Os ares que encolheram o PSOE no mapa espanhol estão a ser medidos atentamente na São Caetano à Lapa, em Lisboa. Entre os sociais-democratas, a derrota do socialista Pedro Sánchez nas eleições autárquicas e autonómicas do último domingo e a expressiva vitória de Alberto Feijóo, líder do partido irmão do PSD, alimentam a expectativa de que, também em Portugal, possa acontecer uma viragem de ciclo político à direita. Mais: depois de o primeiro-ministro espanhol ter convocado eleições legislativas para julho, é bem possível que o PP saia delas vitorioso, mas esteja obrigado a conversar com o Vox para governar; e uma aliança entre PP e o homólogo espanhol do Chega poderá servir de laboratório a Luís Montenegro.
A leitura é relativamente simples, comenta-se no PSD. Se Feijóo vencer as próximas eleições gerais espanholas, dificilmente conseguirá a maioria absoluta. A consequência mais óbvia será uma aliança com Santiago Abascal, do Vox, hipótese que o líder do PP nunca afastou até ao momento – alianças, aliás, que estão a ser negociadas em várias regiões do país para derrotar o “sanchismo”. Ora, a normalização dessa aliança entre PP e Vox poderia desarmadilhar o debate sobre qualquer eventual acordo entre o PSD e o Chega no futuro.
Os sinais emitidos pelo quartel-general social-democrata, de resto, continuam a ser ambíguos. Na quarta-feira, e depois de ter ensaiado uma demarcação progressiva em relação ao Chega, Luís Montenegro teve mais uma oportunidade para dizer taxativamente que nunca fará qualquer acordo com André Ventura. Nunca o fez. Em entrevista à RTP, desafiado a responder “Chega, sim ou não?”, o líder social-democrata voltou à fórmula original – dirá o que vai fazer mais perto das legislativas – e a dizer que tem a sua própria “estratégia eleitoral e política”. Baralhou e deu de novo, portanto.
Depois, há um outro dado importante a ter em conta. Esta declaração de Montenegro sobre acordos à direita surge depois de Aníbal Cavaco Silva, que aproveitou um evento organizado pelo PSD para endossar o atual presidente do partido, ter avisado o PSD para “não cometer o erro de anunciar qualquer política de alianças pré-eleições” e cair na “armadilha orquestrada pela central de comunicação socialista”.
Na altura, Ventura chamou-lhe um figo, naturalmente. “Tudo temos feito para que este Governo chegue efetivamente ao fim e apresentar uma alternativa aos portugueses. Outros partidos à direita parecem muitas vezes andar hesitantes sobre se este é ou não o caminho”, reagiu o líder do Chega, cada vez mais agastado com a lua de mel entre PSD e Iniciativa Liberal.
De todo em todo, os sociais-democratas querem manter todas as opções em aberto. A perspetiva que existe no PSD, sabe o Observador, é a de que Feijóo vai provar que “Abascal não é o bicho papão” anunciado e que o PP conseguirá domesticar o Vox. Se dessa futura e hipotética aliança sair um governo estável, esvaziado da agenda radical do homólogo do Chega, será possível usar o exemplo espanhol – tal como o finlandês ou, noutro plano, o italiano – para desdramatizar o fantasma de Ventura e todo o debate sobre cordões sanitários à direita, tema que continua muito mal resolvido na direção social-democrata.
Basta ver que o vice Miguel Pinto Luz continua sem descartar alianças com o Chega, tal como Paulo Cunha. Paulo Rangel, primeiro vice do partido, repetiu várias vezes que nunca contará com Ventura para nada. José Matos Correia, senador e presidente do Conselho de Jurisdição do partido, e Pedro Duarte, coordenador do Conselho Estratégico, idem. António Leitão Amaro recusa falar sobre o tema, tal como Margarida Balseiro Lopes, mais alinhados com Luís Montenegro — o Chega não deve ser nomeado.
