Aceitou ajuda no dia em que lha propuseram, no estúdio onde estava a gravar uma novela, e foi o primeiro passo para a recuperação, mas não foi fácil deixar para trás muitos anos de consumo de cocaína — de forma diária e descontrolada, na fase final. Ator e um dos rostos mais conhecidos da televisão, Pedro Barroso reconhece que a adição o foi destruindo, na relação com amigos e com a família, no respeito dos colegas de trabalho, mas também em termos financeiros e físicos.
Nesta entrevista inserida na série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental”, uma iniciativa do Observador e da FLAD, gravada no Pestana Palácio do Freixo, no Porto, conta que consumia para “não sentir”, ainda que aquilo que a cocaína lhe dava fosse precisamente a capacidade de falar sobre as coisas que antes optava por esconder. A morte da avó destapou as emoções que se esforçava para abafar e abriu caminho ao tratamento. No centro onde esteve durante cinco meses sentiu medo, tristeza e vergonha por ter de olhar para tudo o que tinha feito — e partilhá-lo com os outros doentes. Mas sentiu-se também seguro, equilibrado e feliz.
Sem rodeios, diz que é importante falar sobre recaídas: voltou a consumir alguns meses depois; e recaiu de novo depois de ter andado a viajar pelo mundo. Conta que foi sempre como se uma montanha lhe caísse em cima e é também essa a razão pela qual fala da adição sempre no presente, até porque a urgência de consumir pode não ser diária, mas o alerta está sempre lá. Se alguma coisa se desorganiza e perde o equilíbrio, “acende-se uma luz”.
A vida, entretanto, mudou muito: vive na aldeia de Freixo com a mulher, Mariana, e o filho, Santiago, agora com oito meses. Fixou-se como empresário, ainda que tenha continuado ligado à televisão e acredite que começa a estar pronto para voltar. Até porque responde com um “não” claro à pergunta de se a sua adição o impediu, irremediavelmente, de ser o ator que poderia vir a ser: “Importa que eu consiga verbalizar isto desta forma: tenho objetivos grandes”.
[Veja aqui a entrevista completa a Pedro Barroso]
Lembra-se do momento em que percebeu que tinha um problema e precisava de ajuda?
Lembro-me de um momento específico, mas acaba por ser um crescendo. Tudo acaba por vir muito mais com um sentido de descontrolo na altura em que a minha avó faleceu. Lembro-me de uma das noites em que estou em consumo, já deviam ser umas 8 ou 9 da manhã.
Depois de uma noite inteira acordado a consumir?
Sim. E lembro-me de que aquilo que acaba por me abalar é que começo a sentir, começo a ter memórias novamente da minha avó, começo a sentir. E a primeira expressão que me sai é “eu não posso sentir, eu não posso sentir, eu não posso sentir”, de uma forma sôfrega. Foi nesse momento que percebi que, se calhar, até ali, sem me aperceber, de uma forma descontrolada, simplesmente estava a abafar aquilo que fossem sentimentos, estava a não querer sentir nada. Quando percebo que preciso de ajuda é nesses virares de noites — porque não foi só uma — em que começo a ter um descontrolo, começo a ser falho em relação ao trabalho, começo a ser falho em relação àquilo que acaba por ser a minha rotina. E aceito ajuda no primeiro momento em que ma propõem.
Propuseram, não a procurou?
Procurava, tinha uma pessoa — tenho, por assim dizer, porque infelizmente partiu, mas de uma certa forma continua aqui — que foi muito importante neste processo, quando procurei ajuda pela primeira vez. Mas não há um passo acertado, não é à primeira que queres ou consegues entender tudo, porque estás numa situação de descontrolo, estás em consumo, estás sem perceberes que és adito, e a tua vida segue. E até que as coisas ganhem uma proporção gigante e comeces a deixar desmoronar as coisas, é um processo.
Até àquela manhã, em que às 8h ou 9h da manhã tem esse embate com os sentimentos, não tinha noção da sua adição?
Tinha. Não tinha era noção do tamanho, que era tão voraz ou que estava a ser tão destrutivo. Os consumos já estavam presentes na minha vida há alguns anos, nunca tinham criado assim tantos danos, e deixaram de ser consumos — como se costuma dizer — lúdicos ou recreativos. Nunca usei para trabalhar ou para criar algo. Graças a Deus, senão o meu trabalho, a minha criação, ou, se calhar, a qualidade que deposito no meu trabalho estaria assente nessa necessidade. E, de forma consciente ou não, nunca usei para criar. Mas em noites, em partilhas, em momentos de amigos, consumia. Se calhar, com o tempo, comecei a perceber que muitas vezes abdicava desse momento de amigos e acabava por retomar à minha casa e continuava a consumir sozinho, mas nunca num descontrolo exacerbado. Tudo acaba por ganhar uma proporção maior, realmente, quando estava a gravar um projeto que era bastante intenso — há aqui vários fatores que acabam por influenciar. Lembro-me perfeitamente, agora olhando para trás, que, no momento em que recebo a notícia de que a minha avó faleceu, estava no carro. É a minha mãe que me liga, eu estava com a pessoa que na altura era a minha agente, recebo a notícia e não reagi durante uns cinco minutos. E a primeira coisa que faço é ligar para o estúdio, automaticamente, digo o que tinha acabado de acontecer e que não podia parar de gravar. E isto tudo sem pensar, foi um mecanismo de defesa.
Pediu para não parar de gravar?
“A minha avó acabou de falecer e eu não posso parar, vocês têm de me pôr a gravar os dias todos.” Mas isto numa coisa sôfrega, se calhar num instinto de proteção. Porque quanto mais ocupado eu estivesse, quanto mais estivesse a largar as emoções de outro personagem, quando mais densas as emoções fossem, melhor — desde que eu não tivesse de lidar com as minhas ou com o meu vazio, desde que não tivesse de lidar com aquilo que era meu.
Esse momento acontece quanto tempo depois de ter consumido pela primeira vez?
Se consumi pela primeira vez aos 23, 24 anos, até ir para tratamento, até ter um momento de esclarecimento, de pausa, foram uns sete, oito anos.
Estamos a falar de quê? Álcool, drogas?
Não é a expressão certa, mas os meus consumos sempre foram muito específicos. Sempre usei só cocaína, o álcool era só um alicerce. Se calhar acabava por, por vezes, consumir, mas não tinha vontade de consumir álcool, nunca tive vontade de consumir outras substâncias. Aprendi isto com uma pessoa muito especial: a cocaína era como se fosse o meu medicamento, que me ajudava a suportar aquilo que era o meu vazio ou aquilo que podiam ser as minhas necessidades de escape.
