Mesmo antes de chegar à presidência, a relação de Joe Biden com a Coreia do Norte não era amistosa. Durante a campanha eleitoral, por exemplo, o atual Presidente dos Estados Unidos criticou Donald Trump por dialogar com Kim Jong-un, o líder norte-coreano que apelidou de “ditador”, “tirano” e “bandido”. O regime retorquiu e insultou Biden, chamando-lhe um “cão raivoso que merecia ser espancado até à morte”.
O tom destas acusações mostra como a tensão entre Washington e Pyongyang dificilmente diminuirá com o novo inquilino da Casa Branca, apesar de ambos os lados estarem na expectativa quanto aos passos seguintes de uma relação que, nas últimas décadas, tem sido pautada por ameaças constantes e uma retórica que mais do que uma vez pôs o mundo em suspenso perante o receio de um conflito nuclear. Considerado como um dos países mais fechados do mundo, de onde se sabe pouco mais do que aquilo que o regime autoriza ou do que os dissidentes revelam, a Coreia do Norte reagiu com silêncio à chegada de Biden à Casa Branca. E isso causou desconforto na nova administração, que há várias semanas tenta, em vão, estabeler contactos diplomáticos com o regime norte-coreano, ao mesmo tempo que insiste, publicamente, na necessidade de desnuclearização do regime.
Coreia do Norte alertou que não mudará de posição em relação aos EUA e à sua “política hostil”
“O silêncio não é muito surpreendente. Os norte-coreanos ainda estão à espera de um sinal positivo de que algo tenha mudado na política dos Estados Unidos e, até ao momento, ainda não o receberam”, afirma ao Observador Ankit Panda, analista do think tank Carnegie Endowment for International Peace. Isso mesmo fez questão de realçar a vice-ministra dos Negócios Estrangeiros da Coreia do Norte, Choe Son-hui, ao afirmar que Pyongyang não pretende acatar os pedidos de diálogo enquanto Washington não acabar com a “política hostil” e com os “truques baratos”.
No mesmo sentido, enquanto o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, visitava o Japão e a Coreia do Sul esta semana, Kim Yo-Jong, a irmã e conselheira de Kim Jong-un, enviava um recado para Washington. Mandava dizer que se a nova administração “quer dormir em paz nos próximos quatros anos”, então o melhor é “evitar o mau cheiro no primeiro passo que dá”.
Pyongyang quer concessões e testes balísticos podem estar iminentes
A atitude provocadora, muitas vezes com recurso a linguagem bélica, tem sido uma constante por parte do regime de Pyongyang. Já no congresso do Partido dos Trabalhadores, realizado em janeiro, Kim Jong-un disse que o principal objetivo da sua política externa é “subjugar” os Estados Unidos, o seu “maior inimigo”. E avisava que não faz distinções entre Biden ou Trump, porque “não importa quem está no poder, a política em relação à Coreia do Norte nunca vai mudar”.
Nesse mesmo congresso, o primeiro em cinco anos, o líder norte-coreano também deixou claro que o programa militar é para continuar a crescer. Para que não houvesse dúvidas, recentemente o regime revelou novas armas, entre elas um míssil intercontinental capaz de atingir os Estados Unidos, e um míssil balístico que pode ser lançado a partir de um submarino.
Well. There we go. #NorthKorea pic.twitter.com/64peErWiuu
— Ankit Panda (@nktpnd) January 14, 2021
Perante a revelação do novo armamento, que faz o mundo temer a possibilidade de uma nova escalada de tensão, os analistas acreditam que o regime possa estar a equacionar novos testes balísticos, uma forma de não só avançar com o seu programa militar, como também de pressionar a Coreia do Sul e os Estados Unidos. “Se a Coreia do Norte achar que não vai receber concessões significativas em breve por parte dos Estados Unidos e da Coreia do Sul, pode decidir realizar um teste balístico”, afirma ao Observador James Fretwell, analista do NK Pro, uma organização especializada na Coreia do Norte, alertando que esses novos testes balísticos podem “aumentar a tensão” na península coreana.
