Christine Lagarde brindou (com um copo de água), usou uma emblemática expressão em castelhano (que sera, sera) e até entoou um insólito “tururu” enquanto, com toda a pacatez do mundo, procurava nas suas cábulas o dado económico de que precisava para responder a uma questão dos jornalistas. Na conferência de imprensa desta quinta-feira, em que foi anunciado mais um (pequeno) corte dos juros, a presidente do BCE fez tudo para transmitir aos mercados uma mensagem clara: a autoridade monetária da zona euro não tem pressa em descer as taxas. Só perto do Natal deverá haver novo alívio para quem tem créditos com taxa variável.
Essa foi a perceção que rapidamente se instalou nos mercados financeiros. Antes de Christine Lagarde falar, alguns analistas admitiam que o Banco Central Europeu (BCE) poderia sinalizar alguma abertura para baixar novamente os juros em outubro, mas a francesa, falando em castelhano, não se comprometeu – “que sera, sera“. Todos os sinais que deu, aliás, foram no sentido contrário: as decisões vão continuar a ser “dependentes dos dados” e, sublinham os analistas do banco holandês ING, “não são muitos os dados relevantes que serão divulgados até à reunião de outubro”.
Daí que, quando Lagarde abandonou o palco, os mercados apontavam para uma probabilidade inferior a 30% de que possa haver uma nova descida já no próximo mês – a tal reunião que Mário Centeno tinha dito que seria “engraçada“. Só a 12 de dezembro, altura em que o staff de economistas de Frankfurt volta a atualizar as projeções para a inflação e para o crescimento económico na zona euro, é que os analistas acreditam que o Conselho do BCE poderá ter justificação para fazer mais uma descida – que deve voltar a ser pela dose mais curta, 25 pontos-base.
Novo corte nas taxas de juro? “Normal é que o Banco Central Europeu espere por dezembro”
Foi essa atualização dos dados económicos oficiais (que foi feita nesta quinta-feira e voltará a acontecer na última reunião antes do Natal) a justificação para a descida dos juros para 3,5%. O facto de as novas projeções terem ficado praticamente inalteradas em relação às de junho foi aquilo que “deu conforto” ao BCE – expressão usada por Lagarde – de que a inflação está, como previsto, a “mover-se em direção ao objetivo”, isto é, os 2% que são a meta de médio prazo na zona euro.
Economistas do BCE preveem inflação subjacente mais alta do que previsto
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Os economistas do BCE preveem, nas projeções trimestrais agora atualizadas, uma inflação abaixo de 2% em 2026. As novas projeções apontam para uma taxa de inflação média de 2,5% em 2024, 2,2% em 2025 e 1,9% em 2026.
“A inflação deverá aumentar novamente no final deste ano, em parte porque as anteriores quedas acentuadas nos preços da energia serão excluídas das taxas anuais”, afirma o BCE em comunicado. Depois, a “inflação deverá diminuir em direção ao nosso objetivo durante o segundo semestre do próximo ano”, antecipam os economistas.
Para a inflação subjacente, aquela que exclui os preços da energia e dos alimentos não-processados (e dá um retrato mais fiel das pressões inflacionistas) “as projeções para 2024 e 2025 foram ligeiramente revistas em alta“, porque “a inflação nos serviços foi superior ao esperado”.
Porém, os economistas “continuam a esperar um declínio rápido da inflação subjacente, de 2,9% este ano para 2,3% em 2025 e 2,0% em 2026”.
Já as projeções de crescimento económico na zona euro foram revistas (ligeiramente) em baixa, apontando-se agora para uma expansão económica de 0,8% neste ano de 2024, menos uma décima do que aquilo que se estimou em junho.
Para os próximos anos, também há revisões (negativas) de uma décima: 1,3% em 2025 e 1,5% em 2026.
A decisão de descer os juros em 25 pontos-base já tinha sido antecipada pelos analistas e já vinha, por isso, provocando uma queda das taxas Euribor nas últimas semanas (sendo essas taxas os indexantes calculados a partir dos juros a que os bancos da zona euro emprestam uns aos outros, no chamado mercado interbancário).
Mas a queda acelerada das últimas semanas, que levou a Euribor a 12 meses a descer para menos de 3%, poderá, agora, abrandar caso se consolide a expectativa entre os analistas de que só daqui a três meses poderá haver novo corte dos juros do BCE. “Na conferência de imprensa desta quinta-feira, o BCE deu a impressão que não tenciona cortar os juros novamente em outubro“, afirma Jörg Krämer, economista-chefe do banco alemão Commerzbank.