Mas começou assim, quando experimentou pela primeira vez?
A primeira vez foi curiosidade, não percebi o que me fazia, não percebi realmente para onde estava a ir. Percebi que me deu a capacidade de falar bastante, de me expor bastante. Se calhar ao contrário daquilo que se pensa, sou tímido ou retraído. Ou tinha aqui muita coisa que queria expor em relação a alguns vazios de infância, algum sentimento de abandono e de não pertença. E a verdade é que, de uma certa forma, acabava por conseguir largar tudo o que tinha aqui dentro.
A cocaína tornava-o mais expansivo e mais disponível para falar em relação ao que se passava aí dentro?
Sim. Cada pessoa que usa terá a sua razão, cada um de nós é um mundo muito peculiar, cada pessoa irá ter caminhos diferentes. Eu era muito por uma questão de conseguir expor tudo o que tinha aqui dentro, de que não tinha falado durante anos. A representação entra na minha vida, se calhar, até como uma forma de me salvar de tudo aquilo que eu não conseguia expor. E, na altura, os consumos de cocaína deixavam-me muito mais leve naquilo que eram os meus transtornos, as minha dúvidas, as minhas inseguranças, e acabou por ser um conforto, uma companheira durante algum tempo. É uma companhia muito solitária.
Sobretudo nos dias em que, depois de consumir com amigos, ia para casa e ficava sozinho a consumir?
Sim, e quando se começa a ter essa perceção, essa vontade, por mais que ao início não se queira bater de frente com a realidade, porque estás num processo de adição e não queres olhar para ti de frente, não queres controlar. Mas a verdade é que acabava por ser muito solitário, dentro da tua casa, dentro de quatro paredes, continuares a consumir, isolado. E há momentos muito cinzentos.
É nesses momentos que deixa de ser uma companhia confortável?
Eu próprio já não era uma companhia confortável, já tinha atitudes, mesmo no meu círculo de amigos. Há pessoas que vão poder consumir e que não têm a adição, portanto não têm o descontrolo e conseguem prosseguir a sua atividade, mas muitas vezes eu desaparecia, porque não me sentia mais em pleno para estar naquele momento, desaparecia porque queria ir consumir sozinho, porque queria fechar-me no meu mundo, queria ir para o meu lugar seguro. E esse lugar seguro é tão cinzento, tão pesado, que nada de seguro tem.
As primeiras consequências são essas, com os seus amigos, ainda antes do trabalho e da funcionalidade do dia a dia?
São alguns dos danos. É engraçado porque, quando estive em tratamento, gostei muito, para mim foi muito importante não só ter aceitado a ajuda que me deram, mas também porque o primeiro embate que tive foi: “Aqui sinto-me seguro”. Se pudesse pintar isto num quadro bonito, acho que a expressão que me saiu na altura foi como se eu fosse o Harry Potter em Hogwarts a aprender magia sobre mim próprio. Senti que tinha tempo. “OK, explicaram-me agora que eu sou adito e assim serei ao longo da minha, que isto é uma doença de emoções. Como é que isto se resolve? Agora aqui neste tempo e espaço, o que é que tenho para aprender?” E foi aí que bati de frente, pela primeira vez, com aquilo que tinham sido os meus danos no meu círculo de amizades, os meus danos familiares, monetários, físicos, morais. Porque, pelo caminho, existem tantas outras coisas que vão ganhando proporções em que és tu, mas não és tu. Não vale a pena dizermos “este não sou eu”. És, és. És tu, há uma parte de ti que tem esse tipo de comportamentos, há uma parte de ti que precisa de ser ajudada, que tem esse tipo de transtornos ou que acaba por aliar os consumos a tantas outras coisas. Portanto, és tu. És tu numa fase de descontrolo. Quis bater de frente contra todos esses fantasmas, nunca dizendo “este não sou eu”. Este também sou eu, também cometi estes atos, estas loucuras, tive estes pensamentos, tive estas alucinações, e isso foi importante para mim. E foi duro. O período de tratamento foi muito bonito para mim, mas foi igualmente duro. Depois, tudo depende da forma como tu te deixas levar e quão fundo queres trabalhar, quão honesto és numa fase dessas. Tens de esgravatar bastante para conseguir solucionar as coisas.
Era perceptível para si a forma como as coisas se iam degradando cada vez mais? Conseguia ter essa noção de que já não tinha o controlo sobre quase nada?
Tens essa noção, mas de uma forma muito leviana, de uma forma muito leve, porque quando estás em adição achas que tens solução, não tens noção do impacto real dos teus danos.
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Desvaloriza-se? Quando a família se queixava de não estar presente, por exemplo.
Há um lado que é mais rápido a arranjar desculpas. Num processo de adição é fácil arranjar desculpas. Um adito é — peço desculpa pela expressão — uma pessoa que ludibria bem as coisas. Não é que seja um bom mentiroso ou um borderline…
Mas manipula?
Sim. Entras rapidamente num processo de manipular as coisas para que possas estar bem ou que as coisas não tenham um peso tão grande ou que possas culpabilizar alguém. Esse é um dos processos de que é muito importante termos consciência — até mesmo quem possa estar próximo de alguém que está em uso ou em consumo. E não é por mal. Não estamos bem. De alguma forma, também não estás disponível para levar com aquele embate, com aquela dureza. Não queres sentir, não és capaz de sentir, não tens essa perceção. Estás adormecido. Mesmo que não a estejas a usar, a substância, de alguma forma, continua presente no teu corpo e tu estás adormecido.
Nessa altura, depois de ter perdido a sua avó, como era o seu consumo? Diário, cíclico?
Na parte final, quando aceito ajuda — acho que nunca tinha dito isto assim desta forma —, estava a gravar, dentro daquele tempo que tinha pedido para não me porem sem gravar. Estava a gravar, acabava de gravar, ia buscar para consumir — direto. Depois tem a ver com cada um: eu precisava não só de consumo como de adrenalina, tem a ver com a minha natureza. Portanto, acabava de gravar, ia buscar para consumir, começava a consumir, agarrava no carro, fazia Lisboa-Porto, Porto-Lisboa. Se fosse preciso, outra vez Lisboa-Porto, Porto-Lisboa. Se fosse preciso fazia essa viagem duas vezes na mesma noite.
Por razão nenhuma?
