Pelo menos 13 pessoas morreram e pelo menos 100 ficaram feridas em Barcelona depois de uma carrinha ter atropelado dezenas de peões em Las Ramblas, no coração da cidade catalã. Foi o oitavo ataque com recurso a um veículo na Europa no espaço de um ano — desde julho de 2016, morreram 115 pessoas em ataques terroristas em que a arma foi um carro ou um camião. Tudo começou em Nice, onde morreram 84 pessoas, tendo havido depois ataques em Berlim, Londres, Estocolmo e Paris.
Para Felipe Pathé Duarte, professor universitário e especialista em organizações terroristas, “é importante sublinhar que isto não é um método novo ou inovador“. Ao Observador, o investigador recorda que “já em 2010 na revista de propaganda da Al-Qaeda era publicado um apelo para este tipo de ações, apesar de ser sobretudo com veículos pesados e não com viaturas ligeiras normais”.
“Mais tarde, em 2016, já depois do ataque em Nice, há na revista do Estado Islâmico um apelo semelhante para este tipo de ações. No artigo, argumentavam que estes ataques são muito eficazes e muito satisfatórios“, explica Pathé Duarte.
Na altura, a revista Rumiyah, revista oficial de propaganda da organização terrorista, publicava um guia completo sobre como utilizar veículos como armas. Citando o Corão para pedir aos militantes que usassem “armas e técnicas que possam ser usadas a qualquer momento para infligir miséria e destruição sobre os inimigos de Alá“, o artigo especificava até como escolher os veículos com mais poder mortal.
“Apesar de ser uma parte essencial da vida moderna, muito poucos compreendem o poder mortífero e destrutivo dos veículos, e a sua capacidade de causar muitas mortes se usados de forma premeditada. Isto foi demonstrado de forma soberba no ataque lançado pelo irmão Mohamed Lahouaiej-Bouhlel [o atacante de Nice]”, lia-se no artigo.
O guia destacava ainda que “veículos mais pequenos são incapazes de garantir o nível de carnificina que se procura”, pelo que os atacantes deveriam preferir viaturas “grandes em termos de tamanho, mas sem esquecer a capacidade de controlo” e “razoavelmente rápidos em termos de capacidade de aceleração”. E já agora com rodas duplas, “para dar às vítimas menos hipóteses de fugirem ao esmagamento pelos pneus do camião”.
Estado Islâmico publicou manual para jihadistas atacarem com camiões
Felipe Pathé Duarte reconhece que no último ano estes ataques têm acontecido “mais amiúde”, mas reforça a ideia de que “não se pode considerar que o ataque especificamente com viaturas seja uma tendência nova”. O professor universitário recorda que “só em Israel, entre 2015 e 2016, houve 48 registos de ataques com recurso a carros“.
“E porque é que este tipo de ação acontece? Porque é uma ação low-cost e de baixo risco para o executante. É que, naturalmente, se houver utilização de armas ou explosivos, o nível de monitorização é muito maior. No que toca à utilização de veículos, o escrutínio de quem compra ou quem aluga é muito mais complicado“, explica o investigador, autor do livro Jihadismo Global.
Além disso, os atacantes escolhem sempre os chamados soft targets, alvos que, sendo habitualmente ruas pedonais com grandes concentrações de pessoas, não são os lugares mais óbvios para um ataque terrorista e que, por isso, são menos monitorizados. “O objetivo final é sempre com o mínimo de material possível, com o mínimo de esforço possível, causar o máximo de danos possíveis“, sublinha.
O método mais eficaz? Nem por isso
O argumento mais utilizado na propaganda a este tipo de ataques é o da eficácia: muitas mortes com pouco esforço e com recurso a armas que existem no quotidiano. Mas para Felipe Pathé Duarte não é bem assim. “Eles dizem que isto é um tipo de ação eficaz, mas eu não concordo. Ao longo destes oito atentados, o único que teve mais de dezena e meia de fatalidades foi o de Nice. Não estou a desvalorizar as vítimas dos outros atentados, atenção. Estou apenas a dizer que um atentado com recurso a explosivos ou a armas semiautomáticas é muito mais eficaz em termos de vítimas“, destaca o investigador.