Além disso, as movimentações no início deste março no complexo nuclear de Yongbyon, cujas imagens de satélite alegadamente mostram uma retoma da atividade após dois anos de paragem, aumentaram a inquietação da comunidade internacional, que admite que o regime esteja a produzir plutónio para fabricar armas nucleares. A simples possibilidade de Pyongyang fazer novos testes balísticos — o mais recente foi em março de 2020, tendo o último lançamento de um míssil intercontinental sido realizado em 2017 — funciona como forma de pressão para o regime conseguir concessões por parte de Seul e Washington. Kim Jong-un acredita que as armas nucleares são o seu garante de segurança e que funciona como dissuasor perante um Ocidente que vê como hostil.
“Talvez [Kim] ainda tenha esperança de convencer os Estados Unidos a mudar a natureza da sua política em relação à Coreia do Norte, de forma a evitar um conflito com um adversário com armas nucleares, capaz de causar destruição em qualquer parte da América do Norte”, sublinha ao Observador Joshua Pollack, especialista no programa nuclear norte-coreano do Middlebury Institute of International Studies.
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No entanto, o regime norte-coreano está ciente de que novos testes balísticos, e particularmente os testes com mísseis intercontinentais com capacidade para carregar ogivas nucleares, podem levar a um ainda maior isolamento, inclusive por parte de países menos hostis, como a China (o seu principal aliado) ou a Rússia, que já no passado aprovaram sanções contra Pyongyang. As sanções internacionais têm sufocado a frágil economia do país e levaram Kim Jong-un, no já referido congresso no início deste ano, a admitir que a estratégia económica dos últimos cinco anos fracassou. Isto apesar, claro, de o líder norte-coreano se congratular com a “vitória milagrosa” do desenvolvimento do armamento do regime e culpar as sanções e a Covid-19 pelas dificuldades financeiras.
Um país com zero casos de Covid-19?
Paradoxalmente, enquanto novos mísseis eram revelados, a economia do país caía a pique e a pandemia de Covid-19 aumentou substancialmente as dificuldades do regime, que logo em janeiro de 2020, fechou todas as suas fronteiras com a China e a Rússia. As ordens são para não deixar ninguém entrar ou sair, e desde então vigora um rigoroso confinamento que isolou (ainda mais) os norte-coreanos do resto do mundo.
Contudo, é graças a esse confinamento que, segundo as autoridades, a Coreia do Norte regista, oficialmente, zero casos de Covid-19. Um marco cuja veracidade levanta muitas dúvidas, mas que é utilizado para marcar pontos no exterior. “A alegação de que tem zero casos de Covid-19 é importante para propaganda, uma vez que a Coreia do Norte pode reivindicar superioridade sobre os seus rivais, como os Estados Unidos e a Coreia do Sul”, reitera o analista James Fretwell.
Além disso, o regime tenta a todo o custo evitar surtos no país, uma vez que tal poderia devastar o já frágil sistema de saúde norte-coreano, daí a imposição de um confinamento draconiano, paranoico até, onde, na fronteira, as ordens são para disparar a matar contra quem tentar entrar ou sair do país ilegalmente.
O melhor exemplo da paranoia norte-coreana deu-se em julho do ano passado, quando foi decretado o estado de emergência sanitária em Kaesong, na fronteira com a Coreia do Sul, depois de ter sido detido um homem suspeito de estar infectado com SARS-CoV-2. Escreveu-se então, na imprensa internacional, que o coronavírus tinha entrado pela primeira vez na Coreia do Norte, uma tese que nunca viria a ser confirmada pelo regime.
