Passou de rosto da Proteção Civil (onde era 2ª comandante) num período trágico para o país, nos incêndio de 2017, para um gabinete do Governo, como secretária de Estado da Administração Interna. Patrícia Gaspar esteve no programa “Vichyssoise”, na rádio Observador, para uma conversa numa semana em que as condições meteorológicas a preocupam especialmente. Diz que “nem que viva cem anos” se esquecerá do que aconteceu naquele ano em que garante que nenhum outro país conseguiria ter feito diferente para evitar a tragédia. E diz que evitar uma tragédia como aquela nada tem a ver com o país em que acontece, mas com a prevenção das ignições.
Na conversa, a governante garante que a questão dos meios está resolvida mas que se não forem diminuídas as ocorrências não será isso que evitará o pior. Isto embora reconheça que nem tudo está nas mãos dos portugueses, mas também do Estado. “Quando ponho um enfoque grande no cidadão, isso não retira responsabilidade ao Estado, muito pelo contrário”, defende na entrevista onde revela que gostou mais dos tempos em que passou pelas secretas do que pela marinha.
Chegados a esta altura do ano e nestas circunstâncias meteorológicas, ainda revive o que se passou em 2017, ainda tem o trauma desse período ou já o conseguiu ultrapassar?
Não lhe chamaria trauma, mas foi um ano muito marcante para todos os portugueses, para quem esteve na linha da frente ainda mais. Para mim, obviamente que sim, porque foi um ano muito atípico, muito diferente de todos os outros, com grande impacto no país e na vida dos portugueses. Estaria tentada a dizer que nem que viva mais cem anos, jamais esquecerei o que foi o ano de 2017.
Recentemente alertou para “um cenário meteorológico muito complicado” ao longo desta semana com um potencial de ocorrências de incêndios florestais “difíceis de gerir” e que se podem tornar “quase catastróficos”. Isso significa que os meios ainda não são suficientes, tem essa preocupação?
Temos neste momento e sobretudo nas próximas 48 horas um cenário meteorológico que pode potenciar o desenvolvimento de ocorrências que podem ganhar dimensão quase catastrófica. Incêndio bom é aquele que não acontece e o grande desafio destas 48 horas, e do verão inteiro, é evitar qualquer tipo de ignição junto aos espaços florestais. Porque estas ignições a acontecerem com estas condições meteorológicas vão efetivamente poder potenciar desenvolvimentos muito complexos. Podemos ter ocorrências muito difíceis de combater por parte dos operacionais e isto não tem a ver com os meios.
Há uma parte aí que não é controlável que é a questão meteorológica, talvez só na parte da prevenção, mas disso também faz parte ter os meios suficientes. Ao carregar no tom deste fim de semana tem uma preocupação por trás? Se houver um problema grave não há meios?
O grande desafio não passa tanto pela gestão dos meios mas por evitar as ocorrências. Toda a estatística nos diz que mais de 90% dos incêndios tem a mão humana e podem ser evitados. E se evitarmos estas ocorrências, o dispositivo que está no seu expoente máximo (60 meios aéreos e mais de 11 mil operacionais no terreno) terá muito mais facilidade em responder. Num cenário em que as ocorrências ganhem dimensões muito complexas, se elas forem muitas, vão levar o dispositivo a um esforço completamente diferente. O dispositivo responderá tanto melhor quanto menor for o número de ocorrências. Se num cenário meteorológico de verão normal, já teremos sempre de evitar ocorrências de incêndios, num cenário como estes, isso é absolutamente imperativo.
Diz que a mão humana continua a ser a principal causa de incêndio, como é que depois do que aconteceu em 2017 isto se mantém? Não se agiu devidamente para prevenir ou agir em termos criminais?
Estamos a trabalhar em várias frentes e essa é uma. As forças de segurança têm feito um trabalho notável na investigação das causas de incêndio e dos culpados. É um crime muitíssimo difícil de investigar, mas ainda assim é importante notar que temos vindo a assistir gradualmente a uma diminuição muito expressiva do número de incêndios. Eu sou do tempo em que tínhamos várias vezes durante o verão, dias com mais de 400 ocorrências de incêndios florestais, esses números nos últimos anos felizmente não se verificaram. Portanto, temos aqui um sinal claro de que estamos no bom caminho, na prevenção, na adequação dos nossos comportamentos de risco. Neste momento se compararmos os dados deste anos com os da última década, temos menos 52% de incêndios rurais. Estamos a conseguir reduzir esta carga. E para isso concorre a investigação que tem sido feita e o sinal que tem sido dado às pessoas que têm sido detidas. As campanhas sensibilização. É importante consciencializar que provocar um incêndio florestal seja de forma intencional seja de forma negligente constitui uma prática de um crime.
