Durante o jantar de Natal da Carris, em 2019, Fernando Medina discursou durante um pouco mais de meia hora e, num determinado momento, confidenciou que gostava de conseguir “convencer” os recém-contratados funcionários da empresa a aderirem ao PS da Carris. A oposição não demorou a criticar o momento “cacique” de Medina, e o autarca lisboeta considerou uma “calúnia” o aproveitamento que os “suspeitos do costume” fizeram do vídeo que retrata o momento.
O apelo de Medina chamou a atenção para uma realidade pouco explorada no plano mediático: o universo das secções partidárias nas empresas. O PS não está sozinho na lista dos partidos que têm este tipo de organizações e ainda está longe do destacado PCP, que só no último ano anunciou ter conseguido constituir mais de uma centena de novas células de trabalhadores em empresas. Alguns núcleos podem já não ter o fulgor de outros tempos, mas ainda há núcleos organizados em várias empresas públicas e privadas. O Observador fez um raio-x a estas estruturas que fazem parte da orgânica do partido.
O apelo de Medina para a Carris: “Que venham a ser trabalhadores do PS”
Voltando ao jantar de Natal do PS da Carris: Medina reconheceu que a autarquia “não é um acionista fácil”, mas que é “um acionista que gosta muito da Carris” — e também teve tempo para deixar elogios a António Costa. Fernando Medina também não teve problemas em usar o fato de presidente da autarquia durante o discurso e disse aos trabalhadores que o escutavam que “a Carris não tem dívida porque [o executivo] cumpriu aquilo com que se tinha comprometido”. “Em quase três anos, transferimos para a Carris 50 milhões de euros, no próximo ano vamos transferir mais que este ano e a seguir também porque é isso que é preciso para ter um serviço público”, apontou Medina.
“Sabemos que queremos serviço público, uma empresa saudável, pujante, que se compara com outras empresas e que não é gerida com as insustentabilidades do passado. Não é preciso ter dívida para ser bem gerida”, disse Medina imediatamente antes de frisar que a autarquia estava a “contratar mais pessoas”. E eram esses trabalhadores que Medina queria “convencer a serem trabalhadores do PS”.
Estamos ao mesmo tempo a contratar mais pessoas, mais trabalhadores. Espero, aliás, que os possamos convencer da nossa estratégia e que venham a ser trabalhadores do PS e da secção do PS da Carris”, disse, antes de ter o discurso interrompido por um forte aplauso.
As secções do PS estendem-se por várias empresas e organizações, mas o discurso de Medina durante o jantar de Natal da Carris transformou-se num irritante para o autarca. No Twitter, Medina contra-atacou o PSD: “Antes acusavam o PS de contratar socialistas, a acusação agora é mais rebuscada: tento convencer os não socialistas. Julgava que era esse o objetivo de qualquer partido, mas já vi que há quem no PSD esteja por tudo”.
Antes acusavam PS de contratar socialistas, a acusação agora é mais rebuscada: tento convencer os não socialistas. Julgava que era esse o objectivo de qualquer partido, mas já vi que há quem no PSD esteja por tudo.
— Fernando Medina (@F__Medina) June 28, 2021
As ligações partidárias (e familiares) dos núcleos do PS nas empresas
São 26 as secções setoriais da FAUL do PS. Uma delas reúne inclusivamente os trabalhadores socialistas da própria Câmara Municipal de Lisboa. À frente da secção do PS na autarquia lisboeta está Fernando Manuel Costa Silva, que é ao mesmo tempo presidente do conselho de administração dos Serviços Sociais da Câmara Municipal de Lisboa.
Mas, ao nível das autarquias, na FAUL há mais: Loures e Odivelas também têm secções socialistas, sendo que em Odivelas também na junta de freguesia foi constituída uma secção. O coordenador da secção do PS na Junta de Freguesia de Odivelas é Sérgio Gaudêncio, pai de Nuno Gaudêncio, que é presidente da junta de freguesia desde 2013 e recandidato ao lugar nas autárquicas deste ano.
Ainda em Odivelas, mas no município, Fábio Alexandre Lourenço é o coordenador da secção e apresenta-se como “adjunto político na autarquia”, que conhece desde 2009, quando entrou pelos corredores da autarquia. Começou como secretário, mas em dezembro de 2019 passou a ocupar funções de adjunto político e no último mandato assumiu várias vezes a função de vereador em regime de substituição em várias funções na autarquia.
Já a secção da Secretaria de Estado do Emprego e Formação Profissional está sob a responsabilidade de Ana Elisa Silva Costa Santos, que também está longe de ser uma desconhecida no partido. Mulher de José Miguel Medeiros, também ele um antigo deputado socialista, Ana Elisa Costa Santos já desempenhou funções na autarquia de Lisboa — ainda nas mãos de Costa — e passou depois para a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, nas mãos do também socialista Miguel Coelho. Em 2018, Ana Elisa Santos foi nomeada diretora do Centro Protocolar da Justiça, função que ainda ocupa. A socialista também já esteve à frente da Comissão Nacional de Fiscalização Económica e Financeira do PS.
No Ministério das Finanças, os trabalhadores que são militantes socialistas contam com a direção de Serra Andrade. Certo é que a veia sindicalista de vários socialistas continua bem ativa, com os coordenadores de várias secções a acumularem cargos nos sindicatos das respetivas áreas.
