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Um setor crucial para a transição energética, dois parceiros fortes, um enquadramento político favorável com a promessa de apoios públicos e um país com exploração mineira. Pareciam argumentos fortes para fazer da construção de uma refinaria de lítio em Portugal o melhor dos projetos.
Depois de mais de 50 milhões de euros mobilizados e perdidos (dos quais 40 milhões vão afetar os resultados de 2024 da Galp), a empresa portuguesa decidiu desligar a ficha do Aurora, o mais ambicioso investimento industrial para a fileira do lítio anunciado para Portugal. Não sem antes procurar, durante meses, alternativas, desde parceiros tecnológicos, clientes que quisessem entrar ou até compradores de tudo o que tinha sido feito até agora. Mas ninguém quis pegar no Aurora depois da Northvolt ter cancelado a sua presença no projeto.
A empresa sueca saiu de cena meses antes de serem conhecidas as dificuldades financeiras e a reestruturação que a viriam a empurrar a para um pedido de proteção de credores, o primeiro passo num processo de falência.
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O Governo lamenta a decisão da Galp que manteve o fim do projeto mesmo depois de desbloqueado o novo mecanismo de apoios públicos a investimentos estratégicos e que poderia ter levado à atribuição de uma verba significativa ao projeto. Apesar das palavras otimistas do ministro da Economia sobre o interesse de outros investidores e das manifestações de outros promotores da fileira do lítio em Portugal, o falso arranque do Aurora e o fracasso da própria Northvolt alimentam o receio de que a Europa não consiga ter um papel principal na mobilidade elétrica. O que, se acelerar nessa direção, só vai aumentar a atual dependência à China.
A parceira perfeita
Para uma empresa como a Galp, o lítio era um investimento com lógica. É uma matéria-prima central na mobilidade elétrica que, por seu turno, é a grande concorrente do motor de combustão interna alimentado pelo petróleo e pelos combustíveis produzidos, refinados e vendidos pela Galp. O facto de Portugal ser apontado como tendo das maiores reservas da Europa de espodumena (da qual se extrai lítio) era mais um sinal a favor.
A empresa ainda estudou a hipótese de entrar diretamente na exploração mineira, mas depressa recuou perante o risco reputacional que uma mina acarreta. E os estudos feitos nessa fase mostraram que as reservas de Portugal não iam chegar para abastecer uma unidade industrial de conversão de lítio de dimensão europeia. Seria sempre necessário importar.
Daí que mais importante do que uma ligação às empresas mineiras era assegurar um elo à procura. E nesse ângulo, a Northvolt era a parceira perfeita.
A startup sueca era vista como a grande esperança europeia para fazer frente à concorrência chinesa nas baterias elétricas. Estava a crescer rapidamente e tinha contratos para abastecer os grandes clientes automóveis europeus (como por exemplo a Volkswagen e a BMW) que, por sua vez, também investiram na Northvolt. Estava garantida a credibilidade, o know-how tecnológico, o escoamento do hidróxido de lítio da nova refinaria e a integração da refinaria na cadeia de valor europeia. A obrigação da União Europeia (UE) de incorporação de baterias mais sustentáveis também dava força ao desenvolvimento de uma indústria made in Europa.
Em dezembro de 2021, a Galp anunciava a criação de uma joint-venture para construir uma refinaria de lítio em Portugal, num investimento de 700 milhões de euros. Com uma capacidade anual de produção de até 35 mil toneladas de hidróxido de lítio, o projeto prometia criar 1.500 postos de trabalho e ter arranque comercial até 2026. Um calendário desenhado à medida para poder aproveitar os fundos do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência).
O projeto foi bem acolhido pelo Governo socialista com palavras de saudação do então ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, que antes tinha sido muito duro para com a gestão feita pela Galp do fecho da refinaria de Matosinhos. “Não queremos explorar lítio para exportar, mas para o transformar e criar em Portugal o maior valor acrescentado possível”, declarou em dezembro de 2021 o então titular da pasta do Ambiente.
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A Aurora começou por ser uma joint-venture entre iguais — 50% para cada um dos dois acionistas — que ganhou realidade jurídica em 2022 com a criação de uma empresa com sede em Portugal e com a escolha da localização para a nova unidade, Setúbal.
Apesar de não ser o local preferido para o Governo — o então ministro Matos Fernandes era mais favorável de uma localização a norte —, a Galp e a Northvolt escolheram Setúbal. Dada a necessidade de importar matéria-prima, estar próximo de um porto era mais importante do que a proximidade a uma mina. Além disso, da matéria prima que chegaria à unidade só menos de 10% seria aproveitada para a produção de hidróxido de lítio. O resto da espodumena teria como destino a indústria cimenteira aproveitando a proximidade da Secil que tem fábrica na região.
Foi sobretudo em 2023 que os trabalhos de desenvolvimento da unidade ganharam gás, alimentados com prestações acessórias da Galp e da Northvolt de 11 milhões de euros cada que permitiram a contratação de vários estudos e projetos. Foram igualmente contratados quadros qualificados, cerca de 20 no final de 2023, e pago um sinal de 1,5 milhões de euros para a aquisição dos terrenos na Mitrena no Porto de Setúbal.
