Siga aqui o liveblog sobre a votação das moções de censura em França, nesta quarta-feira
Quase 15 anos depois, um governante europeu voltou a entoar a mesma frase que se tornou um ícone da crise das dívidas soberanas: “Nós não somos a Grécia“. Desta vez, foi um ministro de França, segunda maior economia da zona euro que, com contas públicas desequilibradas e mergulhada numa complexa crise política sem fim à vista, viu os custos da dívida subirem para mais do que aquilo que os investidores exigem para emprestar à Grécia. Dejá vu? Os analistas dizem que o quadro não é tão negativo, mas admitem que os riscos podem ser ainda mais graves.
“França não é a Grécia, França tem uma economia, uma situação no mercado de trabalho, na atividade e atratividade económica, um poder económico e demográfico que estão, todos eles, num nível bem superior – isso significa que somos diferentes da Grécia”, afirmou Antoine Armand, (ainda) ministro da Economia francês numa entrevista à televisão BFMTV na última quinta-feira.
Esse foi o dia em que os investidores no mercado de dívida, pela primeira vez desde 2008, exigiram rendibilidades semelhantes para comprar dívida de França e da Grécia – o país que esteve, em 2010, no epicentro da crise que levou vários países, incluindo Portugal, a perderem o acesso aos mercados de dívida e a terem de pedir assistência financeira.
Dias antes, uma outra responsável do governo francês tinha avisado que França enfrentava um “possível cenário semelhante à Grécia”. Quem o disse foi uma porta-voz do governo, Maud Bregeon, que admitiu que a possível “tempestade nos mercados” de que tinha falado o primeiro-ministro Michel Barnier — que esta quarta-feira viu ser aprovada, por 331 votos, a moção de censura que vai fazer cair o seu governo — significaria que França poderia ver o acesso aos mercados em perigo e enfrentar uma crise semelhante à que assolou Atenas em 2010.
França ameaça lançar “grande tempestade nos mercados”. Risco da dívida maior desde a crise de 2012
Apesar de os juros da dívida de França terem igualado os da Grécia, com todo o simbolismo que isso acarreta, até ao momento a “temperatura” tem subido em lume baixo. Os analistas do Goldman Sachs até diziam nesta terça-feira, com alguma dose de sarcasmo, que apesar de França estar prestes a ficar sem governo (ainda não tinha sido votada a censura) e ter um défice de 6% “os mercados simplesmente parecem não estar dispostos a incomodar-se com isso”. A reação imediata à aprovação da censura mostra precisamente isso. Os contratos futuros da bolsa francesa registavam uma subida ligeira.
Os juros da dívida de França têm subido de forma lenta, uma mão-cheia de pontos-base, no máximo, a cada dia. A diferença em relação aos custos de financiamento da Alemanha – que, apesar dos problemas que também assolam essa economia, é a referência “sem risco” no mercado de dívida europeu – tem vindo a subir mas continua perto dos 85 pontos-base, perto dos valores mais elevados desde 2012 (e o dobro do spread de Portugal) mas, ainda assim, um indicador de risco relativamente benigno.
Porém, embora lento, o aumento da pressão sobre Paris é indisfarçável, sobretudo desde que o BCE publicou, há poucas semanas, um relatório semestral sobre estabilidade financeira. Nesse documento, o banco central alertou que uma das fontes de preocupação estava na dívida soberana e no risco de que a “derrapagem orçamental” que se verifica em alguns países pudesse “fazer reacender os receios no mercados em torno da sustentabilidade da dívida”.
O principal alvo desse alerta era óbvio: França, o país onde nasceu a atual presidente do BCE, Christine Lagarde. A crise política em torno do governo de Michel Barnier, político mais conhecido internacionalmente por ter negociado o Brexit (pela Comissão Europeia) com o Reino Unido, acentuou-se depois de ter sido apresentada uma proposta de Orçamento do Estado que pretende cortar a despesa (e aumentar impostos) num valor de 60 mil milhões de euros.
O objetivo era baixar o défice das contas públicas em 2025 para 5% do Produto Interno Bruto (PIB), ainda assim bem acima dos limites máximos na União Europeia – mas um pouco melhor do que os 6,1% previstos para este ano de 2024. O governo acredita que este será um primeiro passo no caminho que irá levar França a ter um défice inferior a 3% em 2029 – ainda assim um objetivo considerado ambicioso por vários economistas, dado que as perspetivas de crescimento económico não são animadoras.
“O tema da dívida é indissociável da desaceleração do crescimento porque estamos numa fase em que as economias dariam as boas vindas a estímulos e não ao seu contrário”, afirma Filipe Garcia, economista do IMF – Informação de Mercados Financeiros. O especialista diz que este “é um ovo de Colombo para a união monetária: se a política orçamental for expansionista, agrava-se a dívida, mas ser comedido nos gastos pode levar insatisfação das populações, levando a mudanças de governo, porventura em favor de forças políticas (muito) menos europeístas”.
Andrew Kenningham, economista-chefe para a Europa da firma londrina Capital Economics, antevê que “é pouco provável, num futuro próximo, que França tenha um governo com mandato para apertar a política orçamental, pelo que os riscos para o mercado obrigacionista irão continuar a crescer”.