Porque precisava de conduzir, precisava de desgastar. E, se fosse preciso, não ia a uma velocidade realmente moderada. Precisava de não estar quieto, de não pensar, precisava de atividade. E cheguei a fazer essa viagem duas vezes. E ia gravar muitas vezes direto. Tomava um banho e ia gravar direto.
Nessa fase, antes de aceitar ajuda, tinha já pessoas a dizer-lhe: “Há um problema”?
Graças a Deus, tinha amigos que não me deixaram, independentemente das situações que lhes possa ter criado ou no que os possa ter magoado. Tenho amigos que não me largaram em momento algum. Foi pela mão de um deles que quis entrar em tratamento, pelas mãos do Luís. Foi das pessoas mais presentes neste processo, não me largou a mão em momento algum. Mesmo no dia de entrar em tratamento, em que tive receio de entrar. Foi ele que ficou responsável por muitas coisas minhas, juntamente com pessoas que me eram bastante importantes na altura. Depois há este círculo de pessoas, esta redoma de pessoas em que vais confiar — porque é um processo de confiança muito grande. Tens de te entregar, não é ao vazio, mas ao desconhecido. Mas depois há uma insegurança daquilo que deixas cá fora — o que as pessoas vão pensar, o que vão fazer —, mas na verdade tens de abdicar de tudo isso, tens de estar muito seguro daquilo que vais largar para te conseguires entregar em pleno. E, graças a Deus, tive pessoas que foram muito importantes, que continuam a ser muito importantes e que em momento algum me julgaram. Pelo facto de estares a entrar em tratamento, há um momento em que pensas que estás a ser fraco, porque te estás a render, não estás a conseguir sozinho. Pelo contrário: acho que vi depois nos olhos deles que foi, realmente, o ato mais bonito que podia ter comigo próprio, foi o ato de maior coragem, ter-me rendido, ter aceitado ajuda, ter aceitado ser cuidado e guiado por quem sabia.
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Como é que isso aconteceu, em termos práticos? Tem a perceção de que há um descontrolo já muito grande e que precisa de ajuda. Com quem falou sobre o assunto?
Não falei, acho que as pessoas foram vendo. A hipótese de tratamento surge de uma pessoa muito especial: Helena Forjaz.
Era uma das responsáveis pela produção na TVI?
Sim. E foi a Helena que, num dia em que eu estava a gravar e estava bem, veio ter comigo, sentou-me numa mesa e fez-me a pergunta: “Pedro, temos aqui a possibilidade de parares uns dias, de te podermos ajudar”.
Mas já antes tinham conversado sobre isto?
Não.
Não estranhou que tivesse levantado essa questão?
Não. Não estava à espera. Como não estava à espera e pelo tato que ela tem, pela senhora que ela é, pela pessoa com um tato muito subtil, uma generosidade muito grande — e que sempre me acompanhou ao longo destes anos, porque, ao fim e ao cabo, eu também cresci naquela casa, cresci na TVI, eles também me viram crescer, independentemente de algumas falhas, conquistas, falhas…
Já tinha tido muitas falhas nessa altura, em termos de planos de gravação?
Já, lá atrás já tinha tido, nunca com aquela regularidade, nem se calhar de uma forma tão visível ou que as pessoas realmente pudessem notar. Depois o projeto era muito importante.
Mas chegava atrasado ou não ia de todo, às vezes?
As duas coisas. E foi a Helena que me propôs nessa manhã, e eu automaticamente disse que sim. Depois fui com uma pessoa que foi imprescindível neste processo, que foi a Rita Carrelo, que era a minha agente na altura. E a Rita, sim, teve um pulso gigante em relação àquilo que era o meu mundo. Portanto, houve aqui três pilares muito importantes: um Luís Alves, uma Helena Forjaz, uma Rita Carrelo. A Rita não foi só uma agente, foi uma cuidadora. Se tive conforto e serenidade para conseguir estar naquele tratamento em pleno, foi muito devido a eles os três.
E o que é que a Helena lhe propõe na altura? Era só parar ou já apresentou um plano “chave na mão”: “Está aqui isto para onde podes ir”?
Chave na mão. Ela sabia o que me estava a apresentar. Foi um “chave na mão” para eu poder parar durante 21 dias, um ciclo de tratamento em que me davam esta aberta de 21 dias para poder parar na novela, que eles conseguiriam munir-se de certezas para que os planos pudessem corresponder a esses 21 dias.
Se não tivesse sido assim “chave na mão”, acha que depois teria começado a colocar dúvidas, “mas vou para onde, fazer o quê, durante quanto tempo, e não conheço ninguém”?
Não sei como seria se me tivessem apresentado outro plano. Sei que foi o que foi e, se tivesse sido de outra forma, não sei como seria. Sei que foi tudo perfeito, dentro daquilo que era difícil de gerir.
Começou logo?
Tive de gravar durante mais uma semana, o período de aceitação no centro de tratamento, as primeiras consultas, munir as coisas todas ao meu redor, gravar as últimas cenas que teria de gravar naquela altura para não ser falho com os planos de gravação, e depois sim.
Nessa semana, pensou duas vezes?
Não. Estava com receio, com bastante receio de para onde é que ia, mas não hesitei. Em momento algum quis dar um passo atrás ou quis desfalcar aquilo que estava a ser planeado.
E nessa semana consumiu?
Sim, consumi.
Porque estava com receio?
Por tudo. Falando com ironia, nós achamos que é a despedida, não é? Acho que fazemos a despedida, que não é despedida nenhuma, é mais um consumo ativo. Nessa semana, consumi com o receio, com a incerteza, com a sensação de que é a despedida, com todas as justificações e mais algumas que se arranjam. Quando entro em tratamento, faço esses 21 dias iniciais.
Como é que foi o primeiro dia?
O embate foi muito duro.
Foi para uma clínica?
Sim, um centro de tratamento, uma clínica. Quis entrar com o Luís, este meu amigo, que me foi deixar à porta, e lembro-me de que começou ali uma roda viva de emoções quando entrego o meu telefone ao Luís e é aí que tenho um baque, começo a chorar e digo-lhe: “Tira-me este monstro da minha mão”. Porque o meu telefone era algo que me consumia, tudo o que estava pendente, as mensagens, as falhas em relação ao plano de gravações. Aquilo, na verdade, era o mundo, e eu precisava de apagar, de desligar, de desconectar com aquilo que era o meu mundo. Precisava de entrar em pleno. Cada um terá a sua fórmula, a sua reação, mas eu entrei tão nervoso que lembro-me de que na ficha que assinei — e isto foi em 2018 — assinei “Pedro Barroso” e na data “2019”, já estava um ano à frente. Estava ciente de que queria entrar, mas estava num processo de ansiedade grande.