São vários os exemplos de dirigentes de núcleos que têm cargos. António José Real Fonseca, secretário-coordenador da secção do PS-Caixa Geral de Depósitos, faz parte do Secretariado da Febase, representando o Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas. António Alexandre Picareta Delgado, líder da secção marítimo/portuários do PS-FAUL, é secretário-geral do SITEMAQ (Sindicato da Mestrança e Marinhagem da Marinha Mercante, Energia e Fogueiros de Terra). Também Nuno José Serra Silva, secretário-coordenador da secção do PS-TAP integra o sindicato dos economistas.
No que diz respeito às empresas públicas ou com participação pública há secções socialistas na EDP, no Metro Lisboa e na TAP, por exemplo. Na banca, as secções estão no Montepio Geral, no Millennium BCP, no Santander Totta e no BPI, onde o coordenador da secção, José Milício, é também colaborador do grupo desportivo e cultural dos empregados do banco BPI. Também na televisão e rádio públicas há secções organizadas de militantes socialistas. Os serviços municipalizados de água e saneamento (SMAS) de Loures também contam com uma destas secções e os CTT Lisboa idem.
Egídia Pinto Queiroz Martins, da secção da NAV, é vogal do conselho de administração desde 2019. Em 2015 integrou a lista por Lisboa às legislativas, embora num lugar impossível de ser eleito. Não é por isso que é desconsiderada no seio do partido, já que integra atualmente a Comissão Federativa de Fiscalização Económica e Financeira do PS.
Já na Universidade Lusófona, a secretária-coordenadora da secção é uma velha conhecida socialista. Teresa Rosário Damásio foi deputada na XI legislatura e, mais recentemente, em julho de 2020, longe de surpresas, foi nomeada CEO da Universidade Lusófona da Guiné-Bissau.
Soma nomeações em várias instituições e associações de ensino, quase todas presididas pelo pai, Manuel de Almeida Damásio. Manuel de Almeida Damásio é o homem forte do Grupo Lusófona e controla várias instituições de ensino — através da cooperativa Cofac, da qual também é presidente da direção—, Teresa Rosário Damásio é também administradora executiva do grupo Ensinus (também ele presidido por Manuel de Almeida Damásio) que detém, por exemplo, as Escolas de Comércio de Lisboa e Porto ou o ISG (Instituto Superior de Gestão) — Business & Economics School, em Lisboa.
O Observador questionou várias vezes ao longo dos últimos dias o Partido Socialista sobre as várias secções e as oscilações de militantes ao longo dos últimos anos, mas não obteve qualquer resposta até à publicação deste artigo.
PCP criou 102 novas células em empresas. Há milhares de militantes envolvidos
As secções socialistas podem não ter tanta visibilidade no dia a dia como as comunistas, mas em número o PCP é bastante mais eficiente a “convencer” os trabalhadores a integrar as respetivas células de empresa. No âmbito do centenário do partido, o PCP estabeleceu como um dos objetivos “a criação de 100 novas células de empresas, local de trabalho ou sector e a definição de 100 novos responsáveis”. No comunicado emitido pelo partido depois da reunião do Comité Central do último fim-de-semana, o PCP nota que alcançou “um importante êxito com a criação de 102 novas células e a definição de 119 novos responsáveis”.
Num ano apenas o PCP vê o número de células de empresa aumentar em mais de uma centena. Ao Observador, fonte oficial do partido não conseguiu precisar o número total de células que o PCP tem no país, mas as ações do partido desenvolvem-se em constante articulação com estas unidades. Das campanhas eleitorais ao apoio dado na relação dos trabalhadores com os respetivos empregadores, é frequente, por exemplo, ver candidatos às legislativas ou mesmo presidenciais visitar estes locais. Um dos exemplos mais visíveis talvez seja a Autoeuropa — muito devido à dimensão da empresa —, mas os comunistas têm estas células como ponto central do trabalho do partido.
https://www.facebook.com/CelulaDoParqueIndustrialDaAutoeuropa/posts/2573312372996304
Em outubro de 2020, num discurso onde frisava a importante meta de criação de 100 novas células de empresa num ano, o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, explicava a importância da criação destas células: “Muitas vezes começa por assegurar uma ponta que vai abrindo caminho, por uma presença assídua junto dos locais de trabalho, levando a opinião do partido. Esse esforço não pode parar”.
Núcleos de trabalhadores sociais-democratas nas empresas deixaram de ter expressão formal
No PSD, apesar de os trabalhadores sociais-democratas se poderem organizar em núcleos, Pedro Roque reconhece ao Observador que funcionavam mais “quando o sindicalismo era mais ativo”. Atualmente sem núcleos formalmente constituídos, o PSD conta com os militantes das várias empresas para dar “algum apoio nas questões dos trabalhadores”, tendo a prática dos núcleos de empresa “sido abandonada há muito tempo” segundo outra fonte social-democrata explica ao Observador.
No PSD, os trabalhadores “são uma espécie de órgão consultivo do secretariado nacional” e articulam-se de forma mais próxima com as respetivas distritais, que têm secretariados nas várias áreas (saúde, educação, banca ou financeiro por exemplo).
Ainda assim, o secretário-geral dos TSD reconhece que, mesmo sem a constituição dos respetivos núcleos, sabendo-se da existência dos militantes em determinadas empresas acaba por se manter a articulação, numa ótica mais consultiva.