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“De cada vez que escrever eleições russas deve pôr a expressão entre aspas.” A afirmação é de um dos especialistas russos com quem o Observador falou sobre o que esperar das presidenciais de 2024 na Federação Russa, numa altura em que a imprensa local começa a avançar nomes de potenciais candidatos, todos com mais de 50 anos. “Não são eleições como em Portugal, são uma imitação de eleições”, argumenta Mikhail Troitskiy, enquanto Oleg Ignatov refere que o Kremlin tem duas peças fundamentais na mão: decide quem vai concorrer contra Vladimir Putin e decide como contar os votos.
Ambos são especialistas em ciência política e ambos deixaram a Rússia depois da invasão da Ucrânia. Troitskiy está nos Estados Unidos, onde é professor na Universidade de Wisconsin-Madison. Ignatov está na Europa, onde é analista sénior do think tank Crisis Group. E nenhum deles acredita que as eleições russas serão livres ou democráticas. Aliás, ambos recordam as palavras de Dmitri Peskov ao New York Times. “As nossas presidenciais não são realmente uma democracia, são uma burocracia cara”, disse o porta-voz do Kremlin no início de agosto.
No final do mês, foi o Meduza, jornal russo independente, quem voltou ao assunto, esgotando a notícia no próprio título: “O Kremlin decidiu quem concorrerá nas eleições presidenciais de 2024. O principal critério para a seleção dos candidatos é a idade (para que Putin não pareça um avô).” Segundo o jornal, os candidatos que têm a aprovação do Kremlin são Alexei Nechayev (57 anos), do Novo Povo, Leonid Slutsky (55 anos), do Partido Liberal Democrata da Rússia, e Gennady Zyuganov (79 anos), do Partido Comunista da Federação Russa.
[Ouça aqui todos os quatro episódios já publicados de “Um Espião no Kremlin”, o podcast do Observador sobre Vladimir Putin com narração de Marco Delgado. Na próxima terça-feira sai o quinto de seis episódios.]
No último dia de agosto, Igor Girkin (52 anos) anunciou a vontade de candidatar-se. O veterano do exército russo, peça fundamental durante a anexação da Crimeia e nos combates do Donbass, tornou-se crítico do regime depois da invasão da Ucrânia. Não por ser contra a guerra, mas por achar que poderia fazer melhor. Está preso, sob acusações de extremismo, depois de ter criticado Putin no Telegram, rede social onde anunciou querer ser Presidente.
Segundo a lei, no que toca à idade, basta ter mais de 35 anos para ser possível candidatar-se ao cargo de Presidente da Federação Russa. Quando foi eleito pela primeira vez, Putin tinha 48 anos.
É o Kremlin quem escolhe os candidatos?
A resposta rápida é “não”, a resposta honesta é “sim, com tons de cinzento”. Os partidos políticos existentes, com assento parlamentar ou não, escolhem o seu candidato para as presidenciais e isso normalmente acontece numa reunião magna de cada partido, explica Oleg Ignatov. Também podem optar por não apresentar nenhum nome, como o Rússia Justa, partido parlamentar (28 assentos) que irá apoiar a candidatura de Putin em 2024.
“Existe um procedimento oficial e está descrito na lei. Formalmente, é um sistema normal. Se olhar para ele, não verá quaisquer truques. Dirá que há partidos e que têm os seus próprios candidatos. Na prática, é muito difícil registá-los e o Kremlin decide quem se candidata”, explica Ignatov. Ou seja, quem quiser garantir que o seu candidato é registado — sem isso não pode ir a votos — tem de conversar com o poder instituído.
Aconteceu, em 2018, com Alexei Navalny, o principal opositor de Putin, atualmente a cumprir pena de prisão. Apesar de ter recolhido o número necessário de assinaturas, a Comissão Central de Eleições da Rússia impediu que se candidatasse às presidenciais.
Com Igor Girkin deverá acontecer exatamente o mesmo.