Passou ali de forma mais ou menos anestesiada por essa espécie de check-in.
Sim. E quando chego ao pátio onde estavam os meus colegas de tratamento, há aquela sensação de “para onde é que eu viu, onde é que me vim fechar?”. Obviamente que fazes uma análise muito rápida — cada um de nós terá a sua história, a sua capacidade de analisar as coisas ao seu redor, a minha costuma ser rápida e eficaz. E quando olho ao meu redor, um, dois, três, quatro, cinco, seis… Dezessete pessoas aqui. Depois levam-me para um quarto e, quando entro naquele que seria o meu quarto e vem uma pessoa que me é muito querida até aos dias de hoje, que foi o meu guia, o André, e me diz “esta vai ser a tua cama, precisas de alguma coisa?”, eu fico a olhar para ele e desabo a chorar, numa convulsão, como se fosse uma criança. “Onde é que eu estou?” Ele dá-me um abraço e é quando ele me toca, quando me dá aquele abraço, que eu percebo que há alguma coisa em mim que se está a desconjuntar. E aí percebo que não estava há muito tempo permeável a que vissem uma fragilidade minha e não estava há muito tempo permeável a emoções. Portanto, foi naquele momento que eu levei também um baque muito grande, quando ele me abraça e me diz: “Precisas de alguma coisa?”. Acho que se dá ali um processo de entrega. Todos esses passos, todos esses momentos foram muito importantes. Desde o primeiro momento — “para onde é que eu vim, o que é que eu vim para aqui fazer, como é que isto se processa?” Já tinha ouvido histórias de tratamentos, há uns que têm de fazer coisas completamente diferentes, pensei: “Será que agora vou trabalhar para o campo, será que tenho de trabalhar numa cozinha, o que é que vai acontecer neste tratamento, tenho terapias, não tenho terapias? Estão aqui 17 pessoas, este fala alto, este fala muito alto…” Há ali uma análise muito grande, e eu: “Para onde é que eu vim parar?” E acho que é com o André que tenho o primeiro momento de me voltar a humanizar e dizer “ok, então é aqui, aqui e agora que tenho de fazer as coisas”. Mas depois olho ao meu redor. De repente, abdiquei da minha casa, da profissão, de ser ator, de trabalhar em televisão, a comodidade toda, os meus luxos. De repente estás numa camarata com beliches, com mais quatro pessoas, com um armário pequenino onde podes ter dois pares de ténis, três pares de calças. Tens a tua mesinha de cabeceira dividida com mais alguém, o quarto é frio, ou é mais frio do que a tua casa. Percebes claramente depois que tens de fazer a cama… “Ui, estou na tropa.”
E no meio disso entrou a vontade de consumir, naquele primeiro dia?
Não. Isto é muito importante: quando se está em tratamento, ninguém te obriga a ficar lá. E assisti a processos dolorosos. Se quiseres sair, és livre.
Viu isso acontecer com outras pessoas?
Sim. E é duro de ver, porque percebes que as pessoas não estão a ser capazes. Há picos, há momentos. Acho que só tive isso passado um mês e meio, dois meses.
Não teve isso no primeiro dia, no meio daquele turbilhão de emoções, não teve aquela ideia de “se calhar não quero sentir isto”?
Não, não tive. Acho que me entreguei bastante àquilo que era o processo de tratamento. Tive mais tarde, quando comecei a fazer alguns trabalhos que são bastante duros. E depois tens de partilhar, que é muito importante. Quando tens essas vontades de consumo, achas que não foram uma vontade de consumo, mas, à noite, quando tens um pico de adrenalina ou quando tens um descontrolo, acabas por não conseguir analisar de início o que é, mas, quando partilhas, vês que realmente foi uma vontade de consumo. E achas que não deves partilhar, porque achas que é uma coisa que não deve ser partilhada ou porque sentes que és fraco por teres tido essa vontade. Pelo contrário: é muito importante que o partilhes e aprendas de partilhar cada sensação, cada emoção que tens. É isso que aprendes ali. Aprendes que há tantas outras pessoas iguais a ti e que não é por terem um consumo de outras substâncias que são diferentes, ou por terem tido outro tipo de comportamentos, se calhar comportamentos muito mais erróneos do que os teus, que são diferentes. Somos todos iguais, a sensação, as emoções, são todas as mesmas. Como é que tu as controlas, como é que tu as vives, ou a tua incapacidade de lidar com elas, isso é realmente aquilo que nos une. E, de repente, passas a fazer parte de alguma coisa, passas a não ser único, passas a não sentir-te sozinho. E isso foi muito importante, encontrar um grupo — obviamente depois com pessoas que, pelo caminho, vais traçando para serem aquelas de quem és mais próximo, com quem vais criando o maior elo de amizade e, se calhar, também aquelas com quem te vais conectando mais. É com elas que vais partilhando, estabelecendo uma ligação maior, dentro daquilo que são os teus trabalhos. Porque os trabalhos são, realmente, muito pesados.
É preciso ir olhar para tudo o que se fez, e aceitar o que se fez, mas é também preciso olhar para tudo o que gerou a adição, é isso?
Precisas de ir bem lá atrás.
E o objetivo é fazer as pazes com isso?
É reconheceres, não deixares nada para trás, não esconderes de ti próprio, não esconderes depois, obviamente, dos outros, porque os trabalhos são partilhados. Mas não esconderes de ti. E também não vão deixar que tu escondas muito, seria difícil. Depois é a profundidade a que queres ir e falar sobre as coisas, a honestidade que queres de ti próprio.
Não dá vergonha partilhar algumas coisas que se fez?
