Começou com uma notícia num jornal russo que depois foi confirmada por fonte da procuradoria-geral russa à agência de notícias estatal RIA. Contrariamente ao que a presidência da Rússia anunciara horas após o fim da rebelião do grupo Wagner, a Justiça veio dizer esta segunda-feira que, afinal, o processo criminal a visar Yevgeny Prigozhin, aberto às primeiras horas de madrugada de sábado, não tinha sido encerrado. O mercenário pode ainda vir a ser julgado pelo crime de tentativa de rebelião armada e incorrer numa pena de prisão que pode ir dos 12 aos 20 anos.
“O processo não foi encerrado, a investigação continua”, garantiu fonte da procuradoria-geral. Isto no dia em que Yevgeny Prigozhin quebrou o silêncio pela primeira desde o final da rebelião. O líder do grupo Wagner publicou um ficheiro áudio na sua conta do Telegram em que tenta explicar vários pontos sobre a insurreição armada. Ainda prevalecem várias dúvidas, mas o líder paramilitar deixou uma garantia: a milícia não “aceitou assinar um contrato” com Sergei Shoigu, o ministro da Defesa russo e seu principal adversário.
Ao Observador, Mikhail Troitskiy, professor de Prática da Universidade de Wisconsin-Madison que se dedica ao estudo da política russa, diz não acreditar que a divergência entre o poder executivo e o judicial tenha sido inocente. O especialista defende que esta confirmação da Justiça, no dia em que a poeira começa assentar, pode ser um dos primeiros passos para o líder russo, Vladimir Putin, “terminar com o grupo Wagner” e “destruir aqueles que começaram o golpe de Estado”.
O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, havia assegurado, no sábado à noite, que as negociações, mediadas pelo chefe de Estado bielorrusso Alexander Lukashenko, tinham tido como resultado o fim do processo judicial do mercenário, assim como todos os que participaram na rebelião não seriam alvos de represálias.
No áudio divulgado esta segunda-feira, o líder do grupo Wagner não comentou o inquérito em curso, que foi aberto pelo Serviço Federal de Segurança (FSB), um dos ramos dos serviços de informações da Rússia. Mas é certo que esta investigação coloca Yevgeny Prigozhin numa posição mais vulnerável, mesmo que ainda não se saiba que consequências poderá ter, nem haja informações sobre as divergências.
O último a falar nas últimas horas foi Vladimir Putin. Pondo também fim a várias horas de silêncio, trouxe uma mensagem mais próxima da da Justiça — quer responsabilizar os membros de grupo Wagner que se juntaram à insurreição, ainda que tenha sido omisso quanto a Prigozhin. “Traíram o país e traíram aqueles que estavam ao lado deles”, disse, destacando que quem incentivou a revolta quis “enfraquecer a nação”. “É uma atividade criminosa”, atirou.
Putin pode terminar com o grupo Wagner e com Prigozhin — mas de forma “lenta”
No seu discurso no sábado de manhã, poucas horas depois do início da insurreição, Vladimir Putin adotou um tom duro e assertivo — o que, aliás, manteve esta segunda-feira. “Aquele que organizou e preparou a rebelião militar traiu a Rússia e vai responder por isso”, prometeu o líder russo, que falou mesmo numa “facada nas costas”. “As nossas ações para defender a pátria desta ameaça serão muito duras e os responsáveis serão levados à justiça”, afirmou o Presidente russo.
Na altura, o discurso não surtiu efeito junto dos mercenários e as medidas aplicadas até agora a Yevgeny Prigozhin estão longe de ser duras — o líder do grupo Wagner não foi sequer detido. De acordo com a versão inicial do Kremlin, tampouco teria de responder judicialmente. Também foi prometido que o grupo Wagner continuaria a existir, ainda que o porta-voz do Kremlin tivesse assinalado que metade dos mercenários seriam integrados nas forças regulares russas.
À exceção do desenvolvimento do caso judicial, o grupo Wagner quase parecia sair ileso do que aconteceu há poucos dias. Os mercenários anunciaram que voltaram à normalidade, ao mesmo tempo que o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo indicou que a milícia paramilitar vai continuar a ter presença no Mali e na República Centro Africana. Depois das declarações oficiais do Kremlin no sábado, Yevgeny Prigozhin terá sido visto perto de um hotel na capital bielorrussa, Minsk.
Não obstante, Mikhail Troitskiy preconiza que a normalidade a que o grupo Wagner parece ter retornado vai terminar dentro em breve — e a última aparição de Putin pode ser mais um sinal disso. Na opinião do especialista, Vladimir Putin aprendeu “lições muito importantes” com a insurreição armada — e não vai tolerar a afronta. O Presidente russo tem um “plano”, afirma o professor universitário, mas que “vai demorar algum tempo” até ser colocado em marcha.
Num Estado em que as fronteiras entre o poder executivo e judicial são ténues, as palavras da procuradoria-geral da Rússia podem representar o primeiro passo da retaliação do Presidente russo, se bem que pouco expressivo. É que, para o professor universitário de Prática da Universidade de Wisconsin-Madison, Vladimir Putin “tem a noção” de que Yevgeny Prigozhin, mesmo estando na Bielorrússia, pode ordenar uma nova insurreição, já que o contingente de 25 mil homens que o chefe da milícia privada diz ter ao seu lado ainda não estará completamente desmobilizado.
Adicionalmente, se o chefe de Estado russo adotasse já uma política de mão de ferro contra a milícia, isso poderia “causar alguma rebelião” e “enfurecer” não só os mercenários, como também as próprias forças armadas russas. “Vai levar algum tempo até neutralizar os membros do grupo Wagner”, considera Mikhail Troitskiy.
A situação na Ucrânia também entra nos cálculos mentais de Vladimir Putin, afiança o docente universitário. Apesar de o grupo Wagner ter saído da linha da frente em maio de 2023 com o fim da batalha de Bakhmut, Mikhail Troitskiy assinala que há alguns mercenários em posição de retaguarda, a assumir posições de defesa, ou perto da fronteira russa. “Putin precisa de ter novos substitutos e não pode abandonar essas posições”, acrescenta.
Relativamente às exigências de Yevgeny Prigozhin — que incluíam a demissão do ministro da Defesa e do chefe do estado-maior das forças armadas russas, Valery Gerassimov —, Mikhail Troitskiy não vê como provável a sua substituição num futuro próximo. “Vladmir Putin tem aversão a mudanças brutais no governo e nas chefias militares”, refere.
Uma das provas que o chefe de Estado russo não cederá ao líder do grupo Wagner prende-se com a aparição pública, esta segunda-feira, do ministro da Defesa. Na televisão estatal, Sergei Shoigu foi visto a inspecionar as forças russas na Ucrânia. Num comunicado, a tutela destacou que o governante “prestou especial atenção à organização de um apoio abrangente às tropas envolvidas na operação militar especial e à criação de condições para o destacamento seguro de pessoal”.
Embora não vaticinando uma saída de Sergei Shoigu e Valery Gerassimov num futuro próximo, Mikhail Troitskiy não descarta que os dois responsáveis sejam dispensados a médio ou longo prazo. Mas vai depender mais de como a guerra na Ucrânia evoluir do que “propriamente das exigências impostas pelo líder grupo Wagner”, reforça Mikhail Troitskiy, que concede, contudo, que a oposição do mercenário pode servir de pretexto se Vladimir Putin quiser demitir as chefias militares.