A “máquina perfeita” do Kremlin para anular os adversários de Putin
“Se querem que o vosso candidato seja o verdadeiro candidato, e que seja registado, devem discutir o assunto com o Kremlin. Na administração presidencial há pessoas especiais que trabalham na política interna, cujo trabalho é discutir as questões com outras forças políticas e organizar o sistema político, porque isto não é uma democracia”, acrescenta o analista do Crisis Group.
Ignatov diz ainda que o Kremlin pode propor nomes de candidatos aos demais partidos. “Podem dizer ao Partido Comunista da Federação Russa para declarar Zyuganov. Claro que o partido pode tentar outro candidato, mas, se não for aprovado, simplesmente não será registado. No processo de registo dos candidatos, o Kremlin controla todos os procedimentos burocráticos. Neste sistema não são permitidas surpresas.”
No dia da votação, nas assembleias de voto, há cartazes com os nomes e as caras dos candidatos registados.
A fotografia de Zyuganov garantidamente não fará Putin parecer mais velho. O presidente do Partido Comunista da Federação Russa, o segundo maior partido do país (57 deputados), estará à beira dos 80 anos quando chegar o dia das eleições. É um dos políticos mais conhecidos da Rússia, mas será complicado ir além do eleitorado habitual do partido. Nas presidenciais de 2008 e de 2012, Zyuganov não passou dos 18%, muito longe dos 40% que conseguiu na segunda volta das eleições de 1996, quando defrontou Boris Yeltsin.
Em março de 2020 surgiram vários pequenos partidos políticos russos que, segundo a imprensa, faziam parte do plano do Kremlin de dividir os votos de partidos da oposição que tinham tido uma votação superior à esperada. Nesse contexto surge o Novo Povo de Alexei Nechayev — um dos prováveis candidatos — que, nas legislativas de 2021, conseguiu de forma inesperada 15 dos 450 assentos da Duma. O Rússia Unida, o partido de Putin, tem 321.
Nechayev negou sempre esta ligação ao Kremlin, apesar de o jornal Kommersant escrever que desde 2010 que o empresário russo discute projetos políticos com as autoridades. “Podem chamar-nos projeto do Kremlin, não me importo. Sei como cheguei aqui, o que me trouxe aqui e quem está comigo”, disse Nechayev na altura. Também afirmou que não pretendia “destruir o sistema”, mas “começar a falar com ele”.
O último nome que tem surgido na imprensa é o do líder do partido populista de direita, o Partido Liberal Democrático da Rússia. A sua imagem irá lembrar os russos de outras histórias: em 2018, Leonid Slutsky foi acusado de assédio sexual por várias mulheres e o russo chegou a comparar-se ao norte-americano Harvey Weinstein (que só seria condenado como criminoso sexual em 2020), dizendo-se perseguido e difamado. Slutsky foi a cara do primeiro escândalo sexual da história da Duma.
Sobre a questão dos adversários, Oleg Ignatov acredita que Putin aprendeu com o erro de Aleksandr Lukashenko, Presidente da Bielorrússia apelidado de “o último ditador da Europa”, que permitiu que Svetlana Tikhanovskaya se candidatasse. “Era uma pessoa verdadeiramente independente. Depois de prender o seu marido, permitiu que ela se candidatasse e parece que ela ganhou. Penso que Putin percebeu esse erro e não iria permitir uma situação semelhante”, acrescenta o politólogo.
A comissão eleitoral bielorrussa atribuiu 80% dos votos a Lukashenko e apenas 10% a Tikhanovskaya nas eleições de 2020, consideradas fraudulentas pela oposição.
O resultado final da votação será sempre o esperado pelo Kremlin?
Nem Mikhail Troitskiy, nem Oleg Ignatov consideram relevante falar sobre a campanha presidencial russa por não se tratar de um processo democrático, argumentam os dois politólogos. O analista do Crisis Group compara-a a uma encenação de uma peça de teatro.
“Nós estamos a conversar é sobre o anúncio das eleições”, diz Troitskiy. “Não há nada de invulgar em dizer simplesmente, bom, as eleições vão realizar-se. Quem é que duvida disso, certo? Tem estado a duvidar? E, se sim, porquê?” Para o professor, falar sobre a ida às urnas é apenas seguir a narrativa do Kremlin e isso não vai ao cerne da questão. Na sua opinião, importante é perceber porque estão a ser confirmadas as eleições nesta altura em vez de avaliar se Putin vai alcançar 80 ou 90% dos votos.