Dá vergonha, sentes-te humilhado por ti próprio, sentes-te incapaz, sentes-te triste com aquilo que criaste, sentes que as pessoas a quem criaste danos merecem melhor. As pessoas podem não te desculpar. Isso é muito importante, aceitares que as pessoas podem não desculpar, mas que tu te desculpas a ti sobre os teus atos e é por aí que queres caminhar. Mas, para isso, precisas de reconhecer — esse trabalho de que eu falava, dos danos que causamos, monetários, físicos, familiares. Esses trabalhos não só são escritos — e são 25 exemplos de sete, oito páginas, são pequenas bíblias sobre nós próprios, são muito específicos, com datas, locais, coisas que fizeste. Sem estares à espera, depois há um dia em que levas com um embate em que tu próprio vais ler os teus trabalhos, isto já depois de os teres feito e já estares noutro trabalho, portanto é tudo muito segmentado. Já passaste à frente, achas que aquela parte está cumprida e há um dia em que estás em grupo e a tua terapeuta dá-te os teus exemplos para leres em voz alta. Portanto, vais lidar com a tua verdade, em voz alta, para os outros. E é não só ouvires-te como deixares que os outros te leiam, não só para que te possam olhar e guiar, mas que para eles também possa ser um exemplo, para que eles possam sentir uma vez mais que também pertencem algo, que não estão sozinhos naquilo que fizeram. Eu não faria isto sozinho, não faria isto sem as pessoas que estiveram comigo no tratamento, aqueles que foram os meus colegas de tratamento. Seria impossível, não seria o mesmo, não teria a mesma qualidade. E lembro-me de que então me dão os 21 dias de tratamento e, ao final desses 21 dias, temos uma reunião: eu, a Rita, a Helena.
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Cá fora? Saiu do centro de tratamento ou foi lá?
Lá. E perguntam-me: “Pronto, vão acabar os 21 dias, vamos voltar a gravar daqui a uns cinco ou seis dias, como é que queres fazer? Queres sair e ter consultas, findamos aqui o processo? Como é que te sentes?”. E eu, um bocado a medo, mas era aquilo que sentia, perguntei se podia ficar lá. Ninguém estava à espera disso, que eu perguntasse se podia ficar, e lembro-me das lágrimas no rosto da Rita e da Helena.
De alívio?
De surpresa, de alívio. Eu estava realmente muito feliz de ali estar. É estranha a expressão, há pessoas que estão contentes, há pessoas que estão em paz, eu estava feliz de ali estar. E sentia que o processo nem sequer estava a meio. Quis lá ficar, foram cinco meses. Depois, obviamente que esta condição de lá ficar e ter de gravar foi um peso muito grande. E foi aí que veio um compromisso gigante, não só da parte das pessoas com quem eu trabalhava, até em termos de ir de uma forma sigilosa uma pessoa buscar-me todos os dias para eu ir às gravações. Levantava-me mais cedo do que toda a gente, deitava-me mais tarde do que toda a gente, portanto tinha não só o compromisso de fazer todos os trabalhos que envolviam o tratamento, com tempos, com regras, como começar a estar apto outra vez para gravar, no ritmo em que eu estava a gravar outra vez, 20 cenas por dia, sem comprometer o personagem. Estar em tratamento envolve de tudo. Vou pintar uma das partes apenas: se calhar, levantar-me às 6h da manhã, zona de Sintra, muito frio, ir para uma lavandaria onde era tão frio, tão frio, e simplesmente treinar, porque não podemos ter pesos, não podemos ter nada, só com o peso do corpo, numa lavandaria com boxers, com meias por todo o lado. Treinava ali com tudo cronometrado, 15, 20 minutos, saía a correr, ia tomar banho, a seguir ia lavar casas de banho, para depois poder tomar o pequeno almoço.
Era uma das suas funções no centro?
Sim. Casas de banho ou o quarto, ou limpar o pátio para depois ir gravar. Portanto, antes de ir brilhar para a TVI, estava a limpar casas de banho. E não tem mal nenhum. O glamour da minha vida. Foi aí que eu fui parar. Mas era muito feliz a fazer isso.
No estúdio, poucas pessoas sabiam? Os seus colegas sabiam?
Ao início acho que poucas pessoas sabiam e depois, com o tempo, foram percecionando. Até mesmo da parte dos meus colegas, acho que houve um alívio, também, conseguir desculpar-me perante eles. Porque eu falhei com eles, falhei com a equipa técnica, deixei-os à espera. Agora percebo, se alguém falhar comigo, hoje em dia. Uma das coisas que aprendi foi a ser mais empático com os problemas dos outros, mas se alguém falhar comigo, se não me apresentarem uma justificação, é estranho, ninguém gosta. Portanto, eu percebo perfeitamente o impacto, o tempo que lhes empatei e lhes fiz perder quando eles estudaram 20 cenas, se calhar, para gravar naquele dia e eu não apareci. Comprometi o trabalho de muita gente, comprometi vidas e não só. Porque a nossa vida não é só estar nisto, existem tantas outras coisas para além daquilo que vivemos em estúdio, independentemente de, muitas vezes, serem 12 horas. Mas depois acabei por ter ali muita empatia e muito boa energia da parte das pessoas que me rodeavam e com quem trabalhava diretamente.
Mas houve também pessoas que perdeu irremediavelmente?
Sim, há essas pessoas que se perdem irremediavelmente, faz parte do processo. E, com o tempo, percebes que, se calhar, mais vale não correres atrás porque as pessoas têm o tempo delas. Que importa tentares pedir desculpa se as pessoas não quiserem? Faz parte, nem toda a gente tem de aceitar, nem toda a gente tem de compreender, nem toda a gente tem de perceber que, por um momento, falhaste, estavas doente de emoções e que isso, por um lado, acaba por ser camuflado com consumos — e esses consumos levam-te a outro tipo de comportamentos, porque só te queres esconder. Ninguém tem de perceber isso. O mundo não tem de ser simpático contigo porque tens uma doença — e é uma doença, a adição. Mas o mundo não tem de ser simpático contigo. E tens de aprender a conviver com isso. É duro. Fizeste o teu processo de revolução, a tua tentativa de paz? Sim. Tens de seguir em frente. Vão ficar lacunas, vão ficar saudades, vai ficar a tristeza de aquela pessoa te poder dar ouvidos durante um segundo ou poder ser empático contigo, ou poder ouvir a tua dor, o teu processo ou aquilo que tu, pelo caminho, aprendeste ou reconquistaste em ti próprio. Se calhar achas que merecias, mas se calhar a outra pessoa não tem esse tempo, não tem esse espaço, não quer. E tens de aprender a gerir isso.
Quem é a pessoa que sai daquele centro de tratamento cinco meses depois?