Então, o que torna estes ataques tão assustadores? “O mais relevante é o impacto psicológico. Mesmo que a nível operacional não tenham o mesmo impacto que um explosivo ou armas semiautomáticas, acabam por ter um forte efeito psicológico, porque usamos objetos do quotidiano, cujo escrutínio não é fácil. Por isso, tornam-se em condicionantes para a nossa vida normal. Por causa destes ataques, podemos ter medo de andar na Avenida da Liberdade e de repente sermos atropelados por causa de uma ideologia extremista. Isso condiciona a nossa vida diária.”
A crescente frequência deste tipo de ataques deverá, na ótica do especialista, levar um maior controlo das situações que possam conduzir a eles. “Acontece sobretudo em zonas pedestres, turísticas, por isso há uma série de medidas, que já se começam a tomar, como a instalação de pilaretes ou outras barreiras que impeçam o acesso de automóveis às zonas pedonais”, sublinha.
Ao mesmo tempo, será naturalmente dada mais atenção ao controlo da utilização de viaturas — quem aluga, quem compra, que assaltos a viaturas acontecem. Finalmente, “um aumento da presença policial” irá permitir uma deteção precoce de potenciais ataques. “Isto porque na preparação destes atentados, os terroristas têm de fazer uma pré-vigilância dos locais, têm de escolher o carro. Uma maior presença das forças policiais e dos serviços de segurança nos locais turísticos irá permitir um maior controlo.”
“Dou-lhe o exemplo de Israel, país em que esta forma de atacar é muito frequente, e em que este combate tem sido eficaz”, afirma o investigador, sublinhando que nos últimos anos “dezenas de ataques foram detetados ainda na fase de planeamento“. “Embora seja difícil de escrutinar, não é impossível”, remata.
No entanto, ainda há na Europa um longo caminho a fazer. “Ainda somos muito surpreendidos, ainda não estamos a escrutinar estas movimentações”, afirma.
O especialista não acredita, porém, que a utilização de carros por si só represente uma tendência nos ataques terroristas nos próximos tempos. “Diria que a tendência será a utilização de todo o tipo de objetos do dia-a-dia, que sejam de difícil escrutínio. Vejamos por exemplo o caso de Westminster, em que o atacante sai do carro e começa a distribuir facadas. Foi um ataque mortífero, mas com o mínimo de sofisticação: um carro e uma faca”, sublinha.
“Insisto: os atentados com carros, comparativamente com outras armas, não têm um número de mortos superior, não se pode dizer que seja mais eficaz. O grande impacto é esta capacidade de provocar o medo e de condicionar a nossa vida quotidiana”, diz Pathé Duarte.
O mais importante de tudo, para o especialista, é que em Portugal “não se entre numa paranoia à volta disto, que não se pense que isto agora vai ser a nova tendência”. “É preciso desconstruir o problema. Espanha sempre foi considerada um alvo, com ameaças diretas, e não se pode dizer o mesmo relativamente a Portugal. Há aqui um padrão: as ameaças diretas feitas a Espanha resultaram em 181 jihadistas presos desde 2015, é muita gente. Estamos a falar inclusivamente de redes apanhadas em Barcelona que estavam ligadas ao atentado em Bruxelas no ano anterior. Não é de todo o que se passa em Portugal“, conclui.
Oito atentados com veículos num ano
Entre 14 de julho de 2016 e 17 de agosto de 2017 aconteceram, na Europa, oito ataques com recurso a viaturas como armas. Morreram 115 pessoas e centenas ficaram feridas. O mais mortal foi o primeiro, em Nice, no sul de França. Já a cidade mais afetada foi Londres, a capital do Reino Unido, com três ataques.
Nice, 14 de julho de 2016
Foi em França, durante o feriado nacional que assinala o Dia da Bastilha, que o mundo foi confrontado pela primeira vez com esta realidade: um camião entrou a alta velocidade pela Promenade des Anglais, uma das avenidas mais importantes da cidade, tirando a vida a 84 pessoas e deixando mais de uma centena de feridos.
