Um “contexto muito particular” conjugado com uma “redução dos anticorpos”. É isso que estará na origem do aumento de surtos nos lares de idosos — realidade que fez soar os alarmes depois de ter sido conhecido um caso em Proença-a-Nova, que causou duas mortes, e outro em Almodôvar. Esta segunda-feira, segundo revelou Direção-Geral da Saúde (DGS), há 56 surtos em lares (mais três do que na semana passada) e 1.192 casos confirmados entre idosos, uma subida significativa face aos 829 registados na passada semana.
Ao Observador, o epidemiologista Manuel Carmo Gomes começou por explicar que nos lares existe uma “repetitividade de contactos muito grande” e que os “idosos estão muito próximos uns dos outros, sendo tratados por cuidadores num ambiente que não costuma ser bem ventilado”.
Com a vacinação praticamente terminada nestas faixas etárias (fonte oficial da task force indicou ao Observador que apenas 1% dos utentes e 3% dos funcionários não tomaram qualquer dose do imunizante), está a assistir-se a um aumento de surtos e de casos e de episódios severos da doença que podem levar à morte.
Manuel Carmo Gomes garante que as infeções entre vacinados continuam a ser “muito baixas” — na ordem dos 0,05% — mas que os contágios variam “consoante a idade”, estando a verificar-se um aumento nos idosos inoculados. O motivo prende-se com a queda de anticorpos — a “resposta imunitária que atua quando se inala o vírus e que não permite a sua reprodução” — que acontece mais rapidamente nas faixas etárias mais avançadas, “não só por terem tomado a vacina mais cedo, como também por terem um sistema imunológico mais frágil”, explica.
“Se os anticorpos estiverem em baixo, como se está a verificar nos idosos, o vírus entra e tem a capacidade de se multiplicar”, frisa o epidemiologista.
O imunologista do Instituto Champalimaud Henrique Veiga-Fernandes também reforçou esta ideia em declarações ao Observador, referindo que nos idosos existe uma “produção de anticorpos menos robusta” e que a “imunidade celular também é menos robusta”, o que faz com que as vacinas possam ser menos eficazes nestas faixas etárias, o que também “acontece também em outras (como a da gripe)”.
Mas os vacinados também estão em risco?
O imunologista do iMED Luís Graça sublinha que “as vacinas não são cem por cento eficazes” e refere que existe sempre uma “probabilidade de alguém contactar com alguém infetado e apanhar a doença”. Ao Observador, o especialista sinaliza que existe a tendência de se pensar que com um imunizante com 90% de eficácia, como o da Pfizer, “nove em cada dez pessoas estão protegidas contra a doença e que apenas uma em dez não está”. “Não é isso que acontece”, diz, referindo que o que sucede é que “existe uma probabilidade de 10% de a pessoa quando estiver em contacto com um infetado apanhar o vírus”.
Os vacinados também estão mais em risco se o vírus estiver disperso na comunidade, assinala o imunologista. “Se houver contactos frequentes e repetitivos com pessoas infetadas, mesmo que exista uma eficácia de 90% dos imunizantes, há uma maior probabilidade de uma pessoa apanhar a doença mesmo estando vacinada”, esclarece Luís Graça. Com o aumento de casos que se verificou entre junho e julho em Portugal — que chegaram a superar os quatro mil diários –, estiveram reunidas as condições ideais para que houvesse “uma exposição repetida e prolongada ao vírus”, que foi uma das razões que fizeram aumentar os surtos nos lares.
Apesar de as vacinas não demonstrarem uma eficácia de cem por cento principalmente nos idosos, Luís Graça garante que na maior parte das vezes os vacinados infetados com mais idade “desenvolvem quadros ligeiros ou ficam mesmo assintomáticos”, ideia corroborada com Manuel Carmo Gomes. Mas há exceções. “A idade mais avançada, as comorbilidades e o estado imunitário das pessoas podem contribuir para que desenvolvam sintomas e quadro mais severos da doença”, mesmo com a vacina, diz o imunologista.
A componente do sistema imunitário que serve como barreira de doença grave é diferente da dos anticorpos”, explica Manuel Carmo Gomes, acrescentando que nos vacinados infetados é “pouco provável desenvolverem quadros graves”, dependendo sempre, no entanto, da existência de doenças crónicas ou outras complicações imunológicas.
Da parte dos lares, diz-se que estava “escrito nas estrelas” que os “efeitos da vacina não iam durar para sempre”. Manuel Lemos, presidente da União das Misericórdias, indicou ao Observador que “a vacina não é garantia de que o vírus não se transmite”, protegendo por sua vez “os efeitos severos da doença” — há contudo “pessoas que em que isso não acontece, que ficam com doenças graves”. Ainda assim, relata que o “cenário já é muito diferente daquele vivido em janeiro”: “Está tudo muito melhor.”
João Ferreira de Almeida, da Associação de Lares e Casas de Repouso, também salienta que embora a “vacina não seja garantia de que não se transmite o vírus a terceiros”, “amortece os efeitos em doença severa”. “A situação está muito melhor do aquela vivida no passado”, defende também.
A terceira dose. Decisão inevitável ou precoce?
Neste contexto, a terceira dose será inevitável? Luís Graça afirma ser necessário “avaliar a durabilidade da proteção das vacinas”, apesar de os “dados disponíveis continuarem a sugerir que na generalidade da população — mesmo nas faixas etárias mais avançadas — ela é robusta”. Mesmo assim, o especialista alerta que já há países como Israel em que o reforço das duas doses já se verifica.