Ao contrário, se calhar, da resposta que é esperado ouvir, não sais curado de nada, não sais pronto para lidar com o dia a dia. Ganhaste ferramentas, paz, esclarecimento, mas não sais curado. Saí um pouco mais preparado em relação àquilo que eram as minhas emoções, o meu dia a dia. Até porque, por um lado, independentemente de ter sido muito duro, tive essa sorte, de começar a estar em tratamento e sair mais vezes — porque há esse processo de começares a sair ao fim de semana, ires a casa. Independentemente de ser em gravações, eu comecei a fazer isso, a lidar com algumas emoções estando a gravar com os meus colegas, com incertezas, com olhares, conseguia ter essa análise um bocadinho mais cedo. Mas era num ambiente de trabalho, portanto, tudo aquilo que seria regressar à minha casa, à minha rotina, aos meus hábitos, ao meu vazio… porque a verdade é que eu estive sempre ocupado. Estava em tratamento, estava ocupado. Estava a gravar, estava ocupado. E era dentro das minhas quatro paredes, em casa, que eu tinha deslaçado o mundo. Da mesma forma que existia aqui uma compreensão muito maior, um aprendizado maior sobre mim próprio, já sabia mais “magia” sobre mim, ao mesmo tempo havia uma perceção muito grande de que aquilo que tinha feito não me dava certezas de nada naquilo que iria enfrentar. Portanto, acabava por me causar algum receio. Mas saí dali uma pessoa não completamente diferente, mas feliz. Sorria, estava muito mais predisposto. Porque obviamente aconteceram aqui muitas coisas pelo caminho, enquanto estava a gravar. Estava em tratamento quando voltei a aceitar afetos, é quando entra um afilhado na minha vida. Acabou por ser um ano incrível porque é nesse ano que ganho os quatro prémios para melhor ator. Há ali muita coisa que acontece ao mesmo tempo que estou em tratamento que é quase a prova de que por estar ali, estar comprometido, as coisas boas acontecem. Há ali um processo muito bom, quase de troca, de balanço daquilo que estás a perder por um lado, mas estás a ganhar por outro, aquilo que estás a dar tem um retorno. Mas depois, quando realmente saio para o meu mundo, aí dá-se um baque muito grande.
Como é que foi passar a primeira noite em casa sozinho outra vez, naquelas quatro paredes que tinham para si toda uma memória de algo que estava a tentar ultrapassar.
Lembro-me de que ao início equacionava muito bem os meus dias. Sou muito regrado. Todos os dias acordo às 6h20 da manhã para ir treinar e acho que essas regras, que adquiri no tratamento, foram muito importantes, o acordar sempre à mesma hora, ser altamente meticuloso. A rotina e as regras não me deixam ter brechas para cair. Foram coisas que aprendi e que foram muito importantes, altos alicerces para que pudesse caminhar de forma segura. Nos primeiros dias em casa estava muito bem munido do que tinha de fazer, quem tinha de contactar, para onde ia, para onde não ia. Também tinha os meus amigos e a minha agente, que estavam sempre muito próximos de mim, não me deixavam ter espaço vazios. Depois acho que é com o tempo. Quando decido aceitar um projeto, acabou por ser um erro, não ter dado aquilo que era um processo de pausa, pausa para mim. Uma coisa foi o meu processo de tratamento, em que, em parte dele, os quatro meses, também estava a gravar. Portanto, fui um Pedro operacional enquanto estava a gravar. E rapidamente, de um processo para o outro, quando volto para casa, volto a aceitar um projeto, uma novela. Mais tarde revejo-me nessa novela e não estou feliz.
Porquê?
Existem tantas razões. Não era o momento, vamos pôr dessa forma, não falando aqui daquilo que possa ter apreciado ou não do projeto. Não era o momento. E não me vejo feliz com aquilo que posso dar, não me vejo feliz com aquilo que acabavam por ser os meus objetivo profissionais, não me vejo a superar-me, não vejo que aquilo que me tinham apresentado pudesse na altura ser para onde eu pudesse ir. E, de repente, vejo-me embrenhado numa coisa de onde não consigo sair.
Isso puxou-o atrás?
Isso fez-me recair. Nessa altura, recaio. É importante falarmos das recaídas, as pessoas pensam que vais para tratamento e não há recaídas. E as recaídas são duras. Eu recaio quando tinha nove meses do tratamento, a contar do início. Nessa altura, acabo por recair e aí lembro-me perfeitamente: estava em casa, numa noite, a tentar dissercar os textos, numa luta gigante, a pensar “como é que eu dou a volta a isto?” E é outra vez naquele limbo, em casa, na dúvida, na minha sala, nos meus hábitos, e quando começo a dar a volta às coisas e já estava a ficar sôfrego, outra vez a colapsar em termos de emoções. Porque não estava a conseguir sair, não estava a conseguir ser compreendido pelas pessoas a quem dizia que não estava feliz.
Pensou ligar a alguém antes de consumir? Ou a urgência de consumir sobrepôs-se?
Acho que essa vontade de consumo não vem no momento. Não é que venha planeada, como se costuma dizer.
Vinha a lidar com ela?
Vinha a lidar com ela. É uma coisa muito silenciosa de início, mas começas a perceber durante um dia, dois, três, até que um dia, se calhar por um acumulado de situações, não pensas duas vezes. E lembro-me de que, na altura, quando faço esse telefonema, tive pela primeira vez uma sensação de descarga, de adrenalina, de não conseguir controlar o meu corpo. Estive, para aí, 10 minutos assim. E era como se tivesse ativado alguma coisa. Ainda não tinha consumido e o meu corpo estava como se eu não o conseguisse controlar.
No telefonema em que pede droga para consumir?
Sim. E o meu corpo entra num processo de descarga de adrenalina que eu não conseguia controlar.
E teve a mesma sensação quando consumiu, efetivamente?
Não. Não me recordo da situação. Mas lembro-me de que esse foi um baque muito grande.
Só a perspetiva de.
Sim. E lembro-me de que não quis parar. Depois depende de cada um. Não há justificação. Obviamente, isto já teve a ver com vários meses aqui a tentar arranjar soluções, eu não me sentia nem satisfeito nem realizado profissionalmente, nem feliz, nem compreendido naquilo que estava a ser o meu processo. E há ali um momento em que já tinha rejeitado, antes desta proposta, duas outras propostas, e pensava “eu podia estar tão bem do outro lado do mundo”. Na verdade, uma delas era incrível e eu rejeitei por insegurança, porque, por um lado, achei que devia alguma coisa às pessoas que me tinham ajudado durante o processo. E este processo e este projeto era para eles. Por outro lado, achei que devia estar cá e que estaria mais seguro. E a verdade é que as coisas foram o que tinham de ser, senão não teriam sido dessa forma. E não é porque sejas mais falho ou menos falho, ou que sejas mais capaz ou menos capaz. O facto de teres uma recaída é muito importante, porque uma recaída é dura. De repente, sentes que um investimento de oito meses, um investimento tão grande… e aí sim, é uma montanha que te cai em cima. Em cima de ti. Porque escondi durante o início, nos primeiros tempos. Mas é uma montanha que te cai em cima.
