O cenário é muito raro — só aconteceu uma única vez, nas épicas eleições de 1986 — mas o PS acredita que pode repetir-se 40 anos depois, em 2026, com o país a votar numa segunda volta para as presidenciais. À medida que as peças da corrida a Belém começam a mexer-se, a cúpula do PS parece, para já, acreditar que Mário Centeno poderia ser um nome vencedor — mas mesmo essa confiança no potencial candidato não chega para convencer os socialistas de que a eleição ficaria decidida à primeira volta.
A matemática socialista não tem apenas em conta o fator Centeno: em causa está a análise que vários dirigentes socialistas fazem também sobre as hipóteses dos protocandidatos discutidos à direita, sobre a nova situação do Chega — que pode “andar mais à solta” sem Marcelo Rebelo de Sousa na equação — ou sobre o facto de o PS se comprometer, pela primeira vez desde a corrida que opôs Manuel Alegre a Cavaco Silva, a apoiar um candidato.
Tudo isto leva, nas contas do PS, a que o cenário excecional de uma corrida renhida que dê em segunda volta possa, com mais probabilidade do que em qualquer outra eleição nas últimas décadas, voltar a colocar-se. E é também essa a razão pela qual o partido parece confortável em apoiar nomes que não galvanizem o resto da esquerda, parecendo preparado para prescindir do apoio desta: se houver segunda volta, os partidos acabarão por ter de escolher entre um candidato socialista e um candidato de direita, defende-se no PS.
Candidatos pouco “óbvios” e estatísticas do passado pesam
A primeira — e mais apontada entre os dirigentes do PS — razão para que os socialistas comecem a apostar num cenário de segunda volta tem a ver com os nomes que vão aparecendo, dos dois lados do espectro político, cruzados com as estatísticas de campanhas passadas. A razão é simples: neste momento, mesmo os protocandidatos que parecem mais fortes não dão garantias de virem a ter resultados melhores do que senadores como Mário Soares, Cavaco Silva ou Jorge Sampaio.
“É a matemática”, defende um membro do núcleo duro socialista. “Este ano não há nenhum candidato óbvio — nem à esquerda, nem à direita”. Pelo lado do PS, as sondagens indiciam que os tais nomes “óbvios”, e que superam a popularidade dos seguintes por uma margem ampla, seriam de duas figuras de peso que deram todos os sinais de estarem fora da corrida: António Costa, recém-eleito presidente do Conselho Europeu (além disso, jurou sempre que “jamais” teria interesse na função), e António Guterres, que por essa altura ainda será secretário-geral das Nações Unidas.
Ora “ter mais de 50% dos votos não está à altura de qualquer um”, defende a mesma fonte. “Mesmo Cavaco, principalmente, Sampaio e Marcelo, na primeira eleição, não ultrapassaram os 50% de forma muito significativa. Nenhum chegou aos 55%, e eram quem eram”. Entre o currículo do ex-primeiro-ministro Cavaco e o de Sampaio, que tinha sido líder do PS e presidente da Câmara Municipal de Lisboa, os currículos com maior equivalência seriam, do lado do PS, os de Guterres e Costa e, do lado do PSD, o de Pedro Passos Coelho, comenta-se no partido.
Voltando às contas: desde 1986, ano em que a segunda volta trouxe uma reviravolta dramática e Mário Soares acabou por vencer as eleições — que tinha perdido à primeira volta — contra Diogo Freitas do Amaral, com 51,18% dos votos, a margem dos 50% foi sempre ultrapassada na primeira eleição de cada Presidente, mas por uma margem relativamente curta. Jorge Sampaio, com o apoio da restante esquerda, conseguiu 53,91%; Cavaco Silva ficou pelos 50,64%; e Marcelo Rebelo de Sousa, que tinha menos currículo como líder partidário e nunca tinha sido primeiro-ministro mas colhia os frutos da notoriedade conseguida com anos de comentário televisivo, não foi além dos 52% — todos aumentariam essas percentagens no segundo mandato.
“Este ano, a probabilidade de haver dois candidatos das áreas políticas do PS e do PSD que não tenham uma óbvia abrangência fora dos respetivos espaços partidários faz com que seja muito difícil alguém chegar aos 50+1 à primeira”, insiste-se na direção do PS, olhando para o leque de possíveis candidatos ainda com os cuidados que a distância das eleições — que acontecerão em janeiro de 2026 — impõe.
Chega já não concorre contra “populismo dos beijinhos”, esquerda pode dividir-se
Mas há outros fatores em jogo. Desde logo, o peso que o Chega pode assumir nesta eleição, tornando mais difícil que a direita, mesmo apresentando um senador, consiga concentrar votos e chegar ao número mágico dos 51%. “Nunca tivemos o Chega sem Marcelo”, frisa um dirigente socialista. “O populismo dos beijinhos” atribuído ao Presidente da República — um dos objetivos de Marcelo Rebelo de Sousa sempre passou por ocupar esse espaço, promovendo uma espécie de “populismo bom” — e o facto de o Chega só ter aparecido quando Marcelo estava consolidado contribuem, nas contas do PS, para que o peso do partido de André Ventura possa aumentar.