Era noite de festa em todo o país, com direito a fogo-de-artifício e com muitas famílias a passear na rua, quando Mohamed Lahouaiej Bouhlel, um francês de origem tunisina com 31 anos, pegou num camião de 19 toneladas e percorreu, em 45 segundos, aquela avenida, atropelando e esmagando quem lhe aparecia à frente. Ao mesmo tempo, ainda usou uma arma de fogo para disparar contra a multidão.
Morreram pessoas de pelo menos 16 nacionalidades e o Estado Islâmico não demorou a reivindicar a autoria do atentado. França, que chorava ainda os mortos dos atentados de Paris e a tragédia do Charlie Hebdo, viu-se forçada a prolongar o estado de emergência por mais três meses. Mas, sobretudo, começava ali um novo debate: os terroristas já não pareciam tão interessados em bombas ou em armas de fogo e começavam a praticar atentados com algo tão corriqueiro como um carro ou um camião. E não havia como o impedir.
Berlim, 19 de dezembro de 2016
Menos de seis meses depois do primeiro ataque, a Europa voltava a parar: por volta das 20h15 locais, um camião de matrícula polaca entrou por um mercado de Natal cheio de gente na Breitscheidplatz, no coração da capital da Alemanha, Berlim. Ao volante, seguia o tunisino Anis Amri, um jovem radicalizado que já andava há muito a ser seguido pelas autoridades alemãs.
Morreram 12 pessoas e mais de 50 ficaram feridas. A primeira vítima foi precisamente o condutor original do camião, o polaco Łukasz Urban, morto a tiro no interior do veículo. O Estado Islâmico, mais uma vez, reivindicou o atentado, mas não foi possível confirmar as ligações ao grupo terrorista.
Amri viria a ser abatido pela polícia italiana em Milão, depois de quatro dias a monte. E a história do tunisino já era bem conhecida das autoridades: já tinha estado preso em Itália e até já tinha recebido uma ordem de extradição para a Tunísia. Mas nunca chegou a acontecer e o jovem conseguiu chegar à Alemanha e levar a cabo o seu plano contra o mercado de Natal, que a polícia já tinha no radar há meses.
Londres, 22 de março de 2017
Quando a Europa já estava mais do que consciencializada de que estava perante um novo modus operandi terrorista — mais perigoso porque muito mais difícil de controlar –, a tragédia repetia-se. Desta vez, em Londres, na ponte de Westminster, junto ao Parlamento britânico. Khalid Masood, um jovem britânico de origem nigeriana, pegou num carro e conduziu erraticamente pela ponte, dirigindo-se aos portões do Parlamento e atropelando mais de uma dezena de peões.
Morreram cinco pessoas — quatro civis e um agente da polícia, esfaqueado pelo atacante já fora do veículo. O atentado ficaria até hoje por explicar. Apesar das suspeitas de extremismo islâmico — Khalid converteu-se ao Islão na cadeia, onde estava por posse ilegal de armas, e já tinha sido investigado pelo MI5 por suspeitas de radicalismo islâmico — o ataque não foi reivindicado e a polícia anunciou que o motivo ficou por esclarecer.
Estocolmo, 7 de abril de 2017
Duas semanas depois do ataque em Londres, Rakhmat Akilov, um homem de 39 anos natural do Uzbequistão roubou um camião de transporte de cervejas e conduziu a alta velocidade pelo meio da rua Drottninggatan, uma artéria pedonal da capital sueca que àquela hora estava repleta de pessoas. Cinco pessoas morreram e quinze ficaram feridas. Na altura, a imprensa sueca escreveu que o atacante procurou intencionalmente atingir crianças, havendo relatos de carrinhos de bebé a “voar pelo ar”.