O que correu mal
O projeto foi classificado como PIN (Potencial Interesse Nacional) e estava nas agendas mobilizadoras do PRR para obter fundos públicos. Estavam em curso os processos de avaliação de impacte ambiental e o arranque chegou a estar previsto para 2025.
Mas durante o tempo que demorou a dar os passos jurídicos, a realizar os estudos e a desencadear processos administrativos e pedidos de licenciamento muita coisa mudou no mundo da energia e da transição energética e a Europa começou a ficar definitivamente para trás na corrida elétrica. Uma das complicações enfrentadas foi o acesso à matéria-prima — o lítio — dificultado pela estratégia chinesa de comprar empresas produtoras.
Segundo a imprensa internacional, os chineses adquiriram cerca de metade das minas que estavam no mercado — muitas em África, mas também na Austrália, país que chegou a bloquear a aquisição de operadores por parte de empresas com ligação à China. Além de assegurar o acesso a esta matéria-prima essencial para a indústria chinesa de baterias, a ofensiva no mercado mundial permite também controlar os preços e assim condicionar os concorrentes.
O acordo da Galp com a Savannah que previa investimento direito na atividade de extração em troca da aquisição do minério não foi para a frente. O projeto Aurora assentava no lítio que iria ser extraído em Portugal, mas não era suficiente, o que obrigava, por isso, a importar muita matéria-prima.
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Isso mesmo foi explicado pelo presidente executivo da Northvolt durante a apresentação da joint-venture em dezembro de 2021. Paolo Cerruti referiu a intenção de importar de países que têm a exploração mais desenvolvida. Canadá era uma das origens preferenciais por causa das salvaguardas ambientais e adotadas pelo país, mas Brasil e Austrália eram outras possíveis.
Em 2023, foram dados dois passos fundamentais para a exploração de lítio em Portugal com a aprovação, com condições, na APA (Agência Portuguesa do Ambiente) dos estudos de impacte ambiental para as minas de Montalegre e Boticas. Mas o final do ano viria a trazer uma sombra negra sob a forma de uma operação judicial conhecida como Influencer que lançou suspeitas sobre os processos de licenciamento e aprovação de grandes projetos da transição energética.
Apesar de o radar estar sob o data center de Sines, em relação ao qual foram constituídos vários arguidos, as buscas envolveram também as promotoras dos projetos de lítio Lusorecursos (Montalegre) e Savannah (Boticas). Ainda que não se conheçam desenvolvimentos judiciais sobre estes dois casos.
Estava Portugal absorvido nos efeitos colaterais Operação Influencer que fez cair o Governo, quando dois acidentes ocorreram na maior unidade da Northvolt em Skekkeftea, no norte da Suécia, provocando dois mortos. Este era o maior projeto da empresa sueca e deveria atingir uma capacidade anual de produção 60 GWh, suficiente para produzir um milhão de baterias para carros elétricos todos os anos. Era vital para dar resposta às muitas encomendas que tinha dos construtores europeus que também a apoiarem financeiramente.
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De acordo com o podcast da produtora do Financial Times, Michela Tindera, “Porque é que a Northvolt falhou em tornar-se no campeão europeu de baterias”, esta mega-fábrica estava a produzir muito menos baterias do que o previsto e contratado. E os clientes começaram a cancelar as encomendas. A unidade localizada no círculo polar ártico para aproveitar a energia barata das hídricas, contava com a tecnologia e os engenheiros asiáticos do Japão, Coreia e também da China para instalar e operar o equipamento. Alguns destes engenheiros usariam o google translator para comunicar, o que condicionou a fluidez das operações, já limitadas pela pandemia.
Apesar de anunciados desenvolvimentos tecnológicos, a Europa está bem atrás da China que, segundo dados da Agência Internacional de Energia, controla mais de 80% da produção de baterias.
A Northvolt terá sido também vítima do seu sucesso. Criada em 2016 como uma startup, a empresa conseguiu angariar 15 mil milhões de dólares em poucos anos junto de investidores financeiros e industriais, o que gerou um nível tal de liquidez que pode ter alimentado erros de gestão: desde a multiplicação de projetos e parcerias em vários países — do Canadá a Portugal —, passando por “queimar dinheiro” ao pagar em excesso a fornecedores e aceitando prazos irrealistas para cumprir encomendas. Estas hipóteses são referidas pelos intervenientes do podcast do Financial Times que acompanharam de perto o percurso da Northvolt. Quando entrou em processo de insolvência, o grupo tinha dívidas acumuladas de de 15,8 mil milhões de dólares e apenas 30 milhões em caixa.
Já este ano têm vindo a ganhar força os sinais de queda da procura, com o mercado europeu a recuar nas vendas de automóveis totalmente elétricos. Esta tendência está em contramão com todas as previsões feitas no passado recente e afeta os modelos europeus, mais caros que os concorrentes chineses.