Entre as figuras que orbitam em torno da atual presidência, a confusão é idêntica. Luís Marques Mendes, muito próximo de Montenegro, já exigiu várias vezes um chega para lá a Ventura. Pedro Passos Coelho e Miguel Relvas nunca deram sinais de concordar com essa tese – bem pelo contrário. Miguel Poiares Maduro, por sua vez, é terminantemente contra qualquer aliança. A mesma convicção existe entre os pesos pesados do aparelho social-democrata, como o eurodeputado José Manuel Fernandes – Carlos Coelho, outro eurodeputado, discorda e recusa-se a fazer do Chega uma “bête noire”. Tudo somado, uma mudança de ciclo político em Espanha pode intensificar o debate dentro do PSD.
Sánchez mimetiza Costa, que mimetiza Sánchez
Independentemente do que Montenegro possa vir a fazer no futuro, a verdade é que há uma semelhança incontornável entre os discursos de PS e PSOE: grande parte da estratégia dos socialistas para conter o avanço do centro-direita passa por acenar com ameaça da direita radical. Nas últimas eleições legislativas, António Costa usou os avanços e recuos de Rui Rio nessa matéria para dramatizar os riscos de uma eventual aliança entre PSD e Chega. A aposta deu frutos, a esquerda à esquerda do PS foi esvaziada através do efeito do voto útil e os socialistas arrancaram uma maioria absoluta que era, à partida, improvável.
Em Espanha, ainda mal refeito da derrota eleitoral, Pedro Sánchez pôs em marcha a campanha para as próximas eleições. “Quando falam em revogar o sanchismo, o que o PP e o Vox procuram é destruir e desmantelar o conquistado. Não há distinção alguma entre o PP e o Vox“, atirou o primeiro-ministro e líder socialista espanhol, num discurso perante os deputados e senadores do PSOE.
Como uma espécie de antecâmara do que podem ser as próximas eleições legislativas, a narrativa de Sánchez já vai ganhando alguns adeptos entre os socialistas portugueses. “Não sei se a coligação do PP com o VOX será uma grande notícia para Montenegro, que passa o tempo a responder sobre uma coligação com a extrema-direita”, sugeriu ao Expresso o eurodeputado e ex-ministro socialista Pedro Marques.
No PSD, ninguém tem grandes dúvidas de que uma eventual aliança entre Feijóo e Abascal será usada pelos socialistas para alimentarem o fator medo em relação a eventuais alianças à direita. “Estão desejosos por fazer isso”, atenta uma fonte social-democrata. O desejo íntimo é que o tiro lhes saia pela culatra: se Feijóo conseguir formar um governo PP-Vox que não viole as linhas vermelhas do PSD, o discurso apocalíptico do PS perderá força.
Com uma outra vantagem: como as eleições espanholas foram antecipadas, em caso de vitória, Feijóo levará meses (ou anos) de governação até que os portugueses sejam chamados às urnas – o que, pelo calendário normal, só acontecerá em 2026. Ou seja, o tempo de habituação a uma eventual aliança de direita será mais do que suficiente para que sejam retiradas conclusões em Portugal – para um lado ou para o outro, claro.
Por ora, o cenário de eleições antecipadas também em Portugal não está completamente posto de parte no PSD. Alguns dirigentes sociais-democratas entendem até que o que aconteceu em Espanha — o tal vento de mudança — pode ter efeitos no Palácio de Belém. Antecipando uma eventual mudança de ciclo político na Europa, Marcelo Rebelo de Sousa poderia ter mais um elemento de conforto quando ou se dissolver a Assembleia da República.
PSD espera acelerar de ciclo de Marcelo
Na primeira e única vez que falou sobre as eleições espanholas, Marcelo teve uma posição prudente, rejeitando comparações entre o contexto político de Espanha e o de Portugal e referindo que “a situação espanhola é uma situação específica, que se encontra noutra fase do ciclo político, que tem características também peculiares”. Ao mesmo tempo, o Presidente da República acrescentou um detalhe que se pode prestar a leituras mais complexas: “Acompanho com muita atenção o que se passa em Espanha, um país vizinho muito próximo de Portugal”, avisou.
A geometria política que sair das eleições de 23 de julho não será, por isso, determinante na tomada de decisão de Marcelo sobre antecipar ou não as legislativas portuguesas, reconhece-se no PSD. Mas a conjugação dos astros espanhóis — vitória do PP, aliança com o Vox, governo estável — com os astros portugueses — derrota do PS nas próximas eleições europeias, agendadas para junho de 2024 — pode “acelerar” todo o calendário de Marcelo e provocar a queda precoce de António Costa.