Porém, o economista diz que, “em muitos aspetos, a situação de França é muito menos preocupante do que a da Grécia há quinze anos”. “É certo que o peso da dívida pública da Grécia em 2009 não era muito maior do que o da França hoje, mas o seu défice era muito mais elevado, em cerca de 15%, em vez de 6% do PIB”, afirma Andrew Kenningham, acrescentando que “as perspetivas de crescimento da Grécia eram muito piores”.
Depois de pedir ajuda internacional e se submeter a um programa da troika, “a Grécia teve de reduzir o seu saldo primário [saldo orçamental excluindo pagamentos de juros] nuns gigantescos 14% do PIB ao longo de quatro anos (2013-2016), ao passo que, na nossa opinião, França precisa de um ajustamento de ‘apenas’ 3% para estabilizar o rácio da dívida”.
Essa é uma diferença, entre os tempos da crise da dívida e agora. Outra diferença é que “a arquitetura da união monetária foi completamente reformulada”, salienta o mesmo economista do Capital Economics, salientando que, agora, “o BCE tem um mandato e tem ferramentas para apoiar a França caso os problemas se agravarem, para limitar o contágio”.
Além do programa de compra de dívida lançado por Mario Draghi, o Outright Monetary Transactions (OMT), que nunca precisou de ser usado, o BCE criou, mais recentemente, um mecanismo que também prevê a possibilidade de ter o banco central a comprar títulos de dívida dos países nos mercados. O novo mecanismo, que se chama Transmission Protection Instrument (TPI), inspirou-se no OMT e serve para tentar dissuadir os investidores mais especulativos de fazerem apostas na queda dos títulos (porque correm o risco de, se o BCE começa a comprar e os preços sobem, serem apanhados em contrapé).
“Num cenário de crise mais séria, por exemplo, de falta de confiança dos mercados, o BCE poderá ser chamado a jogo”, afirma Filipe Garcia, não excluindo “a possibilidade de compra de títulos dos países em maior dificuldade ou que os juros baixem para contrabalançar políticas orçamentais contracionistas e para permitir um serviço da dívida a custo mais baixo”. Quando um banco central compra títulos de dívida no mercado, isso é algo que induz procura por esses títulos – o que contribui para aumentar o preço desses títulos (baixando, como consequência, os juros implícitos).
A existência desse mecanismo do BCE poderá estar, já nesta altura, a conter o agravamento da pressão sobre a dívida de França. E há um outro fator que também dá alguma tranquilidade aos investidores: “existem menores dúvidas acerca do nível de apoio político à pertença de França à zona euro”, diz Andrew Kenningham.
“No início da década que começou em 2010, não era claro se os outros países iam ajudar a Grécia a permanecer na união monetária”, lembra o economista, recordando que “em 2015 o governo alemão esteve perto de empurrar a Grécia para fora do euro”. “Agora, em contraste, não haveria qualquer hesitação na Europa em relação a fazer ‘o que fosse necessário’ para manter França, já que é um membro-fundador, é a segunda maior economia e tem muito peso político”, afirma o economista da Capital Economics. “Em resumo, França… é França…”, resume.
Filipe Garcia, da IMF – Informação de Mercados Financeiros, mostra-se relativamente tranquilo: “o caso francês, por si só, não deverá ser suficiente para desencadear uma ‘crise da dívida’ no curto prazo”. O especialista diz que “parece haver consciência do problema, com o atual primeiro-ministro a tentar implementar políticas de contenção fiscal e com a perceção geral de que não se pode deixar o problema escalar”.
Porém, seria um erro subestimar o problema, sobretudo no contexto económico europeu que está a dar razões para alguma preocupação. “De facto, temos um cenário em que duas das principais economias da união monetária têm uma posição orçamental muito desfavorável, França e Itália, e a maior está em estagnação, a Alemanha”, afirma Filipe Garcia.
O Capital Economics diz que não está, “nesta fase”, a antecipar uma “crise da dívida soberana centrada em França” – “mas acreditamos que o spread das obrigações do Tesouro francês vão continuar a alargar-se, na comparação com os outros países”. Isto porque, explica Andrew Kenningham, “com o rácio da dívida em trajetória ascendente, se for eleito um governo que prometa cortes de impostos não financiados ou aumento da despesa poderá desencadear uma maior perda de confiança nas contas públicas de França”.
O risco é que os atuais prémios de risco de França, que continuam abaixo de 100 pontos-base, saltem para os três dígitos e, potencialmente, expludam para “200 pontos base ou mais”, diz Kenningham.
Se isso acontecer, o economista acredita que “o BCE deverá ser capaz de limitar o contágio à maioria dos outros países com o TPI”, o mecanismo de compra de dívida. E França, em concreto, poderá ter peso político suficiente para “negociar condições especiais como isenções às regras fiscais da UE ou, até, emissão de dívida conjunta” fazendo, em troca, promessas de consolidação orçamental.
“Esta seria uma situação muito diferente da crise grega, mas poderia, com certeza, levantar novamente questões sobre o futuro a longo prazo da zona euro”, admite o especialista do Capital Economics.