O ritmo de vacinação em vários países europeus como a Alemanha, Hungria ou França está a abrandar, mas Portugal está em contraciclo na Europa — a administração de vacinas continua a aumentar significativamente nestes últimos dias, com o coordenador da task force a alertar para a escassez de imunizantes. Esta terça-feira, Gouveia e Melo deixou mesmo claro que ainda não há em quantidade suficiente “para milhões de pessoas”.
Com o aparecimento da variante Delta, mais perigosa e mais transmissível, os governos europeus pretendem acelerar as campanhas de vacinação para atingir a imunidade de grupo o mais cedo possível, mas alguns estão a ter dificuldades manter um ritmo acelerado — em alguns casos, devido à rejeição do imunizante por parte da população. A inoculação obrigatória, já admitida por Emmanuel Macron, poderá ser a solução, mas vários estados estão reticentes em adotar esta medida, que poderá colocar em causa alguns direitos constitucionais.
Os números divulgados no Relatório de Vacinação Contra a Covid-19 publicado esta quarta-feira pela Direção-Geral da Saúde (DGS) mostram que 64% dos portugueses já tomaram uma dose da vacina, enquanto 47% já completou o esquema vacinal, o que está acima da média europeia. Neste momento, de acordo com a base de dados our world in data, a 56,4% dos habitantes da União Europeia (UE) já lhes foi administrada uma toma do imunizante e 44,1% já estão completamente imunizados.
Na população com mais de 18 anos, a diferença entre Portugal e a UE ainda é maior. De acordo com os últimos dados disponibilizados pelo Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC, sigla em inglês) — que não estarão tão atualizados como os do relatório de vacinação nacional –, a 76,6% dos portugueses adultos já tinha sido administrada pelo menos uma dose do imunizante, enquanto na Europa a percentagem de população adulta inoculada no mesmo período situava-se nos 67,4%. No que diz respeito à segunda dose, em Portugal, 55,9% da população adulta já estava completamente imunizada, ao passo que a média europeia estava nos 51,1%.
Estes dados não mostram, no entanto, o esforço empreendido nos últimos 30 dias pelos diferentes países europeus. Por exemplo, a 18 de junho, a Alemanha tinha 57,9% da sua população adulta com uma dose da vacina, enquanto Portugal tinha 52,8%; um mês depois, 70% dos alemães com mais de 18 anos levaram uma toma do imunizante, em comparação com 76,6% dos portugueses.
França também tinha 54,4% da população adulta com uma dose a 18 de junho (mais do que Portugal), número que aumentou em julho para 70,9%, estando, agora, abaixo da percentagem portuguesa. A Hungria — considerada uma das campeãs da Europa da vacinação em meados do mês passado —, registou um aumento tímido de vacinados com mais de 18 anos com uma toma do imunizante. Se em junho 66,2% dos húngaros adultos tinham levado uma dose da vacina, em julho são 68,6% — estando agora abaixo de Portugal.
Em rota inversa com a Europa também está Espanha, que tem registado um aumento das taxas de vacinação constante. Atualmente conta com 73% da população adulta com a primeira dose da vacina, sendo que 55,9% está completamente imunizada.
“Em Portugal, há um historial de convivência positiva com as vacinas”
Miguel Castanho, bioquímico e investigador do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, explica ao Observador que em Portugal “há uma boa relação com as vacinas”. “Nunca houve uma relação traumática, há um historial de convivência positivo”, frisa, acrescentando que o país sempre reconheceu que a “vacinação se faz em prol da saúde pública”. Também aponta que Portugal foi um “país pobre” no último século e que as “condições precárias”, que andavam a par com pouca instrução, faziam com que as pessoas duvidassem menos daquilo que os médicos lhes comunicavam — característica que permaneceu ao longo dos anos.
Posição parecida tem Luís Graça, imunologista do Instituto de Medicina Molecular. Ao Observador, indica que Portugal tem “tradicionalmente uma compreensão muito boa das vantagem da inoculação”. Na origem desta aceitação, está “o Programa Nacional de Vacinação”, que é “seguro, transparente e bem implementado” e que explica uma maior adesão dos portugueses à vacina contra a Covid-19.
Segundo Miguel Castanho, houve também uma comunicação “bastante transparente” — e não só por parte do Governo, mas igualmente pela informação transmitida pelos meios de comunicação social e por “diversas partes”. “Houve sempre um canal aberto, há muita informação, as pessoas nunca tiveram a sensação de que algo estava a ser escondido“, defende o bioquímico. Apesar de muitas vezes até se “falar demais” sobre o assunto, “a maior parte das pessoas, depois de ouvir toda a gente e todos os prós e contras, decide positivamente a ser vacinado”.