Essa é uma possibilidade que não está totalmente descartada, como disseram fontes do BCE à Bloomberg após a conferência de imprensa, mas a julgar pela reação dos mercados financeiros – sempre voláteis – uma descida das taxas de juro em outubro não é, de todo, o cenário mais provável. “O mercado espera agora que o BCE corte mais uma vez este ano, provavelmente em 12 de dezembro, mas atribuindo uma probabilidade de 30% a um corte já em 17 de outubro”, afirma Filipe Garcia, economista do IMF – Informação de Mercados Financeiros.
O facto de a taxa de inflação medida pelo Eurostat ter baixado para menos de 2% levou alguns analistas a admitir que o BCE poderia abrir a porta a mais uma descida já no próximo mês – sobretudo tendo em conta que se espera que, entretanto, a norte-americana Reserva Federal também baixe os juros. Mas “a presidente Lagarde desvalorizou a importância de a taxa de inflação ter sido menor do que 2% em setembro”, salienta Jörg Krämer, acrescentando que a inflação subjacente (que exclui os preços da energia) continua “persistentemente elevada”. Além disso, o próprio BCE salientou que a inflação no setor dos serviços continua “num nível mais elevado do que o previsto”.
Centeno não votou nesta quinta-feira. Nem poderá votar em outubro
Caso seja posta em cima da mesa, na reunião de outubro, a possibilidade de haver um corte dos juros em outubro, o que não vai ajudar a que essa ideia vingue é o facto de Mário Centeno não ter direito de voto nessa reunião. Aliás, devido à rotação de direitos de voto que existe no Conselho do BCE, o governador do Banco de Portugal já não pôde contribuir para a decisão desta quinta-feira que, segundo Lagarde, foi “unânime”.
A partir de dezembro, porém, já voltará a ter direito de voto o governador português, que se tem afirmado como uma das principais “pombas” do BCE – isto é, um dos maiores defensores de uma redução mais rápida dos juros. E é a partir daí que se espera que os juros acelerem a descida face ao atual nível de 3,5%, que o próprio BCE reconhece ser um nível que restringe ativamente a atividade económica.
“O mercado desconta que a taxa de depósitos finalize o ano de 2025 em 2,0%, o que implicaria a aceleração do ritmo de cortes no próximo ano“, refere Filipe Garcia, numa análise partilhada com o Observador. Esta perspetiva terá saído reforçada pelo facto de a própria Christine Lagarde ter indicado que é a partir de 2025 que se espera que a inflação convirja mais rapidamente para o objetivo de 2%.
Os analistas do ING têm a mesma perceção. “Quando olhamos para a forma como a economia da zona do euro poderá evoluir nos próximos meses, antecipamos que o BCE irá, eventualmente, acelerar o ritmo de novos cortes nas taxas. Não neste ano, mas no ano que vem“, escrevem os especialistas. E “porque não este ano? Porque, neste momento, as negociações salariais alemãs e as crescentes expectativas de preços de venda ainda apontam para alguma rigidez da inflação“, explicam os analistas. “Dado o historial bastante fraco do BCE em prever a inflação quando ela está a subir, é provável que o banco central vá querer ter a certeza absoluta antes de se envolver em cortes de taxas mais agressivos”, acrescentam.
O problema é que, como o BCE voltou a admitir nesta quinta-feira, os riscos na economia “pendem para o lado negativo”. Ou seja, é maior o risco de que a economia surpreenda pelo lado negativo do que pelo lado positivo. E, caso esse risco se materialize, o BCE não terá alternativa que não acelerar na descida dos juros, antecipam os analistas.
“Uma perspetiva de crescimento mais fraca na zona do euro deve ser o gatilho para [o BCE] eventualmente enveredar por cortes de taxas mais agressivos”, diz o banco holandês ING, acrescentando que “as previsões do BCE têm, consecutivamente, sobrestimado o ímpeto e a força da economia da zona do euro”. Por isso, diz o ING, “parece ser apenas uma questão de tempo antes que uma perspetiva de crescimento mais sombria se traduza em cortes de taxas mais rápidos”.
Por outras palavras, depois da subida mais rápida e agressiva dos juros (entre 2022 e 2023), os analistas consideram que o BCE acabará por ter de acelerar, também, o ritmo das descidas. O que leva Filipe Garcia a questionar se era necessário ter subido tanto as taxas de juro.
“Na conferência de imprensa desta quinta-feira, Lagarde destacou que a evolução dos preços da energia foi uma principais causas da subida da inflação e que agora também o é na descida, classificando esta variável como ‘exógena'”, diz o especialista, acrescentando a pergunta: “se esse era o entendimento, porque o BCE terá colocado a política monetária tão restritiva, subindo as taxas tanto e tão depressa?”