A inflação continua a acelerar mas, paradoxalmente, os investidores mundiais parecem cada vez mais convencidos de que os bancos centrais mais poderosos, como o BCE e a Reserva Federal dos EUA, têm razão quando dizem que estas pressões inflacionistas não serão mais do que um fenómeno “transitório”. Uma das maiores gestoras de ativos do mundo, a Allianz Global Investors, avisa, porém, que “está a subestimar-se o risco de a inflação surpreender em alta” e se tal risco se materializar “os bancos centrais podem ter de subir os juros mais cedo do que estão a dizer“.
O economista-chefe da Allianz Global Investors, Stefan Hofrichter, esteve esta terça-feira em Lisboa e, num encontro com jornalistas seguido de curta entrevista ao Observador, notou que uma sondagem feita pelo Bank of America em outubro indicou que 58% dos investidores achavam que a inflação era transitória e 38% achavam que tinha uma natureza mais permanente.
Ora, nas últimas semanas, os números que foram divulgados nos principais blocos económicos indicam que a inflação continua a acelerar e a arrastar-se no tempo. Por isso é surpreendente, para o economista-chefe da AllianzGI, que a mesma sondagem em novembro (cujos resultados saíram já esta semana) indicou que 61% pensam que a inflação é transitória e 35% pensam que é permanente.
Ou seja, ao contrário do que se podia esperar, a diferença não se estreitou e o discurso dos bancos centrais parece estar a penetrar cada vez mais na mente dos investidores. É aqui que a Allianz GI assume ter uma “visão contrária“, ou seja, que não está alinhada com a visão maioritária entre os investidores, que “correm o risco de estar enganados” na visão relativamente benigna em relação ao perigo associado à inflação.
“Achamos que há um risco subestimado de a inflação surpreender em alta” e isso poderá levar os bancos centrais a “subirem as taxas de juro mais rapidamente do que estão a indicar ao mercado”. Neste ponto, o especialista diz que (quase) tudo vai depender daquilo que faz a Reserva Federal dos EUA – se o banco central norte-americano subir os juros mais rapidamente isso irá acentuar a pressão sobre os outros, incluindo o Banco Central Europeu.
"Os bancos centrais têm alimentado um monstro de dívida"
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Em entrevista ao Observador, Stefan Hofrichter não esconde uma visão muito crítica da atuação dos bancos centrais, que “se sentem obrigados a ajudar os governos, não só na crise de Covid-19 mas, também, na crise anterior”. “As fronteiras entre os governos e os bancos centrais estão, claramente, mais esbatidas“, afirma.
O economista, um alemão, diz que “essa é uma situação que agudizou na última crise, a chamada crise das dívidas soberanas, em que a política orçamental não foi suficientemente acomodatícia e os bancos centrais tiveram, relutantemente, de ser mais interventivos”.
“O que me preocupa é que os bancos centrais têm alimentado um monstro de dívida, disponibilizando tanta liquidez, que agora sabem que se desligarem a máquina isso vai complicar – e muito – a vida das empresas e das famílias. Isso não é apenas um receio abstrato: em 2015 a Reserva Federal adiou por duas vezes a subida das taxas de juro por receio de desestabilizar os mercados financeiros e, com isso, desestabilizar a economia”, recorda.
Hofrichter não tem dúvidas de que “é por isso que eles estão a adiar a normalização da política monetária”. Mas alerta que “há um preço que tem de se pagar por isto, por manter as taxas de juro demasiado baixas por demasiado tempo – isso apenas adia o ajustamento que as economias e as empresas têm de fazer”.
Stefan Hofrichter critica, também, que os defensores da política monetária expansionista “nunca reconheçam que o facto de se ter inundado o mundo com liquidez possa estar a ter pelo menos algum papel no aumento da inflação – só falam da pandemia, das dificuldades nas cadeias de abastecimento… mas nunca admitem uma responsabilidade das próprias políticas”.
Do ponto de vista do economista, “a política monetária tem sido assimétrica nos últimos 30 anos, desde Alan Greenspan, criar um ambiente em que temos maiores riscos de acidentes financeiros, estamos a alimentar bolhas e é porque a política monetária tem sido assimétrica – expansionista em tempos de crise mas não suficientemente apertada em alturas mais normais”.
Num discurso em Lisboa, no início do mês, Christine Lagarde afirmou que é “muito improvável” que se reúnam as condições para um aumento das taxas de juro na zona euro em 2022. A presidente do BCE justificou que “um aperto indevido das condições de financiamento não é desejável, numa altura em que o poder de compra já está a ser limitado pelos preços mais elevados na energia e nos combustíveis, e representaria uma dificuldades inapropriada para a retoma”.
Inflação mundial em máximos (mesmo excluindo os preços da energia)
Stefan Hofrichter sublinha que “as taxas de inflação estão a subir em flecha e mesmo a inflação subjacente [a inflação core, que exclui preços da energia] também está em máximos de várias décadas”.
É certo, diz, que há fatores que suportam uma opinião de que a inflação é apenas transitória. Quando se normalizar a retoma económica pós-Covid, a subida dos preços também poderá atenuar-se. Por outro lado, as perturbações nas cadeias de abastecimento podem resolver-se, com o tempo (embora, como lembra o economista, “já andemos a ouvir isso há mais de um ano…”).
Além disto, uma eventual normalização dos preços da energia também poderá contribuir para que a inflação abrande – e o mesmo pode acontecer à medida que se corrigem os fenómenos de escassez de mão-de-obra que se verificam em grande parte do mundo. Porém, há vários outros fatores que levam a Allianz GI a considerar que esta inflação pode ser bem mais “permanente” do que se acredita.