Além disso, o facto de Portugal ter “passado uma fase muitíssimo má” da pandemia — entre janeiro e fevereiro —, demonstrou o “perigo real” do vírus. De acordo com Miguel Castanho, as pessoas sentiram “na pele” o quão “perigosa” a doença pode ser.
Francisco Antunes, infecciologista do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, também assinala ao Observador que a “gravidade” da situação pandémica “assustou muita gente” e fez com que muitos percebessem os impactos positivos da inoculação. O especialista também destaca que os portugueses não querem voltar a viver um “confinamento” e a sofrer as “restrições à circulação” — e as vacinas são um mecanismo para evitar que isso possa voltar a acontecer.
Por todos estes motivos, defende Miguel Castanho, os movimentos antivacinas têm pouca adesão em Portugal. “O terreno não é propício para que estes grupos se desenvolvam”, reforça. Adicionalmente, Francisco Antunes aponta que no país nunca houve “nenhum movimento negacionista” organizado que fosse capaz de mobilizar a opinião pública: “Não há fio condutor. São poucos aqueles que saem às ruas para protestar contra as vacinas”.
Alemanha e Letónia querem convencer cidadãos a ser vacinados
A meta de ter cerca de 70% dos adultos europeus totalmente imunizados contra a Covid-19 — e com isso atingir a imunidade de grupo — deverá ser alcançada em vários países no final do verão (ou mesmo antes), de acordo com a previsão traçada pela Comissão Europeia e o ECDC em abril. Contudo, devido ao surgimento de variantes potencialmente mais transmissíveis como a Delta, a percentagem de população que é preciso ter imunizada para se conseguir controlar a pandemia deverá agora ser de 85% a 95%, segundo o que avança o conselho científico francês que orienta Emmanuel Macron. Entendimento que é corroborado por vários especialistas portugueses, incluindo o epidemiologista Manuel Carmo Gomes.
Dado que a percentagem de pessoas totalmente inoculadas tem de ser maior para se atingir a imunidade de grupo, vai ser preciso vacinar cada vez mais faixas etárias — está para breve a decisão sobre se em Portugal serão vacinadas todas as crianças entre os 12 e os 15 anos ou se nessa faixa apenas serão imunizados os menores com comorbilidades. França já está a administrar imunizantes a jovens entre os 12 e os 15 anos (ainda que planeie uma campanha de vacinação para setembro), tal como a Dinamarca e Malta já estão a fazer.
Mas não serão só os adolescentes. Nos países onde as taxas de inoculação já estão a abrandar poderá ser “preciso convencer quem não quis ser vacinado”, preconiza ao Observador Tiago Correia, sociólogo e investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical. Na Alemanha, onde em breve a oferta deverá superar “significativamente” a procura pela vacina, o governo está a tentar incentivar as pessoas a vacinarem-se, uma vez que, de acordo fonte do ministério da Saúde ouvida pela agência noticiosa alemã DEA, “houve uma queda da procura nos centros de vacinação, nos consultórios médicos e nos médicos das empresas”.
“Os governos federais vão mais uma vez intensificar os seus esforços para conseguir que aquelas pessoas que decidiram não ser vacinadas o sejam”, afirmou a mesma fonte. Para isso, vai haver postos móveis em várias cidades alemãs perto de igrejas, supermercados e até centros comerciais para tornar mais fácil a vacinação. Também estará em cima da mesa flexibilizar a segunda toma do imunizante.
Estratégia idêntica adotou a Letónia, o terceiro país da Europa (atrás apenas da Bulgária e da Roménia) com a menor taxa de vacinação — com 44,0% da sua população com uma dose do imunizante e 40,7% completamente imunizada. Os números parecem não estar, todavia, a mudar. De acordo com a televisão estatal, a semana de 12 a 18 de julho registou o menor número de vacinas administradas desde meados de março.
Eva Juhņēviča, chefe do departamento que gere o processo de vacinação letão, diz que os números são “preocupantes”, mas garante que está ser a feito de tudo para “estar perto das pessoas”. Em declarações ao canal público, afirmou que “há pontos de vacinação em centros comerciais, em feiras, em festivais e até nas universidades, onde, para além de tratarem da matrícula, os alunos podem vacinar-se”. A responsável mantém a esperança que “quando o outono estiver a chegar, o interesse deve subir”, mas descreve como sendo “assustador” que as taxas de vacinação tenham caído tanto por uma “rejeição à vacina”.
Tiago Correia assinala que o ritmo de inoculação que cada país europeu depende de “vários fatores”, como as “aprendizagens dos governos” e de como eles guiaram os programas de vacinação ao longo destes meses, mas assinala que tem havido um esforço transversal por partes das autoridades políticas europeias para incentivar a inoculação. “Pode ser um bilhete de lotaria, um voucher de compras… Os países têm procurado formas muito diferentes de a população aderir à vacinação”.