Afinal, os ciclos políticos de Portugal e de Espanha não estão totalmente dessincronizados. Pelo contrário. Em 1982, Felipe González deu a primeira vitória ao PSOE em eleições legislativas. Mário Soares venceria em 1983, mas duraria pouco no cargo. Aníbal Cavaco Silva arrancou em 85 para um década de governação. Em 1995, dá-se a mudança de ciclo político: os socialistas, pela mão de António Guterres, ascendem ao poder. Um ano depois, em Espanha, José María Aznar derrota o PSOE e entrega a vitória ao PP por oito anos.
Aznar ainda teria a companhia dos portugueses Durão Barroso e Pedro Santana Lopes. Em 2004, no entanto, a Península Ibérica virou socialista: José Sócrates e José Luis Rodríguez Zapatero venceram as respetivas eleições e governaram até 2011. Nesse ano, Pedro Passos Coelho e Mariano Rajoy devolveram o centro-direita ao poder, em novo alinhamento (consecutivo) das orientações políticas.
Quatro anos depois, PSD e PP voltam a ganhar as eleições, mas desta vez com desfechos diferentes: Costa tentou (e conseguiu) fazer uma ‘geringonça’ à esquerda; Sánchez tentou, falhou e Espanha foi de novo a votos em 2016. Rajoy voltou a sair vencedor, conseguindo formar governo com o apoio do Ciudadanos. O PSOE só chegaria ao poder em 2018; Costa teria a sua primeira vitória eleitoral nas legislativas de 2019.
Chega aumenta pressão e antecipa PSD dependente
Nesse caso, Montenegro será confrontado mais cedo do que esperaria com a decisão de deixar ou não o Chega de fora e já sabendo se a estratégia de Feijóo foi ou não bem sucedida. É precisamente isso que pensa Diogo Pacheco Amorim, um dos homens mais influentes do Chega. “Se as eleições em Espanha podem servir de laboratório? Sim. Julgo que podem ajudar a desbloquear o PSD, dar mais força à ala dentro do PSD que defende uma coligação com o Chega”, teoriza o deputado. Ainda assim, Pacheco Amorim deixa claro que qualquer extrapolação direta entre o que aconteceu em Espanha e o que pode acontecer em Portugal é errada – o PSD não é o PP, e Montenegro não é Feijóo.
Para Pacheco Amorim, Feijóo conseguiu o resultado que conseguiu porque “não tem medo de dizer que é de direita”, o que o torna mais resiliente aos avanços dos partidos à sua direita. Onde no PP existe clareza, alega, no PSD sobra ambiguidade. E isso torna a margem de crescimento do Vox inferior à do Chega. Basta ver o que aconteceu em Madrid, onde Isabel Ayuso, presidente da Região Autónoma desde 2019 e uma coqueluche da direita espanhola, teve um dos resultados da noite, conseguiu a maioria absoluta e dispensou alegremente qualquer acordo com o Vox. Para o Chega, Montenegro não é Feijóo, muito menos Ayuso – o flanco social-democrata está, por isso, mais do que aberto.
Além disso, continua Pacheco Amorim, o ciclo político espanhol é diferente do português. Pedro Sánchez tinha até aqui um acordo governamental com a extrema-esquerda; António Costa goza de uma maioria absoluta. A existir uma mudança de ciclo político em Portugal, o debacle eleitoral do PS nunca será tão grande como poderá ser o do PSOE – os eleitores portugueses tenderão a castigar menos os socialistas ou a agregaram-se menos à volta do voto útil no PSD do que os espanhóis. Por outras palavras: o PSD estará sempre muito mais dependente do Chega do que o PP do Vox.