- Um primeiro fator está ligado ao forte aumento da liquidez financeira que os bancos centrais injetaram (e continuam a injetar). “Os bancos centrais inundaram o mundo com liquidez, mesmo antes da pandemia de Covid-19, e as taxas de crescimento do crédito também estão a acelerar”, assinala Stefan Hofrichter. “Os bancos centrais aliaram-se aos governos para lutar contra este vírus como se fosse uma guerra e isso não é apenas semântica: os bancos centrais patrocinaram as dívidas dos Estados, como historicamente foi feito em tempos de guerra”, afirma.
- Há, também, uma “nova teoria económica” na política monetária – que Stefan Hofrichter considera ser apenas “velho nonsense económico” – e que “foi introduzida pela porta das traseiras”. Do que se trata? “Os bancos centrais já admitiram que estão disponíveis para deixar que a inflação supere os objetivos durante algum tempo ou, então, que a inflação cumpra os objetivos em média ao longo de um dado período – claro que ninguém sabe exatamente que média é essa e como se calcula”, assinala o economista-chefe da AllianzGI.
- Por outro lado, defende o economista, “esta política monetária ultra-expansionista tem estimulado os preços de ativos como os preços do imobiliário, que atingiram níveis enormes em várias partes do mundo”. Sobretudo nos EUA, o cálculo da inflação atribui um peso grande aos preços da habitação e, nessa perspetiva, a AllianzGI acredita que a tendência desse impacto continua a ser positivo. Na zona euro, porém, esse efeito não é tão bem capturado pelos indicadores usados para a inflação – se o fosse a inflação core poderia saltar, só por essa via, meio ponto percentual, como já foi reconhecido pelo BCE.
- Há, também, uma grande alteração demográfica em curso, afirma Stefan Hofrichter. O especialista assinala que houve um efeito geracional ligado à abertura dos antigos regimes comunistas e da China, que há mais de 40 anos mudou o seu modelo económico, abrindo-se ao mundo. “Foram muitos milhões de pessoas que foram, subitamente, libertadas para trabalhar para todo o mundo”, afirma, notando que “isso foi um fator excecional, que deprimiu os salários, mas que já não está tão presente”. Poderia gerar-se um novo fenómeno desse tipo com África, “mas não estamos a antecipar que isso aconteça nos próximos tempos”.
- Ao contrário do que por vezes se lê, aponta Stefan Hofrichter, os dados sustentam a visão de que o mundo está realmente a assistir a uma inversão da globalização. Entre as chamadas “guerras comerciais” e a necessidade que os países sentiram de “cuidar melhor” das suas economias internas, a AllianzGI salienta “a globalização, a partir dos anos 80, teve um impacto desinflacionista, então uma inversão dessa tendência terá, em teoria, um efeito de aumento de salários e de inflação”.
- Um outro fator, que também tem implicações para os salários (e, por consequência, para a inflação), é um “novo ambiente económico e político, com uma maior importância da luta contra a desigualdade, salários mínimos mais elevados, empresas que aplicam voluntariamente salários mínimos mais altos… Estes são efeitos que têm estimulado a subida dos salários a nível mundial, ao longo da última década”.
- A este fator junta-se, ainda, as políticas associadas à luta contra as alterações climáticas, que a AllianzGI diz que “vão custar dinheiro e vão fazer acelerar os preços”, à medida que é preciso substituir infraestruturas e alterar consumos de matérias-primas e processos produtivos. “Isso também tenderá a animar a inflação” no médio prazo, afirma.
Por outro lado, aos olhos de Stefan Hofrichter, são “surpreendentes” as referências que têm sido feitas ao perigo de “estagflação“. Isso é conceito que “descreve o que aconteceu no final dos anos 70 e início dos anos 80 em que havia inflação de dois dígitos, mais de 20%, em países desenvolvidos, e crescimentos muito baixos ou mesmo negativos – isso não é um cenário em cima da mesa”.
A AllianzGI admite que a inflação pode superar as expetativas mas não a esse ponto, diz Stefan Hofrichter. Por outro lado, os crescimento económico continua a ser robusto, apesar de o “ímpeto positivo cíclico estar a desvanecer” não só nos EUA mas, também, na Europa.
Parte da explicação para essa perda de ímpeto está ligada ao efeito-base, isto é, não é fácil repetir taxas de crescimento anual mais elevadas em 2022 quando este ano de 2021 se comparava, por sua vez, com o ano de 2020, um ano muito penalizado pelo início da pandemia. Por outro lado, a recuperação foi relativamente rápida embora a pandemia ainda não tenha terminado e continue a afetar não só a oferta de produtos e serviços como, também, a procura.
A AllianzGI destaca, ainda, que “há perturbações no comércio internacional e na produção de alguns artigos, como semicondutores, outro fator negativo. Por outro lado, “os Estados continuam a injetar dinheiro na economia, mas a um ritmo menor – pelo que isso também é um fator que contribui para a moderação do crescimento”, afirma Stefan Hofrichter, acrescentando que “os preços da energia estão a subir e quando as pessoas gastam mais na fatura de eletricidade e na bomba de gasolina isso reduz o rendimento disponível para gastar noutros locais”.
Neste contexto, a AllianzGI não recomenda um aumento da exposição às obrigações soberanas – embora admita que há espaço para a valorização (relativa) das obrigações dos países da periferia europeia. E recomenda que os investidores deem preferência às ações, sobretudo as europeias, que estão com avaliações menos “esticadas” do que as norte-americanas. Historicamente, os mercados acionistas tendem a ter bons resultados em alturas de alguma inflação – porém, o perigo de uma inflação mais elevada justifica, diz a AllianzGI, uma postura um pouco mais “neutral” nesses investimentos de maior risco.