“Não há razão para duvidar de que Putin vá ganhar”, diz Ignatov. “Vai ganhar porque eles controlam o sistema, controlam o processo de registo de candidatos e controlam a forma como os votos são contados. Controlam ambos. Têm as duas chaves. E elas são as principais condições para a vitória, correto?” Apesar disso, o analista do Crisis Group sublinha que a Rússia não é uma ditadura completa. “Quando um ditador diz que quer ter 90% dos votos tem 90% dos votos. Na Rússia, a situação é mais complexa.”
Há manipulação, mas não se pode simplesmente acrescentar 60 milhões de votos a um partido, defende Ignatov, num país que tem cerca de 143 milhões de habitantes. “Pode-se adicionar um par de números, mas não muitos números. Não é um sistema completamente gerível. Há regiões que mostram os resultados reais, há regiões que mostram resultados irreais e há regiões que estão no meio. É complexo.”
Por que motivo se confirmam eleições que não foram canceladas?
Durante toda a conversa com o Observador, o professor da Universidade de Wisconsin-Madison insistiu ser importante perceber por que motivo se confirmam eleições que nunca deixaram de estar agendadas. Na opinião de Mikhail Troitskiy há algumas razões que explicam as notícias que têm surgido na imprensa russa e todas elas estão ligadas à guerra com a Ucrânia: passar a ideia de que Moscovo é mais democrático do que Kiev, onde as eleições previstas para 2024 não deverão acontecer, e tranquilizar a população sobre uma eventual mobilização geral para a guerra são dois dos argumentos.
“O ponto do Kremlin é mostrar o contraste com as autoridades ucranianas. O que está a dizer é: as nossas eleições vão decorrer de acordo com o planeado ao contrário do que acontece na Ucrânia. Em Kiev aboliram as eleições, logo, não são democráticos. Já nós vamos ter as nossas eleições”, argumenta Troitskiy. “A informação oficial é a de que Putin irá certamente candidatar-se e todas estas fugas de informação que vão surgindo na imprensa são sobre quem eles procuram que sejam os candidatos”, acrescenta o professor, lembrando que tudo na imprensa russa é censurado e controlado pelo Kremlin.
Até à data, Vladimir Putin não oficializou a sua candidatura, e é esperado que o faça até ao final do ano.
“Se a pergunta for sobre o que eu retiro de todos estes anúncios, o que vejo é uma campanha de media orquestrada à volta da ideia de que, sim, vamos ter eleições na Rússia. Claro que sabemos que as eleições não vão ser justas nem livres, mas sabem quem somos…”, ironiza o professor. Mais uma vez, Troitskiy recorda as palavras do porta-voz do Kremlin ao New York Times, quando Peskov sugeriu que Putin sairia vencedor das presidenciais com uma grande margem de votos.
“Haverá eleições, e claro que Putin será vencedor, e claro que haverá manipulação dos resultados. O que o Kremlin quer neste momento é pôr-nos a discutir se ele vai ter 80 ou 90% dos votos… Ele será reeleito, de qualquer forma, mas a verdade é que a situação é muito instável”, acrescenta o especialista em estudos políticos. No entanto, lembra que até março do próximo ano os problemas económicos podem começar a sentir-se com mais força e que a contraofensiva ucraniana pode dar frutos.
Nessa altura, tudo ficará na mesma? “A guerra é completamente imprevisível”, diz Troitskiy. Por ser difícil de prever, e por haver temores de que seja necessário avançar para uma nova mobilização, associada à invocação da lei marcial — a legislação que impede a Ucrânia de convocar eleições — falar das presidenciais de 2024 apazigua ânimos.
É que se houver eleições em março, sublinha Troitskiy, isso é sinónimo de que o país não estará sob lei marcial. “O Kremlin quer aliviar esses medos. Mas também parece claro que se a Ucrânia obtiver ganhos na frente da batalha, Putin será pressionado a avançar com uma nova ronda de mobilização.” Por isso, o politólogo defende que é preciso refletir sobre quem está a anunciar as eleições, neste caso o gabinete do Presidente russo, e não os militares ou os serviços de segurança.