Ou seja, no PS, o cálculo é simples: se Pedro Passos Coelho revolucionar a corrida, aparecendo como candidato a Belém, pode ter sérias hipóteses de disputar os 51% e convencer o Chega; mas há poucas figuras à direita que consigam congregar esses apoios da mesma forma. “Se Chega andar à solta a probabilidade de uma segunda volta é muito grande”, remata fonte socialista.
Feitas as contas ao leque possível de candidatos — falta saber se Chega e Iniciativa Liberal terão candidatos próprios, sendo certo que, se o PS avançar com um perfil mais ao centro como o de Mário Centeno ou Augusto Santos Silva, o apoio do Bloco de Esquerda cai e o do Livre pode ficar em risco — fica em cima da mesa um cenário em que as votações se mostrem divididas, o que também favoreceria, na lógica do PS, uma segunda ida às urnas.
O Bloco de Esquerda e o Livre avisaram, desde logo, que estariam disponíveis para apoiar um candidato que reunisse consenso à esquerda, abdicando de avançar com candidatos próprios e contribuindo para uma candidatura mais sólida. No entanto, para já, o PS parece desvalorizar o peso que esses apoios representariam e chuta a conversa para uma segunda volta em que os partidos de esquerda poderiam ser obrigados a apoiar, por exclusão de partes, o candidato do PS.
Ou seja, os socialistas parecem não fazer, pelo menos à partida, do apoio do resto da esquerda um critério para a escolha do nome que escolherão apoiar — isto apesar de no passado a esquerda já ter juntado forças e mostrado a utilidade de uniões neste plano, fosse para “engolir o sapo” e ajudar Mário Soares a derrotar Freitas do Amaral, para eleger Jorge Sampaio (Jerónimo de Sousa desistiu, ajudando a abrir caminho para o socialista) ou para, no caso do Bloco, apoiar Manuel Alegre.
Já o PCP está fora destas contas, devendo avançar com um candidato próprio — Paulo Raimundo não exclui encabeçar uma eventual candidatura, mas diz que é cedo para tomar decisões.
PS volta a jogo em força
O fim do ciclo de Marcelo Rebelo de Sousa traz outra novidade: será a primeira vez desde a última candidatura de Mário Soares que o PS assumirá o apoio a um candidato, fazendo questão de se envolver diretamente nas eleições presidenciais. Isso mesmo foi garantido por Pedro Nuno Santos quando se candidatou à liderança do PS, e repetido ainda na semana passada: “O que é claro para nós é que o Partido Socialista, ao contrário do que aconteceu nas duas últimas eleições, vai ter e vai apoiar um candidato”.
Ora este fator também baralha as contas, que nas duas corridas que deram a vitória a Marcelo Rebelo de Sousa tinham deixado a área socialista enfraquecida. Em 2016, os socialistas não apoiaram oficialmente nenhum nome, embora boa parte do aparelho estivesse com António Sampaio da Nóvoa, e a votação acabou por partir-se entre o professor universitário (23%) e a antiga presidente do PS Maria de Belém Roseira (4,24%), além dos nomes apoiados pelos restantes partidos de esquerda (com Marisa Matias a conseguir uns históricos 10%).
Já em 2020, aquando da reeleição do Presidente da República, o PS deu ainda mais por perdida a corrida e António Costa encarregou-se mesmo de lançar a recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa, numa visita conjunta à Autoeuropa oito meses antes das eleições. Como o próprio Marcelo viria a admitir, ficava nesse momento visto como um candidato que era também do PS, apesar de contar com o apoio oficial de PSD e CDS. Da área socialista avançaria Ana Gomes, mas sem o apoio do partido (e com o apoio individual de Pedro Nuno Santos), conquistando 12,96% dos votos. Nesse tabuleiro já entraria André Ventura, com 11,93% dos votos; o candidato liberal Tiago Mayan Gonçalves (3,23%); e uma esquerda mais diminuída (somados, João Ferreira e Marisa Matias não chegariam aos 10%).
Com o fim do ciclo Marcelo e um Governo de direita no poder (é sempre repetida nos corredores a teoria de que os portugueses não gostam de pôr os ovos todos no mesmo cesto e aproveitam estas eleições para equilibrar os poderes, exceção feita à dupla Jorge Sampaio/António Guterres), os socialistas acreditam que têm em mãos uma oportunidade de acabar com um jejum de duas décadas e voltar a Belém. Mas não antecipam uma corrida fácil — nem, a esta distância e com os nomes que vão surgindo nos bastidores da política, um resultado imediato.