Porque não é só esse dia?
Não.
Quando se cai, cai-se a sério?
Sim. Explicam-te que é como se fosse o pavio de uma vela: quando a voltas a acender, a vela já não volta ao início. Acende exatamente onde ficou. Portanto, tu não voltas a consumir só um grama: quão pesado era, volta a ser. Acendes outra vez um barril de pólvora.
Quanto tempo é que conseguiu esconder?
Não sei se consegui esconder um mês, um mês e meio foi muito. Até começar a balançar as coisas todas outra vez e depois entrar ali num processo crítico e voltar falhar, a pedir para sair do projeto. Depois há umas tantas outras coisas que acontecem pelo meio que também não é por aí que irei nesta conversa, mas aquilo que posso dizer é que, no meio deste processo todo, quando finalmente posso dizer que não tenho mais de gravar naquele projeto, no dia em que me dizem isso, independentemente do mundo que me ia cair em cima, independentemente de me terem ouvido ou não, a sensação que tive é que estava aliviado. Aliviado. E que aquilo era uma coisa com a qual não estava a conseguir lidar, com aquelas emoções. E decido, nesse dia, comprar uma viagem, é quando embarco para o Japão para fazer uma caminhada e acho que é quase como se tivesse solucionado alguma coisa, independentemente de tudo. Estava sôfrego. Isto significa aquilo que te ensinam no tratamento: vais meter-te em situações, é bom que avalies bem as situações, é bom que vejas as bandeiras vermelhas pelo caminho. Passas por uma, passas por duas, não passes muitas mais.
Porque não vai correr bem.
Não vai correr bem. Talvez devesse ter dado um tempo. Talvez devesse ter feito tantas outras coisas, por um lado as coisas foram assim, por um lado foi importante recair para perceber até onde é que conseguia ir. Para perceber até onde é que conseguia assumir. Para perceber se era capaz de estar menos feliz a trabalhar, simplesmente só a cumprir um personagem, para perceber, realmente, o que é que tinha dentro de mim para dar e o que é que também conseguia suportar.
Foi a única vez que recaiu?
Não.
Como é que é são esses processos? De cada vez que acontece é pior? A culpa de o ter feito vai-se agravando ou também cria ferramentas para evitar que isso o atrase ainda mais?
Vou para o Japão, vou para o Dubai, faço um retiro, passei ali um ano a não querer regressar a Portugal. A não querer fazer as pazes. Não era comigo próprio, era com aquilo que se tinha passado aqui. E queria ir para fora. Mas, depois, quando regresso a Portugal, há ali um processo em que volto a consumir. E esse processo, de cada vez que eu voltava a consumir, era igualmente duro, porque não fazes as coisas de uma forma ligeira. Não há nada de prazeroso. Há aquele primeiro momento em que consomes e podes ter um pouco de prazer, mas, a partir daí, no rastilho que acendes, não há nada de prazeroso. Isto sou eu a analisar-me, a minha cabeça já entra num limbo em que já se abstrai de tudo. Todas essas vezes que consumi eram para entrar num mundo absorto daquilo que se podia rodear de mim, eu a não querer pensar, não querer sentir, não querer lidar, não querer ouvir, e esse mundo volta a ser completamente danoso e volta a ser cinzento.
Isso significa que a urgência de consumir existe sempre?
Não.
Não é uma luta permanente e diária?
Não é sempre com as mesmas coisas, não. Mas é uma luta diária.
A urgência de consumir não está lá necessariamente todos os dias?
Não.
Mas vai estando, ou consegue-se arrumar de uma vez?
Tens dias em que consegues arrumar. Tem a ver com tantas coisas, acima de tudo com o teu equilíbrio emocional, do que te rodeia, com os teus compromissos, com as tuas rotinas, tudo importa. Cada vez se fala mais neste 360º em relação à saúde, as tuas regras, os teus horários, aquilo que comes, aquilo que bebes, quem te rodeia, tudo te pode influenciar. Há dias em que posso estar muito bem, tranquilo, mas que posso estar com excesso de trabalho e, de repente, pode acender aqui alguma coisa. E eu lido com isso. Lido com isso diariamente. Se tiver excesso de trabalho, excesso de informação, se não estiver diariamente altamente disciplinado naquilo que estou a fazer, de repente essa luz acende-se. A luz acende-se como uma solução de alguma coisa. Porque é um padrão. Era uma salvação de alguma coisa, portanto tenho isso na minha matriz.
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Como é que aprendeu a fugir dessa luz? Ou a desligá-la outra vez?
Aprendi a falar sobre ela. Ou com a pessoa que está ao lado, ou com pessoas que me são queridas e a quem aprendi a ligar. Ao início não é fácil confiares. É alguém dizer assim: “Estou a passar mal, estou com vontade de consumir”. Mesmo às pessoas que estão ao meu lado, mesmo à Mariana, é dizer: “Estou com vontade de consumir”. E ao início senti-me fraco por dizer isso. Porque alguém que está contigo pode pensar que é um problema que está arrumado. Não está. Até que essa pessoa possa perceber que não está. Não está.
E não há do outro lado, às vezes, seja quem for, uma ideia de: mas o que é que tu queres mais? Tens trabalho, tens família, tens um bebé maravilhoso, queres consumir porquê? Porque é que queres estragar isto tudo?
Pode haver. Como lá atrás me diziam: “Mas tu tens tudo. Tens casa, tens carro, tens aquilo que tu quiseres, és um dos melhores atores da tua geração, do que é que precisas mais? Estás vazio com o quê?” Não tens de ser compreendido. Isto não tem uma razão, não é que tu precises de algo mais. Se calhar até precisas de menos, precisas de menos informação, precisas só de te refugiar. Eu quando consumo é como se eu diminuísse 30 vezes o meu tamanho. É como se fosse uma criança que se está a encolher. Vamos imaginar o Pedro como se fosse uma criança, o Pedro com, sei lá, oito meses, como o meu filho tem agora. Que está aninhado nele próprio, com frio, inseguro. É esse o sentimento. Tem a ver com insegurança, tem a ver com insatisfação. Há tantos sentimentos que te podem levar a que essa vontade de consumo realmente seja presente e seja forte.