Não conseguiu proteger pessoas, não conseguiu proteger bens. Quem olha até para as suas declarações quando fala da possibilidade de “eventos catastróficos” e quando ouve falar da responsabilidade de cada um de nós, perguntamo-nos: E o Estado? Consegue garantir que não vai falhar às suas pessoas?
2017 foi um ano absolutamente excecional. Quer a ocorrência de Pedrogão Grande, quer depois os incêndios que tivemos em outubro, foram cenários excecionais que, felizmente, não se verificam muitas vezes. Provavelmente, o que aconteceu em Portugal, teria as mesmas consequências se tivesse acontecido em qualquer outro país do mundo. O que é realmente importante tirar daqui são as lições que foram adquiridas, toda a análise e todo o trabalho que foi feito de avaliação daquelas ocorrências e tudo aquilo que foi posto em marcha ainda durante o mês de outubro de 2017. Foram identificadas uma série de linhas prioritárias, estamos num processo de transformação que vai ser muito longo. E é importante que se diga que ninguém poderia esperar que em três anos se conseguisse reverter completamente um sistema que é complexo, que tem diferentes dimensões. Vai levar tempo a reestruturar. É esse caminho que estamos a fazer.
Portanto ainda não há grandes alterações.
Já temos alguns sinais positivos que temos de considerar, nomeadamente a redução do número de incêndios e a redução da área ardida. O sistema hoje está melhor preparado para responder a este tipo de ocorrências, porque temos vindo a apostar no cidadão, nas estruturas do Estado, na incorporação do conhecimento científico de apoio, quer à avaliação antes das ocorrências, quer ao acompanhamento e à decisão operacional. Ao nível da ANEPC, há um núcleo específico e dedicado que inclui peritos de diferentes áreas e operacionais de diferentes quadrantes que dão um apoio crucial às ocorrências, sobretudo às de maior dimensão. Sabemos que as alterações climáticas não são um mito, e temos hoje um cenário meteorológico que pode potenciar outro tipo de ocorrências. Fala-se até na nova geração dos grandes incêndios. Portanto, o que estamos a fazer é robustecer um sistema para cada vez sermos mais capazes de responder a este tipo de ocorrências de maior dimensão, caso surjam. Quando ponho um enfoque grande no cidadão, isso não retira responsabilidade ao Estado, muito pelo contrário. O Estado, o Governo, as instituições e serviços que concorrem para a defesa da floresta contra incêndios, para a resposta aos incêndios rurais, têm vindo a trabalhar de uma forma muito determinada desde 2017.
E isso chega?
Não conseguimos fazer uma viragem de 180º em três anos. Neste momento estamos a trabalhar no plano nacional de gestão integrada de fogos rurais, temos um novo sistema que está em crescimento e isto vai, obviamente, levar algum tempo. O que é certo é que temos todos de caminhar de mãos dadas.
O MAI determinou na terça-feira a abertura de um inquérito ao incêndio de Castro Verde, em que quatro bombeiros ficaram feridos. Já há novidades? A Liga dos Bombeiros diz que o equipamento de proteção individual não terá cumprido o objetivo. Pode garantir que todos os operacionais no terreno têm as condições adequadas?
Temos que aguardar pelo resultado desse inquérito e também o que está a ser feito ao incêndio da Lousã do passado sábado. Estando um inquérito em curso e, obviamente, passou ainda pouco tempo, diria ser quase impossível termos já alguma conclusão. Estamos a aguardar. Esse inquérito vai ser conduzido pela ANEPC e cobrir as diferentes dimensões do combate ao incêndio. Mesmo na questão dos equipamentos de proteção individual passando por aquilo que foi o despacho de meios, as condições no teatro de operações, a conduta operacional que foi tida pelas diferentes equipas. Acho que é sensato aguardarmos pelas condições do inquérito para que possamos depois então elaborar e perceber se há lições a retirar. Se há alguma área em concreto que possa ter falhado e mereça uma intervenção mais específica.
E quanto aos equipamentos no terreno?