O que Troitskiy lê nas entrelinhas é que, de alguma forma, o Kremlin está a deixar clara que a sua posição não é favorável a uma nova mobilização.
Avô Putin? Kremlin sabe como evitar essas comparações
Em 1999, o ar jovial do antigo agente do KGB contrastava com o de Boris Yeltsin. Nessa altura, o primeiro Presidente russo, depois da queda da União Soviética, deixou claro que gostaria de ver Vladimir Vladimirovich sucedê-lo no poder. Putin, depois da inesperada renúncia de Yelstin, ocupou o seu lugar, de acordo com a Constituição, e, no ano seguinte, tornava-se no segundo Presidente da Rússia.
Vinte e três anos depois, Putin, com 70 anos, está próximo da idade que Yelstin tinha à data da renúncia (68). A imprensa russa diz que o homem que em tempos era chamado “pai”, tem agora o cognome “avô”. Daí que, para fazê-lo parecer mais novo, o Kremlin procure candidatos com mais de 50 anos.
“Isso faz algum sentido porque Putin não é assim tão jovem. Mas ele não parece velho para um homem russo de 70 anos. Tem muito bom aspeto e tem um ar enérgico”, defende Oleg Ignatov. Por outro lado, o Kremlin tem à sua disposição meios suficientes para que essa comparação etária não seja feita ou, pelo menos, que não seja óbvia.
Putin, por exemplo, nunca participa em debates com outros candidatos. “Nunca participou em nenhum desde o início da sua carreira política e só participa em eventos encenados, organizados, coreografados. Por isso, será difícil compará-lo com alguém mais novo, porque podem arranjar a situação de forma a ele parecer mais jovem”, sublinha Ignatov.
Mais do que querer que o Presidente pareça novo, Moscovo procura que esta seja uma campanha fácil. “O Kremlin não quer uma campanha muito ativa porque a guerra está a decorrer. Putin nunca teria uma verdadeira competição, mas parece-me que não querem investir muitos recursos nesta campanha e querem evitar que seja um grande evento, muito caro.” Pelo contrário, a perspetiva de Ignatov é de que a aposta é tornar o evento eleitoral numa espécie de referendo ou campanha de aprovação de Putin.
“Dirão: temos um líder, estamos no meio da guerra, é claro que toda a gente apoia a sua política. Devem simplesmente aparecer e votar nele, assim e muito rapidamente, sem sentimentos e sem pensar. É assim que funciona”, acrescenta o analista do Crisis Group.
Quanto aos números, Ignatov não duvida que há interesse em que Vladimir Putin tenha um resultado acima dos 80%. “Estão interessados nos números porque estamos no meio da guerra e estão interessados em mostrar um grande resultado da sua aprovação. Se Putin se candidatar, o principal objetivo será mostrar que a sua aprovação é enorme, que o seu número de eleitores é enorme e que ultrapassou todos os problemas para que ninguém pense que ele é um líder fraco.”
Antes de 2020, quando foram feitas emendas à Constituição russa, a discussão que se previa para este ano era outra. Na Rússia há um limite de dois mandatos presidenciais — Putin foi primeiro-ministro entre os seus mandatos presidenciais — e o normal seria estar a discutir-se o nome do seu sucessor. Embora os limites de mandatos continuem a existir, as alterações à Lei Fundamental fizeram com que os mandatos começassem a contar do zero e o passado político de Putin foi apagado.
Poderá manter-se na Presidência até 2036, altura em que terá 84 anos. Se isso acontecer, com 36 anos de poder, Putin superaria a marca de Josef Stalin, que liderou a União Soviética durante 29 anos (1924-1953).
Assim, a campanha não trará surpresas. Haverá debates sem o Presidente, Putin viajará pelas regiões para falar com a classe trabalhadora e talvez até visite a frente e converse com os militares. No final, a mensagem será igual à do romano Júlio César na Batalha de Zela. Veni, vidi, vici.