Disse: “Eu quando consumo”, no presente. Isso significa que sabe que isso é uma possibilidade sempre presente?
Aprendi isto desta forma: nunca vou falar dos consumos no passado. Ou nunca vou falar da adição no passado. Ou nunca vou falar disto no passado. Isto pode-me acontecer e eu tenho de estar sempre alerta. Continuo a ser um adito em consumo porque percebo que a minha forma de trabalhar é altamente aditiva. Isto explicaram-me no tratamento: uma das formas como acabo por compensar, se calhar, algum tipo de vazio, alguma coisa que possa ter, é a forma como trabalho, largas horas, ou querer ir para um projeto e querer ir para outro e ser tão obstinado pelo trabalho.
Para ocupar o espaço vazio.
É. É uma forma de consumo. Portanto eu consumo. É estranho, mas é verdade.
Não é cocaína, são outras coisas.
Sim. Estamos a falar, no fundo, daquilo que acaba por ser a minha forma de gerir a minha adição. E tenho de estar sempre em alerta.
A sua vida mudou muito nestes últimos anos. Saiu de Lisboa, está numa aldeia a fazer coisas diferentes, em áreas que não têm nada a ver com a televisão, algumas delas, tem um bebé de oito meses. Isso também é a sua forma de garantir que aquele passado não volta?
Não foi nada programado. Acabou por acontecer.
Não foi uma fuga?
Não. Aconteceu em tempos de pandemia. Nós não queríamos ficar em Lisboa, já tinha passado a primeira parte do confinamento, na altura em que estava a gravar a novela do Golpe de Sorte, e acabámos por ficar ali. Mas na segunda parte do confinamento já tínhamos vindo aqui a este cantinho mágico na aldeia, que na verdade era a casa da mãe da Mariana, e eu tinha gostado muito. Ao contrário daquilo que costumava ser comum — gosto muito mais da zona costeira, da zona de praia onde possa ir surfar —, houve alguma coisa que me fez sentir quase como uma bolha de oxigénio gigante ali e em que eu conseguia respirar. Decidimos ficar ali durante a segunda fase do confinamento e fomo-nos apaixonando por aquela zona. Surgiu, à posteriori, a possibilidade de recuperarmos um espaço muito maior, numa quinta, fomo-nos apaixonando e as coisas começaram a crescer ali. Ou seja, não foi uma fuga, foi uma coisa que foi acontecendo. Se me faz habitar uma outra energia, é verdade. E isso eu aprendi. Não era por estar no Japão ou estar no Dubai que conseguia fugir de uma vontade de consumo ou de uma adição. Estava no Japão e as coisas podiam vir ao de cima na mesma. Mesmo no Dubai, quando estava lá a viver e a trabalhar. Queres mesmo consumir, vais fazer os quilómetros, dás a volta ao mundo, se estiveres obstinado. É dessa forma que penso muitas vezes quando estou cansado com alguma coisa ou vou deixar para amanhã alguma responsabilidade. Muitas vezes vou buscar os meus erros lá de trás e a forma como pensei quando estava em estado de adição para realmente conseguir solucionar as coisas. O estar ali traz-me uma outra energia, trouxe-me uma bênção bonita na vida. Continuo aqui ligado à televisão. Foi um tempo que também quis dar a mim próprio. Tive receio durante este ano de dizer alguns nãos. Mas senti que não era o momento e que queria explorar outras coisas. Queria conseguir cimentar algumas coisas em relação a mim próprio enquanto empresário, dar uma vida consistente a projetos nossos, ligar-me a outro tipo de energia. Aquele cantinho, o Freixo e as pessoas dali, voltaram a humanizar-me. Agora entro em Lisboa e sinto quase como se o meu instinto animal se ativasse, entro com tudo cronometrado. Entro em casa, saio, trato das coisas todas. Não sei como será agora quando tiver de voltar a gravar. Um dia de cada vez. Mas ali tenho sido muito feliz, não foi uma fuga de nada porque também aprendi que seria um erro achar que estava a fugir de alguma coisa só por uma questão de distância. Porque está tudo aqui dentro, não é?
Acha que a sua adição fez com que, irremediavelmente, não venha a tornar-se o ator que poderia ser?
Não.
Não perdeu esse tempo?
Perdi tempo. O tempo não recuperas.
Mas ainda está lá?
O tempo não recuperas, mas a minha energia e a minha essência enquanto ator estão aqui. O rasgo que tenho para dar está aqui. Existirá um outro tempo, existirão outras oportunidades, e gosto de pensar, ao contrário daquilo que disse lá atrás, que não estava a meio do caminho, que neste caso já estou a meio do caminho. Existem aqui muitas coisas boas para conquistar e acho que a prova disso foi também neste meu regresso, quando regresso à televisão, com muitas dúvidas, quando volto a representar e foi um processo de muitas dúvidas: “Será que sou capaz de voltar a dar esta qualidade de emoções?”. Quando faço o projeto na SIC, existia um compromisso muito silencioso, só comigo próprio, de que gostaria de estar outra vez nomeado para melhor ator e ganhar outra vez o prémio. Acabaram por ser aquelas vitórias que tens contigo próprio, e acabou por ser essa palmadinha nas costas a mim próprio, o meu compromisso, a minha fase de superação por ter voltado a conseguir. E tive muitas dúvidas: se queria, se conseguia, se seria capaz. Lembro-me dos primeiros dias, dos primeiros ensaios, fui para casa a chorar a dizer “não consigo fazer isto, estou a enganar toda a gente, não consigo”. E quando começo a arranjar soluções pensava: “Eles vão achar que eu sou louco. Ou que sou maluco. Vou tirar os dentes, quero ir dormir para o estúdio, quero ir dormir para a sucata…” Entre o que pode ser o lado da adição, a minha loucura, ou lado de como trabalho, há aqui coisas muito boas. Em relação à minha carreira, vamos pensar que já estou a meio, mas tenho objetivos grandes. Importa que eu consiga verbalizar isto desta forma: tenho objetivos grandes. Acho que tenho de respeitar o tempo dos outros, o tempo que as coisas demoram a regenerar, mas começa a surgir dentro de mim a vontade de regressar. Estes dois anos foram muito bonitos, foram muito bons, foram muito sólidos para mim. Não só enquanto Pedro, ter outra energia, outros saberes, conhecer-me enquanto Pedro pai, Pedro numa relação de dois anos. E tem sido um processo muito bonito.
Agradecimentos: Pestana Hotel Group
“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças. Pode ler aqui as entrevistas anteriores:
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