Através da ANEPC, das comunidades intermunicipais e câmaras municipais, ao longo dos últimos anos, desde 2013, tem-se vindo a reforçar o que é a entrega, a distribuição, dos equipamentos de proteção individual aos diferentes operacionais dos corpos de bombeiros, neste caso em concreto que integram estas equipas. Posso dar-lhe alguns números. Em 2015 houve, de facto, um grande reforço destes equipamentos com cerca de nove mil que foram distribuídos. Em 2016, houve um novo reforço com cerca de cinco mil. Estamos com um concurso a decorrer para novos 10 mil equipamentos a serem distribuídos, que estamos a tentar acelerar ao máximo. Quanto àquilo que é a qualidade destes equipamentos, são todos certificados, respeitam as normas europeias de certificação daquilo que é a proteção que um fato deve ter para quem combate incêndios e, portanto, agora resta perceber em concreto o que é que aconteceu no caso do incêndio de Beja para daqui podermos tirar alguma conclusão.
Em junho houve registo de bombeiros com salários em atraso. Não fica em causa o trabalho no combate aos incêndios com estes problemas que se continuam a verificar?
Não é uma questão de salários em atraso. Quem paga os salários aos bombeiros são as entidades detentoras dos corpos de bombeiros e não foi isso que aconteceu no passado mês de junho. O que surgiu foi um constrangimento de ordem administrativo-financeira que impediu que as comparticipações que são feitas aos bombeiros que integram o dispositivo especial de combate a incêndios rurais fossem pagas atempadamente. Para cada mês estas comparticipações devem ser pagas até ao dia 1 do mês seguinte e devido a estes constrangimentos efetivamente esse pagamento foi feito, salvo erro, com uma semana de atraso. Está regularizado, esse constrangimento não voltará a surgir. Posso dizer que este mês, muito provavelmente, até iremos conseguir pagar antes do prazo. Foi uma situação perfeitamente pontual que já não acontecia há muitos anos e está 100% ultrapassada.
O presidente do Observatório Técnico Independente dos Incêndios Florestais indicou, esta quinta-feira na Assembleia da República, que as mudanças que existiram na PROCIV não têm sido sólidas e que existem muitas situações de precariedade laboral. E esta situação também foi resolvida e não põe em causa a capacidade de resposta?
Não põe. Nós temos a Autoridade num processo de regularização dos vínculos considerados precários na Administração Pública, os PREVPAP, é um processo que já se desenrola há algum tempo e que estamos a tentar levar a bom porto, da melhor forma possível, para garantir que estes trabalhadores que têm uma função distinta da maioria dos funcionários públicos possam ter essa distinção garantida no quadro da regularização do seu vínculo. Não têm nenhum salário em atraso, não está em risco nenhuma das condições de trabalho, têm todos contrato laboral com a Escola Nacional de Bombeiros e, portanto, estão cedidos à ANEPC com direito a todas as regalias que sempre tiveram. O que provocou este atraso na regularização tem a ver com a tentativa de encontrar uma solução, que é complexa, para que esta distinção da sua carreira possa ser considerada no quadro da regularização. O processo acabou por ser prejudicado por causa da pandemia, estamos em crer que passado o período de verão podemos recuperar este atraso e levar a bom porto este processo para que os trabalhadores fiquem com o vínculo regularizado, mas sem que isso acarrete prejuízos na sua vida pessoal e profissional.
Vamos agora a uma série de perguntas de resposta rápida. Esteve na Marinha e na Proteção Civil. Se tivesse esse poder, qual era a compra polémica do Estado que não faria? Os Kamov, comprados por António Costa, ou os submarinos, comprados por Paulo Portas?
Teria comprado os dois, são ambos críticos para aquilo que é o nosso país. Os submarinos têm uma função absolutamente crucial naquilo que é a defesa do nosso espaço marítimo, a monitorização das nossas águas territoriais. Os Kamov desempenharam um papel fundamental naquilo que foi, durante muitos anos a defesa da floresta contra incêndios.
Preferia uma tarde de praia em Sesimbra com Jaime Marta Soares ou uma tarde de mergulhos na praia de Alburrica, no Barreiro, com Eduardo Cabrita?
Ia para o Barreiro.
Depois de ter crescido no meio de submarinos e de ter fundado um clube de detetives quando era criança, onde é que se sentiu mais realizada em adulta: na Marinha ou nas Secretas?
Nas Secretas.