“Temos de avançar com cautela, há também pressão por parte das farmacêuticas, mas o importante é andar devagar, fazer as contas e estimar a queda de anticorpos”, reforça Manuel Carmo Gomes.
Da parte dos lares a posição é parecida: é melhor esperar pelos resultados do estudo serológico que o Governo anunciou este sábado e que irá medir o nível de anticorpos contra a Covid-19 em cinco mil utentes de lares. Manuel Lemos indicou ao Observador que é “importante o Governo avaliar bem” sobre a toma da terceira dose e “não estar a gastar vacinas” sem haver conclusões do estudo: “Temos de fazer este processo com calma”.
Também João Ferreira de Almeida disse ser “importante esperar pelo estudo, ver o que se passa e estudar as origens dos surtos” antes de avançar para a terceira dose.
Lino Maia, presidente da União das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), antevê, porém, que tal possa mesmo vir a acontecer: “Vai ser como a vacina da gripe — vai ser periódica”. Salientado não ser nenhum “perito”, o também pároco diz, por isso, ser necessário “esperar pela conclusão final dos especialistas”.
Covid-19. Governo faz estudo serológico a utentes e funcionários de lares de idosos
Surtos podem levar a interdição de visitas nos lares ou a reforço de medidas?
Nenhum dos responsáveis quer sequer ouvir falar da hipótese de interditar as visitas. Manuel Lemos diz que os idosos já sofreram “bastante com a calamidade que foi a pandemia” e Lino Maia indica que os “utentes de lares estão enclausurados desde março passado” e que proibir as visitas iria ter repercussões negativas na sua “saúde mental”. Já João Ferreira de Almeida considera que seria uma “violência enorme” para os idosos, mas admite que “pode vir a ser necessário” em caso de aumento descontrolado dos casos.
A posição altera-se quando se fala em medidas de proteção diferentes daquelas que estão estipuladas na norma 009/2020 da DGS, que dita os procedimentos que os lares devem cumprir para receber as visitas e que fixa que deve existir um distanciamento físico entre os utentes e as famílias, que se deve usar obrigatoriamente a máscara e que deve existir um circuito próprio para as visitas circularem. A última alteração desta norma ocorreu no final de abril e estabeleceu que os idosos com duas doses da vacina podem sair e depois regressar ao lar sem a necessidade de se testarem ou fazerem quarentena.
“As visitas estão a decorrer muito bem”, salienta Lino Maia, visão partilhada com Manuel Lemos. Já João Ferreira de Almeida apresenta mais dúvidas: “Existe, em alguns lares, uma menor disciplina na realização das visitas” com algumas regras a não serem plenamente cumpridas.
Sobre a norma da DGS, Rui Fontes, presidente da Associação Amigos da Grande Idade, é bastante mais crítico. “Os lares estão a ser deixados ao abandono”, afirma em declarações à Rádio Observador, apontando falhas ao facto de “cada gerente de lar, presidente de IPSS ter a sua ideia e poder fazer a intervenção que quiser”. “É uma confusão muito grande. Uns [lares] não permitem as visitas, outros restringem, outros pedem teste, outros não. Não se percebe e é grave”.
“Está a ver uma desorientação total com familiares, com os residentes a terem consciência da situação. A questão das saídas [sem testes] é ridículo”, denuncia.
Rui Fontes critica ainda a DGS pela “falta de informação sobre os surtos passados”. “O que se passa nos lares em que há surtos? Quais foram os motivos de haver surtos em certos lares? Foi mau desempenhos dos técnicos, houve falha de medidas preventivas? E o que se passa nos lares ilegais? O que é que podemos aprender com o passado?. Quais foram as conclusões?”, questiona.
“Ao fim destes meses todos continua a não haver indicações específicas, nem conclusões, cada um tem a sua opinião”, sintetiza Rui Fontes, que diz ainda que o Estado está a “sonegar dados”.
Estado está a “sonegar” informação sobre surtos nos lares. “Estamos desorientados”, assume setor
Na Madeira visitantes precisam de teste negativo. Especialistas alertam para risco de funcionários não vacinados
Na Madeira, os visitantes de lares “devem efetuar teste rápido de antigénio até 72 horas antes da visita, de 15 em 15 dias”. Já em Portugal continental, não existe essa obrigação, cabendo a cada lar decidir se adota o certificado digital (ou teste negativo) com condição para deixar entrar os familiares.
Para Manuel Lemos, a regra seguida pela região autónoma não faz “sentido”, devido ao estado da vacinação em Portugal e por se cumprirem vários requisitos quando alguém visita um familiar num lar. Esta opinião coincide com a de Manuel Carmo Gomes, que aponta o foco para os cuidadores. “Vemos sistematicamente a introdução de vírus em lares por funcionários, mais do que pelas visitas, que têm cuidados e cumprem o distanciamento”, afirma.
No entanto, ainda sobre os cuidadores, “esse contacto é mais direto e próximo”. “Eles vestem os idosos, metem-nos na cama, lavam-nos, há uma proximidade muito grande.” Por isso, à semelhança do que acontece em países como França ou Grécia, Manuel Carmo Gomes considera que a “vacinação devia ser obrigatória para os funcionários dos lares”. “Nós já tivemos mortes por funcionários não vacinados que trouxeram o vírus para dentro das residências para idosos”, avisa.