 não foi a abolição pura e simples da dívida, mas o seu corte em cerca de 50% (para 15 mil milhões de marcos) e a dilatação dos prazos de pagamento, que foram reescalonados ao longo de 30 anos (embora a última fatia tenha acabado por ser paga apenas em 2010). Acontece que, com o haircut de 50% concedido em 2011 e as renegociações de juros e prazos, a Grécia já obteve um perdão parcial análogo ao da Alemanha.

Seja como for, “o milagre económico alemão” não é uma fábula tão exemplar como a Alemanha gostaria de fazer crer e Rainer Werner Fassbinder dá a entendê-lo no filme O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1979), que lança um olhar pouco amável sobre as contradições e zonas de sombra daqueles anos.

Se Alemanha Ano Zero é o símbolo cinematográfico da Alemanha no fundo do abismo, O Casamento de Maria Braun é a visão amarga e desassombrada do reerguer do país: numa Alemanha destroçada e ocupada, Maria (um magnífico papel de Hanna Schygulla), uma jovem viúva de guerra, é empregada num bar frequentado por soldados americanos que trocam cigarros e meias de nylon por companhia e sexo, e engravida de um deles, Bill.

A luta pela sobrevivência vai tornando Maria, que começara o filme como um ser vulnerável, cada vez mais cínica, pragmática e oportunista. Inesperadamente, o marido de Maria, Hermann, que fora dado como morto em combate e afinal tinha estado prisioneiro dos soviéticos, regressa e surpreende a mulher com Bill. Os dois homens envolvem-se numa luta e Maria acaba por causar a morte de Bill. É levada a tribunal, mas Hermann intervém e assume a culpa pelo homicídio. Maria é libertada, trata de desfazer-se do filho de Bill que crescia dentro de si e conhece Oswald, um próspero empresário de meia-idade que a convida a trabalhar para si. Começa como secretária e rapidamente passa a amante e, com o dinheiro de Oswald, instala-se numa casa com todas as “conveniências” modernas. É nessa casa confortável e abastada que se desenrolam as cenas finais, que parecem prometer uma vida feliz para Maria e Hermann, que, entretanto, cumprira a sua pena por homicídio.

O desfecho, que sofrerá uma reviravolta trágica, tem por fundo o relato radiofónico do “milagre de Berna”, ou seja, a inesperada vitória da selecção alemã de futebol sobre a Hungria (que vinha de uma série de 32 vitórias consecutivas) na final do Campeonato do Mundo de 1954. O jogo termina com o locutor, em êxtase, a gritar “Deutschland ist wieder was!” – “A Alemanha volta a ser algo!” (ou “A Alemanha está de volta!”). É um filme que vale por muitas páginas de análise económica e política.

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