As eleições presidenciais iranianas, que se realizam esta sexta-feira, marcam não só o final de oito anos de governo do moderado Hassan Rohani, mas também o início de um novo capítulo na história do Irão: é praticamente certo o regresso da ala conservadora à presidência, um indício de que a esperança de uma maior abertura do país pode cair por terra. Enquanto os iranianos votam, o resto do mundo vai estar atento ao resultado que sair das urnas, numa altura em que continuam as negociações para um novo acordo nuclear com Teerão.
Se é verdade que o centro do poder no Irão gira à volta do líder supremo, Ali Khamenei, e do seu Conselho de Guardiões, que asseguram que a lei islâmica é seguida à risca, algum poder continua a residir no Presidente e no seu executivo. Nesse sentido, nas eleições iranianas, é habitual vermos duas fações a se defrontarem — os conservadores e os reformistas ou moderados. Desta vez não será diferente, embora haja uma predominância clara da linha conservadora e um candidato, apoiado por Ali Khamenei, tenha praticamente a eleição assegurada: Ebrahim Raisi.
Raisi, de 60 anos, não é um estreante em presidenciais, e nas últimas, que se realizaram em 2017, foi derrotado por Hassan Rohani, da ala reformista, que cumpriu oito anos no poder. Os dois mandatos do atual Presidente ficaram marcados pela assinatura, em 2015, do Plano Abrangente de Acção Conjunta (JCPOA, na sigla em inglês), vulgarmente conhecido como acordo nuclear iraniano, com os Estados Unidos, China, Rússia, França e Reino Unido (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU) e a Alemanha. Esse acordo, além das vantagens económicas e do alívio da tensão geopolítica, trouxe enorme expetativa para os iranianos, sobretudo para uma nova geração, nascida depois da Revolução Islâmica de 1979, que esperava uma maior abertura ao mundo.
Mas, em 2018, Donald Trump decidiu retirar unilateralmente os Estados Unidos do JCPOA, impondo novas sanções que estrangularam a economia iraniana, isolando ainda mais o país. Com Joe Biden na Casa Branca, há esperança no Irão num regresso ao acordo, e as negociações continuam, sendo que todos os candidatos à Presidência do Irão manifestaram vontade em prossegui-las.
Contudo, o ambiente no Irão é de desalento, onde a desilusão com as promessas feitas pelos reformistas se mistura com a falta de esperança no futuro. Além disso, dos quase 600 candidatos à presidência do país, apenas sete foram aprovados pelos 12 membros do Conselho de Guardiões, ficando de fora nomes fortes como Ali Larijani, antigo porta-voz do parlamento, ou o ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad. O objetivo parecia claro: favorecer o candidato escolhido por Khamenei.
“Em qualquer eleição, há duas questões principais: quem concorre e quem vai votar. Neste caso, a lista de candidatos foi fortemente distorcida para favorecer os candidatos conservadores, enquanto os eleitores parecem decididamente desligados de uma disputa que parece quase pré-determinada”, afirmou ao Observador Naysan Rafati, analista do International Crisis Group, especializado no estudo da política iraniana.
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Desalento deverá levar a abstenção recorde
De acordo com a Reuters, as últimas projeções apontam para que a participação eleitoral não seja acima dos 40%, o que faria com que fosse atingido um recorde em termos de abstenção desde a fundação da República Islâmica, em 1979.
Perante a insatisfação com a situação económica e política no país, nas redes sociais tem havido apelos a um boicote às eleições. A abstenção, no entanto, tenderá a beneficiar Ebrahim Raisi, uma vez que, historicamente, as vitórias dos candidatos reformistas coincidem com elevadas participações eleitorais, como aconteceu em 1997, quando Mohammad Khatami, o primeiro Presidente reformista do Irão, foi eleito com 69% e uma abstenção de apenas 20%.
“Os iranianos não veem um governo que seja aceite pela maioria e que seja capaz de trazer mudanças positivas, daí uma expetável abstenção elevada, ao contrário do que aconteceu em 1997”, sublinha ao Observador Adlan Margoev, analista especializado em assuntos iranianos e nucleares do Moscow State Institute of International Relations, na Rússia. “Agora, há mais frustração e nenhum dos campos [reformistas e conservadores] consegue um apoio generalizado da população”, acrescenta.
Dos sete candidatos aprovados pelo Conselho de Guardiões, cinco são conservadores e dois reformistas. Destes sete, na quarta-feira desistiram três: dois conservadores, que manifestaram o apoio ao favorito Ebrahim Raisi, e um reformista, que declarou apoio a Abdolnaser Hemmati, um tecnocrata considera moderado que trabalhou no Banco Central iraniano e que é apontado como o principal adversário de Raisi, embora não tenha mais de 10% das intenções de voto. Na corrida, estão ainda Mohsen Rezaei e Amir Hashemi.
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Numa tentativa de angariar mais apoios, Abdolnaser Hemmati anunciou que pretende manter o atual ministro dos Negócios Estrangeiros Mohammad Javad Zarif, o rosto nas negociações do acordo nuclear, no seu eventual governo. No entanto, tal poderá não ser suficiente para mobilizar o eleitorado de forma a mudar o desfecho das eleições, cujo cenário mais provável é uma vitória com maioria de Ebrahim Raisi, evitando assim uma segunda volta, que, a acontecer, realizar-se-á a 25 de junho.