O caso, no entanto, deu pano para mangas. Tratava-se nada mais nada menos do que um duplo desertor, identificado apenas como Kim, um homem de 24 anos que tinha fugido do Norte para o Sul em 2017, mas que, três anos depois, em plena pandemia, atravessou o esgoto e o arame farpado da fronteira para regressar ao seu país de origem, alegadamente por estar envolvido num caso de abuso sexual na Coreia do Sul. Sendo um caso suspeito, levou ao isolamento da cidade durante semanas e serviu como arma para acusar Seul de tentar levar a Covid-19 para Pyongyang.
Com as duras medidas de confinamento, vieram também as consequências, e a mais visível é a quebra nas trocas comerciais com a China, país do qual a Coreia do Norte é bastante dependente — em 2020, os negócios entre os dois países caíram 81%. A Covid-19 veio, por isso, aprofundar a crise económica, dois problemas que ocupam a cabeça de Kim Jong-un por estes dias. “Os norte-coreanos estão fortemente focados em questões internas neste momento”, sublinha o analista Ankit Panda, referindo-se à Covid-19 e à crise económica, dois problemas que também podem ser uma das explicações para o silêncio norte-coreano em relação à administração Biden e para as hesitações quanto à realização de novos testes balísticos.
Contudo, alerta o analista, “se o regime decidir começar o teste de armamento, vai fazê-lo, porque precisa de seguir em frente com o seu programa e isso poderia enviar um sinal aos Estados Unidos”.
Nova política dos EUA: mistura entre pressão e diplomacia
Em Pyongyang, paira também um sentimento de desânimo depois do fracasso das negociações diretas entre Kim Jong-un e Donald Trump. O ex-Presidente norte-americano, recorde-se, reuniu-se três vezes com o líder norte-coreano, mas as tentativas para impedir o regime de desenvolver o seu programa nuclear revelaram-se um fracasso e as negociações ficaram num impasse. Antes de chegar à Casa Branca, Joe Biden deixou bem claro que a ideia de dialogar de igual para igual com Kim Jong-un não resulta, e a Casa Branca prometeu uma nova estratégia para a Coreia do Norte que rompa com as políticas da administração Trump.
Em visita ao Japão e à Coreia do Sul, na semana em que terminaram os exercícios militares anuais conjuntos entre Seul e Washington (este ano em modo virtual, com recurso a simulações em computador), o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, reafirmou o compromisso com os seus aliados na região. Disse que o objetivo é a “desnuclearização da Coreia do Norte”— e não da “península da coreia”, uma ambição com que Pyongyang e Seul já concordaram várias vezes.
Para conseguir esse objetivo, perseguido há décadas pelas diversas administrações norte-americanas, Blinken garantiu que Joe Biden está a ultimar a revisão da política para a Coreia do Norte, prometendo que o plano será divulgado nas próximas semanas. “Vai envolver uma mistura entre pressão através de sanções e iniciativas diplomáticas”, prevê James Fretwell, do NK Pro, referindo-se ao plano norte-americano para a Coreia do Norte, enquanto Ankit Panda, do Carnegie Endowment for International Peace, antevê “uma mudança evolutiva e não revolucionária” em relação à política seguida nos últimos anos por Washington.
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A divulgação do novo plano é esperada também com grande expetativa na Coreia do Sul, que quer dar continuidade aos esforços diplomáticos dos últimos anos — que a Coreia do Norte tem ameaça romper — e fazer avançar o processo de paz, um feito importante para o Presidente Moon Jae-in, cujo mandato termina no próximo ano.
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Já a Coreia do Norte, afirma Joshua Pollack, “parece estar à espera para ver a abordagem de Biden antes de tomar qualquer grande decisão em relação aos Estados Unidos”. Mas, conclui o analista, “as expetativas [em Pyongyang] são muito baixas”.
Por isso, até que haja fumo branco por parte da administração Biden, o mais provável é que o telefone continue a tocar em Pyongyang, mas que do outro lado não esteja ninguém com disposição para atender a chamada de Washington.