O atacante tinha, de resto, roubado o camião poucos minutos antes de levar a cabo o ataque, o que parece comprovar que o planeamento do atentado não foi tão elaborado como em casos anteriores. As autoridades conseguiram deter o condutor do camião em Estocolmo e ainda detiveram um segundo indivíduo, suspeito de ter sido cúmplice no ataque, numa pequena cidade a quarenta quilómetros da capital.
Antes do ataque, Akilov expressou publicamente as suas ligações com o Estado Islâmico, deixando claro para as autoridades que o ataque tinha sido motivado por extremismo religioso.
Londres, 3 de junho de 2017
Três meses depois dos atropelamentos mortais junto ao Parlamento, o terror voltava à capital britânica, num ataque conjunto levado a cabo por três atacantes que usaram um carro ligeiro para atropelar dezenas de pessoas na Ponte de Londres. Mais à frente, os três homens saíram do carro e esfaquearam quatro pessoas num bar junto ao Borough Market, um famoso mercado de Londres.
Oito pessoas morreram e os três atacantes foram abatidos no local. O Estado Islâmico reivindicou o ataque e os terroristas foram identificados como Khuram Shazad ‘Abz’ Butt (britânico de origem paquistanesa), Rachid Redouane (de origem marroquina) e Youssef Zaghba (italiano de origem marroquina). Apenas o primeiro já era conhecido das autoridades — estava envolvido com um grupo extremista que já tinha sido responsável por outros ataques terroristas no Reino Unido.
Londres, 19 de junho de 2017
Depois de uma série de atentados motivados pelo extremismo islâmico, foi na capital britânica que aconteceu o primeiro ataque islamofóbico com recurso a uma viatura, quando Darren Osorne, de 47 anos, natural do País de Gales, conduziu o seu carro a alta velocidade contra um grupo de muçulmanos que tinham acabado de sair da mesquita de Finsbury Park.
Uma pessoa morreu e oito ficaram feridas e teve de ser o imã da mesquita a intervir para impedir que os fiéis, em fúria, agredissem Osorne. O galês terá gritado que queria “matar muçulmanos”, quando pegou no carro e ainda disse, depois do ataque, que tinha feito “o que tinha de fazer”.
Paris, 9 de agosto de 2017
O último ataque terrorista antes de Barcelona foi também o único que não resultou em mortes. Hamou Benlatreche, um argelino que reside em França e que nunca tinha sido investigado pelas autoridades, pegou num BMW preto e avançou sobre um grupo de militares de uma unidade antiterrorismo que o governo francês criou em 2015, na sequência dos atentados de Paris. Seis militares ficaram feridos e as autoridades conseguiram imobilizar o homem e levá-lo sob custódia.
Barcelona, 17 de agosto de 2017: o regresso do jihadismo a Espanha
O ataque em Barcelona é o primeiro atentado motivado pelo extremismo islâmico desde o fatídico 11 de março de 2004 — dia em que 191 pessoas morreram e mais de 2.000 ficaram feridas na sequência de um ataque coordenado em três estações de comboios de Madrid.
Mas a verdade é que, como destaca num artigo de opinião publicado no diário espanhol El Mundo Rafael L. Bardají, o fundador do Grupo de Estudios Estratégicos, think-thank espanhol dedicado às questões de segurança, durante 13 anos dezenas de grupos terroristas associados ao extremismo islâmico têm operado a partir de Espanha. Só nos últimos cinco anos, mais de 120 operações levaram à detenção de perto de três centenas de pessoas ligadas a células terroristas.
Por outro lado, Espanha tem sido um dos países mais referidos como potenciais alvos pelo Estado Islâmico. Isto porque o objetivo da organização terrorista é precisamente recuperar o antigo califado islâmico, que incluía o território do Al-Andalus (nome que era dado à Península Ibérica durante o domínio árabe). E é na Catalunha que se concentram grande parte dos apoiantes do extremismo islâmico: segundo os dados apontados no mesmo artigo, nos últimos anos cerca de 40% das detenções de extremistas aconteceram na Catalunha, e destes 95% em Barcelona. “A jihad não regressou a Espanha porque nunca foi embora“, conclui Bardají.