Com o caminho aberto para se tornar Presidente, concretiza-se a ascensão em curso de Raisi, o atual responsável pela pasta da Justiça e vice-presidente da Assembleia dos Peritos (órgão que elege o líder supremo), que já é apontado como um possível substituto de Ali Khamenei, que tem 82 anos.
Apesar de relativamente desconhecido no Ocidente, Raisi é já uma das pessoas mais influentes no Irão. Tem vindo a ascender na área da justiça, e tornou-se conhecido pelo seu papel numa série de julgamentos políticos e execuções em 1988, após a guerra de oito anos entre o Irão, liderado pelo ayatollah Ruhollah Khomeini, e o Iraque, de Saddam Hussein. Na altura, Raisi era juiz num tribunal de Teerão, e terá dado a ordem para a execução de milhares de pessoas (no Irão, existe pena de morte).
“Raisi é um pilar de um sistema que prende, tortura e mata pessoas que ousem criticar as políticas do Estado”, denunciou Hadi Ghaemi, diretor executivo do Centro de Direitos Humanos do Irão, uma organização não-governamental, citado pela New Yorker. “Em vez de estar a concorrer para Presidente, [Raisi] deveria estar a ser julgado”, acrescentou.
Pelo papel que teve na execução de prisioneiros políticos no final da década de 1980, mas também pelo seu envolvimento na repressão de manifestantes iranianos nos grandes protestos no país em 2009, Raisi foi alvo de sanções por parte dos Estados Unidos em 2019.
Ebrahim Raisi é considerado uma das figuras em quem o líder supremo mais confia e tem uma interpretação muito rígida da lei islâmica nas várias esferas do Estado assim como na atuação do governo. Nesse sentido, faz parte da linha dura do regime e, pela preponderância que tem vindo a assumir nos últimos anos, tem sido apontado como um possível sucessor de Ali Khamenei, que chegou a líder supremo precisamente depois de sair da presidência.
Outra tese que tem sido veiculada é que o líder supremo iraniano pode estar a equacionar mudanças no regime, tentando aproveitar a influência crescente da ala conservadora, que pode agora chegar ao governo depois de, no ano passado, ter conseguido uma maioria nas eleições parlamentares. Essas mudanças, escreve o analista Ali Vaez na revista Foreign Affairs, podem passar por uma transformação do sistema presidencial num sistema parlamentar, ou até pela substituição da figura de líder supremo por um conselho composto por vários membros, o que diminuiria a tensão entre o governo e os ayatollahs.
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Além das transformações em curso na República Islâmica, o resultado das presidenciais desta sexta-feira terá também impacto a nível internacional, desde logo na continuação das negociações em curso para o retomar do acordo nuclear iraniano.
Em Viena, as delegações dos signatários do JCPOA em 2015 prosseguem, embora Estados Unidos e Irão não estejam a falar diretamente, mas sim através de intermediários. O governo de Hassan Rohani, tal como o Presidente norte-americano Joe Biden, deixou claro que pretende um regresso ao acordo, mas as partes não conseguiram chegar a um entendimento antes das eleições presidenciais iranianas, o que levantou algumas preocupações, sobretudo no Ocidente, sobre as maiores dificuldades que poderiam surgir com um governo mais conservador em Teerão. Contudo, todos os candidatos parecem comprometidos em chegar a um acordo que permita o levantamento das sanções contra o país.
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“Apesar das lutas internas entre reformistas e conservadores, todos compreendem que, nesta fase, sem o regresso ao JCPOA — a única forma de as sanções contra a economia iraniana serem levantadas, — o Irão não pode seguir em frente”, reitera o analista Adlan Margoev, acrescentando que o centro de poder nesta questão está em Khamenei, que não tomou posição até ao momento para não dar força à ala moderada. “Não espero uma grande mudança do Irão na questão nuclear, independentemente de quem seja eleito, porque as principais questões de política externa são centradas principalmente no líder supremo”, remata.
Acresce que o próximo Presidente só tomará posse em agosto, pelo que não é de descartar a possibilidade de o governo de Rohani e Zariff conseguir fechar o essencial do acordo nuclear antes dessa data, cabendo, depois, ao futuro governo a implementação das várias etapas do mesmo.
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“Se as negociações em Viena resultarem num acordo até agosto, acho que é bastante provável que um governo de Raisi o cumpra. E, se não for possível, a importância de garantir o alívio das sanções enquanto forma de enfrentar os problemas económicos do Irão é um incentivo suficientemente significativo para Teerão querer levar estas negociações até que sejam alcançadas conclusões”, antevê o analista Naysan Rafati.
No entanto, é também expetável que o um governo conservador seja mais intransigente na implementação do acordo e mais exigente quanto à retirada de sanções, parecendo claro que Ebrahim Raisi não poderá constar na lista.
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Mas, se a posição do Irão em relação ao acordo nuclear parece não estar em causa, o historial do mais que provável próximo Presidente iraniano no que diz respeito à prisão e execução de prisioneiros políticos pode ser uma questão a preocupar o Ocidente, tornando mais complicada e imprevisível uma relação que tem sido bastante conturbada.
“Um governo conservador, especialmente um liderado por um indivíduo associado a abuso de direitos humanos, deverá aumentar as preocupações [do Ocidente] quanto à repressão interna, mesmo que a política externa e a grande estratégia tenham mais continuidade do que mudança”, sublinha Naysan Rafati, do International Crisis Group. Os iranianos, pouco esperançosos quanto ao futuro, e o resto do mundo, expetante, vão estar atentos ao que acontece nas urnas na sexta-feira.