Existe outro dado que conforta o Chega: uma vez derrubado o muro à esquerda, como aconteceu em Portugal, mas também Espanha (Podemos) e em Itália (Movimento 5 Estrelas), derrubou-se também o muro à direita, com o Fratelli de Giorgia Meloni em Itália, com o Vox de Abascal em várias regiões de Espanha e, muito provavelmente, também no governo do país. Na Finlândia, o processo foi ligeiramente diferente, uma vez que o partido de centro-esquerda de Sanna Marin foi derrotado e deu lugar a uma aliança entre o Partido da Coligação Nacional, de centro-direita, e o Partido dos Finlandeses, formação nacionalista e anti-imigração.
Liberais recusam lições de Espanha
Seja como for, e apesar de o Chega continuar a acreditar que será incontornável em qualquer futuro governo de direita, é Montenegro quem tem a última palavra no derrubar desse muro. Para já, com os dados que existem em cima da mesa, continua a vingar a tese dominante: os sociais-democratas tudo farão para poder dispensar o apoio do Chega e estão convictos de que desde que não exista uma maioria de esquerda capaz de derrubar um eventual executivo liderado pelo PSD haverá condições de governabilidade – o que pressupõe que o Chega seja forçado a viabilizar uma solução de direita, incluindo orçamentos, mesmo não tendo lugar à mesa das negociações, cenário que Ventura já recusou em vários momentos.
Ora, qualquer tentação que o PSD possa ter de conversar com o Chega terá um efeito automático no outro potencial parceiro à direita. Rui Rocha, líder da Iniciativa Liberal, já deixou claro que não fará parte de qualquer solução que inclua Ventura. Tal como contava aqui o Observador, os liberais continuam desconfortáveis com a ambiguidade latente que existe entre sociais-democratas.
“Temos tentado pressionar o PSD ao máximo para marcarem o corte com o Chega — não por oportunismo, mas porque há muito eleitorado que não vota no PSD por receio de uma coligação com o Chega (como aconteceu com Rui Rio nas legislativas de 2022). É do próprio interesse do PSD fazer essa demarcação”, comentava um dirigente liberal nessa altura. “O eleitorado que vota no Chega deve ser ouvido; o Chega deve ser acantonado.”
Igualmente atentos ao que se passa em Espanha – embora céticos em relação a possíveis comparações entre as duas realidades –, os liberais insistem no ponto: se uma aliança entre PP e Vox despertar cobiça no PSD ou alguma tentação de imitar a estratégia de Feijóo, a Iniciativa Liberal sentar-se-á na bancada da oposição. Não há conversa, a porta a Ventura está fechada, o tema está encerrado. “Quando Luís Montenegro aceitou almoçar com Rui Rocha, fê-lo sabendo quais são os pontos da Iniciativa Liberal. Nada mudou”, sublinha fonte do partido, numa referência ao momento mediático protagonizado pelos dois líderes para selar uma espécie de pré-aliança.
Para os liberais ouvidos pelo Observador, todo e qualquer paralelismo entre os resultados da direita espanhola e da direita portuguesa esgota-se aí. A hecatombe sofrida pelo Ciudadanos, partido-irmão da Iniciativa Liberal, que foi de tal forma esmagado pelos resultados que desistiu de se apresentar a votos a 23 de julho, é lamentada, naturalmente, mas não merece grandes reflexões: resulta de erros próprios e de uma indefinição estratégica que nunca existiu na IL.
A equipa de Rui Rocha acredita que não terá o mesmo destino porque os dois partidos, apesar de próximos –, sempre existiram canais bilaterais abertos e houve elementos do Ciudadanos a apadrinharem iniciativas dos liberais – tiveram sempre muitas diferenças. A começar pela mais evidente: ao contrário da IL, o Ciudadanos nasce em grande medida como uma agremiação de figuras de centro-esquerda e de desiludidos com o PSC, ramo regional do PSOE, como reação à questão da independência da Catalunha.
A partir daí, o caminho de afirmação do Ciudadanos fez-se de ziguezagues, admitindo, em diferentes momentos, apoiar governos socialistas e de centro-direita, e de hesitações quanto à sua corrente liberal, primeiro envergonhada, depois assumida. Dilema que o partido de Rui Rocha nunca enfrentou. Para o núcleo duro do líder da Iniciativa Liberal, essa clareza coloca os liberais portugueses numa posição eleitoralmente mais vantajosa e resiliente. O tempo dirá se é assim mesmo.