“Desgaste”, “embates sistemáticos” e “perdas”. Bloco de Esquerda e PCP têm consciência de que atravessam um momento delicado, com o último ciclo eleitoral a trazer rombos significativos em várias frentes, das eleições legislativas às autárquicas. Estas europeias vieram confirmar a tendência, o que levou, de resto, ambos os partidos a festejarem como uma significativa vitória a eleição de um eurodeputado cada um, mesmo que os dois tenham perdido representação no Parlamento Europeu. O percurso descendente é reconhecido por todos, enquanto dentro do Bloco de Esquerda e do PCP se apontam razões que explicam os tombos eleitorais — e se tenta arranjar soluções que travem a queda.
Apesar de os bloquistas terem festejado a eleição de Catarina Martins e de os comunistas terem assegurado que a eleição de João Oliveira tem “enorme significado político”, os números são claros: em relação às europeias de 2019, o Bloco de Esquerda perdeu quase metade dos votos (passou de 325.516 para 168.036) e o PCP, coligado com o PEV, conseguiu convencer menos 65 mil eleitores (de 228.140 para 162.731). Mas, como fontes de ambos os partidos recordam, o mundo mudou muito desde essas europeias, tal como o quadro político português.
Há, desde logo, razões comuns que se apontam em ambos os partidos — tanto no BE como no PCP culpa-se a maioria absoluta do PS, e a associação que ficou entre os partidos mais à esquerda e os socialistas, pela “guinada à direita” no país. Mas também se reconhecem problemas de fundo, que não tocam apenas a esquerda portuguesa, na forma como estes partidos se reposicionam no quadro atual e conseguem (ou não) atrair o voto de protesto, enquanto assistem a um crescimento imparável de um “algoritmo” que favorece a extrema-direita a crescer sem parar. O que traz, é claro, um problema com o voto jovem. No PCP há queixas mais específicas, que incluem um “cerco aos comunistas” e uma “deturpação” das posições do partido — da pandemia à Ucrânia — e que também acabarão por trazer dificuldades com o eleitorado mais novo.
O trauma da maioria e os danos colaterais à esquerda
O primeiro motivo para a queda, e para a naturalidade com que o resultado das europeias foi visto por uma esquerda que já esperava deparar-se com mais uma eleição difícil, é apontado em uníssono por Bloco de Esquerda e PCP, mas tem a ver com a governação do PS. Isto porque ambos os partidos estão convencidos de que, se o país “guinou” à direita de forma tão visível nas últimas eleições, isso se deve em grande parte à governação do PS em maioria absoluta, de que o BE e o PCP estarão a sofrer uma espécie de danos colaterais.
Essa governação “criou uma frustração que colateralmente atingiu os partidos da esquerda [à esquerda do PS]”, nota-se no Bloco de Esquerda, onde se recorda que o partido teve bons resultados eleitorais enquanto fez parte da geringonça. E, se esperava erguer-se de novo depois do castigo dos eleitores pelo chumbo do Orçamento do Estado de 2022, acabou por deparar-se com o quadro da maioria absoluta, em que a resposta à inflação e a perda de poder de compra determinou, na visão destes partidos, uma insatisfação que levou à vontade dos eleitores de virarem a página da governação à esquerda — deixando de olhar também para BE e PCP como alternativas viáveis.
“As consequências negativas acabaram por atingir os partidos da esquerda”, lamenta-se neste lado do espectro político. “Há um caminho de degradação dos resultados à esquerda, com uma grande guinada à direita no país”, assume uma fonte comunista, que usa o mesmo argumento: “Há uma desilusão, especialmente com a maioria absoluta do PS, que impacta toda a esquerda”.