Na Polónia, por exemplo, foi lançada uma lotaria para os adultos que se vacinem e que inclui um prémio de 1 milhão de zlotys (cerca de 290 mil euros) e carros. E a Grécia oferece mesmo aos jovens que se vacinam um cartão pré-pago de 150 euros.
No entanto, prevalecem em alguns países “fortes movimentos de desinformação”, aponta Luís Graça, existindo “vários mitos relacionados com a vacinação que não possuem qualquer base científica, mas que ainda assim têm um grande eco na população”. Estes efeitos fazem com que haja uma “grande resistência em confiar na segurança da vacinação”.
Na Roménia e na Bulgária, os dois países com a taxa de vacinação mais baixa na Europa, existem várias teorias da conspiração sobre a vacinação que se espalham nas redes sociais e que acabam até por chegar aos meios de comunicação. “Existe uma certa permeabilidade da população às fake news e à desinformação. É assustador pensar que mais de metade dos romenos acredita que o vírus foi criado num laboratório”, apontou à Euronews Catalin Augustin Stoica, professora e socióloga da Universidade de Estudos Políticos e Administração Pública em Bucareste.
França pondera tornar vacinação obrigatória, Grécia e Itália obrigam profissionais de saúde a vacinar-se
De modo a atingir a imunidade de grupo, alguns países europeus estão a impor que alguns setores da população se vacinem. Na semana passada, Emmanuel Macron foi o primeiro líder a admitir a obrigatoriedade da inoculação para a generalidade da população. Pelo contrário, a chanceler alemã, Angela Merkel, já assegurou que tal não acontecerá para já, mas não descarta que o assunto possa vir a ser discutido no futuro.
Todos os profissionais de saúde franceses, funcionários de lares e cuidadores ao domicílio têm de ser vacinados até 15 de setembro sob pena de sofrerem sanções. Para incentivar a vacinação, o Presidente francês anunciou ainda que, a partir do próximo mês, para aceder a cafés, restaurantes, centros comerciais, entre outros, será preciso apresentar o certificado digital da UE (e com isso a prova de que se completou o esquema vacinal nos últimos 14 dias, que se recuperou da doença ou que se testou negativo).
Caso haja resistência à vacinação em França (que está ligeiramente acima da média europeia na taxa de vacinação), Macron pondera alargar a obrigatoriedade da vacinação a todos os franceses, justificando que é uma “questão de responsabilidade individual, mas também uma questão relacionada com a liberdade”.
A Grécia, que está abaixo da média europeia na taxa de vacinação na primeira dose (com 61,1% da população com a primeira dose e 51,7% totalmente imunizada), também determinou que todos os profissionais de saúde e funcionários de lares têm de estar vacinados — podem mesmo ser suspensos da função que desempenham em caso de recusa. E também haverá regras idênticas às de França, como a obrigatoriedade de apresentar o certificado digital em vários estabelecimentos, como bares, cinemas e teatros. O primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, defendeu as medidas, argumentando que “não é a Grécia que é perigosa, mas os gregos não vacinados” e garantiu que o país “não vai confinar novamente, devido à atitude de algumas pessoas”.
Grécia determina vacinação obrigatória para profissionais de saúde
Por causa destas medidas, na passada quarta-feira, mais de cinco mil pessoas manifestaram-se em Atenas para contestar as medidas que foram decretadas pelo governo.
Também Itália já obriga os profissionais de saúde a estarem vacinados desde abril com o objetivo de “proteger o staff médico e aqueles que possam estar mais suscetíveis a apanhar a infeção”, anunciou o Governo na altura. Quem decidir não ser vacinado, pode não receber salário no resto do ano.
“Não faz sentido que em Portugal haja vacinação obrigatória”
Sobre a possibilidade de em Portugal a vacina passar a ser obrigatória para alguns setores da população, Tiago Correia considera que tal “não faz sentido”, dada a “aceitação geral” que existe das vacinas contra a Covid-19 na população portuguesa. “A vacinação obrigatória aumenta a desconfiança, vai contra aquilo que é socialmente aceite e contradiz com a prática”, justifica o especialista.
Na Europa, a vacinação obrigatória deve ser estudada à luz das características dos restantes países. “Depende da história e de como os países gerem os seus programas de vacinação”, argumenta, sendo que também depende das “expectativas das pessoas” e também dos governos, que precisam de ser “coerentes com o passado” e com o que vem sendo norma, remata.
Artigo corrigido às 21h29 com correção sobre vacinação de jovens