O Livre será a exceção — cresceu em número de votos e, apesar de nas europeias não ter chegado ao patamar mínimo para eleger representação em Bruxelas, ainda em março conseguiu eleger quatro deputados — mas mais à esquerda olha-se, como é habitual, com desconfiança para um partido que poderá atrair um eleitorado mais fluido. Para a esquerda à sua esquerda, isso é sinal de que o Livre “não se compromete” — ou seja, que por não ser tão identificado com uma esquerda com uma carga ideológica mais marcada não é tão prejudicado como os outros partidos pela mudança de ciclo e pela viragem à direita. Em março, acabou por ser o único partido de esquerda a conseguir crescer.
Algoritmos promovem extremismos de direita. “Sabem pôr uns óculos escuros e dançar no Tik Tok”
Ainda assim, e além destas explicações comuns no plano nacional, BE e PCP insistem: o fenómeno da “degradação” do voto na esquerda não é um exclusivo português, nem pode ser analisado de forma isolada.
No Bloco de Esquerda, reconhece-se uma “dificuldade” dos partidos de esquerda em “expressarem” o descontentamento e as frustrações a nível económico e social que a população vai sentindo, enquanto esta encontra outros pontos de abrigo para protestar. Além do “ciclo histórico”, há fatores “estruturais” que a esquerda tem de perceber para construir plataformas e discursos, comenta-se no Bloco — a começar por entender a forma como as “estruturas sociais” estão a mudar, assim como os terrenos de intervenção que costumavam ser seus por excelência, como os sindicatos e as organizações ligadas aos trabalhadores. “Não é um fenómeno estritamente português”, avisa-se no Bloco.
Por toda a esquerda há um fator que gera preocupação, e que parece continuar a não ter solução. Se as formas de mobilização a que este lado do espectro costuma recorrer parecem estar em declínio, nas redes sociais os populismos de direita crescem exponencialmente. E chegam aos eleitores mais novos, muitos dos quais cresceram com uma governação de esquerda. “Os algoritmos promovem esse tipo de discurso”, apontam responsáveis de ambos os partidos, lembrando estudos e notícias que já apontavam para essa tendência em várias plataformas e redes sociais.
Essa preponderância da comunicação nas redes sociais num tempo de confinamento e pós-pandemia, sugere-se na esquerda, pode ter levado à aceleração do processo e à “radicalização” de parte do eleitorado, sobretudo jovem, que deixou de encontrar conforto e margem de protesto na esquerda. Tanto PCP como BE tentam “intervir no debate público nos meios em que ele hoje decorre” — hoje é possível ver Joana Mortágua a cozinhar uma omelete enquanto explica a posição do Bloco sobre a NATO ou memes de gatos a pedirem aos eleitores que votem nos bloquistas — mas sabem que André Ventura, por exemplo, vai muito à frente no que diz respeito ao uso das redes sociais como forma de chegar sobretudo aos mais novos.
O terreno das redes sociais não pode ser deixado para a formação de uma “consciência ultrarreacionária e machista”, que tem de ser contrariada por esforços de “pedagogia”, insiste-se no Bloco. No PCP, fala-se numa utilização das redes sociais usada para promover “políticos que são simultaneamente estrelas da internet”, como Ventura, que “sabe que pôr uns óculos escuros e dançar no Tik Tok dá votos e humaniza”. Ou seja, quem não resiste a tentar criar laços com os eleitores dessa forma, passando mensagens simples e tornando-se uma espécie de influencer da política, tem à sua disposição um meio eficaz para convencer o eleitorado.
PCP queixa-se de “cerco” pós-pandemia e guerra. E preocupa-se com voto jovem
Apesar de os partidos se queixarem de pontos comuns, admitirem dificuldades comuns, e de ambos terem assumido, na noite eleitoral, a posição difícil num quadro virado à direita em Portugal e na Europa, o PCP aponta para fatores mais específicos que contribuirão para as suas dificuldades eleitorais. Se no final da reunião do Comité Central desta semana Paulo Raimundo falava em “deturpações” das posições do PCP e em operações de “chantagem”, “medo” e “manipulação”, no interior do partido defende-se que essas “operações” aconteceram mais intensamente desde que começou a pandemia — e que afetarão a consciência política dos jovens que estavam, então, a formar a sua.
“Quem começou a votar nos últimos anos foi formado no contexto pandemia e pós-pandemia, num anticomunismo crescente“, refere uma fonte do partido, lembrando as críticas de que o PCP foi alvo quando decidiu realizar a Festa do Avante! em ano de pandemia e, mais recentemente, por causa da sua posição sobre a guerra na Ucrânia — ambos tópicos em que acredita que as suas posições foram distorcidas e caricaturadas, além de acreditar que com a entrada na geringonça (e com o PS a ficar com os louros também por medidas apresentadas pelos outros partidos, reclama-se deste lado) o PCP já se tinha colocado numa posição em que é mais difícil ser visto pelo eleitorado como uma “alternativa”.
A preocupação no seio do partido passa por saber que o eleitorado jovem já “ouviu as piores coisas” sobre as posições do PCP, num período em que o partido se sentiu isolado e em que também fez questão de cerrar fileiras e falar para dentro. Entre os comunistas recorda-se um período de “normalização” do partido, pós-PREC, em que a associação a regimes como o da Coreia do Norte era o discurso negativo mais frequente sobre o PCP, mas que se considera incomparável com a magnitude das críticas recebidas nos últimos anos. “É muito difícil para uma pessoa que só nos veja através dos meios de comunicação decidir votar PCP”, resume a mesma fonte, enquanto o partido continua a acreditar que é prejudicado pelos meios de comunicação tradicionais.
O outro ponto de que o PCP se queixa é a falta de comentadores televisivos ligados ao partido: se Miguel Tiago e Bernardino Soares tinham, respetivamente, espaços de comentário na RTP e na CNN, com a mudança do quadro político o peso dos comentadores ligados à direita cresceu e esses espaços desapareceram. Mas não deixa de se comentar no partido que, ainda assim, o Bloco de Esquerda tem mais peso mediático (com Catarina Martins a comentar na SIC, por exemplo).
Estar à porta das empresas, mostrar “unidade” e sair à rua: as soluções (para já)
Quais são então as soluções para os problemas, externos e auto-infligidos, que os partidos vão diagnosticando? Toda a esquerda europeia procura “ansiosamente” soluções, graceja-se nos corredores. Do lado do PCP, acredita-se que é preciso melhorar a comunicação e estar “mais à porta de cada empresa” para solidificar a relação com os trabalhadores — já que o partido está convicto de que tem uma projeção mediática insuficiente e que “o Chega entra pela casa das pessoas todos os dias”.
Já no Bloco defende-se que o segredo maior estará na mobilização, através de movimentos como o que surgiu pela Habitação, e que trazem uma “educação política” também aos novos eleitores; e numa ideia de “unidade” à esquerda, razão pela qual Mariana Mortágua promoveu os encontros com os restantes partidos de esquerda no início desta legislatura.
Em partidos em que se costuma defender o “coletivo” e em que esse coletivo procura agora formas de estancar as perdas, ambos foram, ainda assim, buscar candidatos muito populares na sua área política, com muita notoriedade, para travar a batalha europeia, admitindo agora que não há “ilusões” de que as figuras de João Oliveira e Catarina Martins constituíram contributos decisivos para que a esquerda conseguisse segurar alguma representação no Parlamento Europeu.
Ainda assim, ambos os nomes, de primeira linha na esquerda, tiveram de ser pacientes durante a noite eleitoral e só foram dados como certos em Bruxelas já a noite ia longa. “O Bloco resiste”, dizia Mortágua ao conhecer os resultados. O PCP teve uma votação residualmente melhor em termos de percentagem, diria Raimundo esta semana — “nestas alturas agarramo-nos a tudo”. Para a esquerda, os sustos eleitorais continuam. Resta saber até quando.