Com a redução das vendas, vieram menos encomendas por parte dos construtores automóveis para equipar carros elétricos. A crise da indústria automóvel europeia que apanhou os gigantes Volkswagen e Stellantis também é o resultado do avanço competitivo que a indústria chinesa conseguiu nos carros elétricos e que está a fazer os construtores europeus perderem o seu maior mercado internacional — a China — que rapidamente está a deixar de comprar os modelos de combustão interna nos quais a Europa é forte.
Os avisos da Northvolt e a tentativa para salvar o projeto
Os responsáveis da Northvolt perceberam bastante cedo a mudança e avisaram a Galp no início deste ano de que iam parar de investir no Aurora, além dos 11 milhões de euros que tinham injetado em 2023. Mas a parceira portuguesa demorou meses a encaixar esta nova realidade e continuou sozinha a colocar dinheiro na Aurora. Em abril quando foi conhecido o estudo de impacte ambiental do projeto, a posição da Northvolt tinha recuado para 30%. Já o valor do investimento tinha subido dos 700 milhões de euros anunciados em 2021 para 1,1 mil milhões de euros.
De acordo com os documentos consultados pelo Observador, foram feitos dois aumentos de capital este ano na empresa Aurora Lithium. O primeiro de 43 milhões de euros realizado em março inclui a conversão de 26,5 milhões de euros de prestações acessórias em capital e 17 milhões de euros em dinheiro. No segundo em setembro entram mais nove milhões de euros. Dos poucos mais de 52 milhões de euros colocados em capital, a Galp responde por cerca de 40 milhões.
O dinheiro foi usado para contratar vários projetos e engenharia e para pagar aos cerca de 20 trabalhadores entretanto contratados. Foi ainda pago um sinal de 1,5 milhões de euros para comprar o terreno onde ficaria instalada a unidade. Em 2023, a empresa pagou quase 5 milhões a fornecedores e teve custos com pessoal da ordem dos dois milhões de euros.
O fim da linha chegou em novembro depois de uma brusca infrutífera por um parceiro e quando seria necessário meter mais dinheiro no Aurora para começar a contratar os projetos de engenharia e equipamentos.
O Observador questionou a Galp sobre estas operações, mas fonte oficial da empresa remeteu para a declaração feita quando anunciou a 25 de novembro a suspensão do projeto.
“Apesar dos esforços significativos, que envolveram a criação de uma equipa qualificada, a condução de estudos de engenharia e a preparação de processos de licenciamento, e a busca de incentivos e financiamento, o atual contexto e a indisponibilidade de um parceiro internacional tornam impossível continuar com o projeto”, indicou.
Um maior apoio público podia ter feito a diferença?
O Governo foi informado e reagiu com tristeza e consternação manifestadas em público por dois ministros: o da Economia e do Ambiente. Já esta sexta-feira, fonte oficial do Ministério da Economia, citada pelo Jornal de Negócios, indica que este ministério “só tomou conhecimento da decisão de desistência da Galp nestas últimas semanas, na janela de dias em que a mesma foi tornada pública”.
Quer Pedro Reis, quer Graça de Carvalho prometeram apoios públicos dentro do quadro europeu para novos projetos de lítio.
Apesar do projeto ter perdido o acesso aos fundos do PRR quando saiu das agendas mobilizadoras por incompatibilidade de calendário de execução no início deste ano, os apoios públicos, ou a falta deles, não foi a principal razão para o seu cancelamento, sabe o Observador.
Segundo informação recolhida, estava bem encaminhado o acesso ao sistema de incentivos públicos para investimentos em setores estratégicos para a transição energética. Este programa usa fundos nacionais, mas teve de ser autorizado pela Comissão Europeia por causa das ajudas de Estado, e o regulamento só foi publicado dias depois de ser conhecido o fim da refinaria de lítio. Para o Aurora estava a ser discutido um financiamento de 200 milhões de euros. E tinha ainda pedido um empréstimo ao BEI (Banco Europeu de Investimentos) de 850 milhões de euros, que estava em análise. O BEI é um dos credores da Northvolt.
Apesar desta disponibilidade e do empenho do Governo em apoiar o projeto, a Galp terá preferido não avançar com um investimento em que o mercado neste momento parece não acreditar e onde já tinha arriscado e perdido mais de 40 milhões de euros.
A incerteza sobre o ritmo de expansão da mobilidade elétrica, a curto e médio prazo, está também a gerar uma onda de cancelamentos de unidades de baterias na Europa. Segundo a Reuters, oito empresas abandonaram ou adiaram os seus projetos este ano.
Que projetos de lítio existem em Portugal?
O Governo acredita que haverá novos projetos na fileira industrial do lítio. Pedro Reis indicou que já começou à procura de novos promotores nacionais e estrangeiros, assumiu o ministro da Economia após a apresentação do plano de ação para as matérias-primas críticas que prevê o lançamento dos concursos para novas áreas de prospeção e pesquisa de lítio (um procedimento previsto há anos, mas que não avançou).
“Acreditamos na indústria dos veículos elétricos e que é muito importante deixar o máximo de valor acrescentado em Portugal. As refinarias fazem parte dessa cadeia de valor. Portanto, do ponto de vista do Ministério da Economia e do Governo, tudo faremos para conseguir densificar essas cadeias de valor”. As declarações de Pedro Reis foram feitas à margem de uma visita à Bondalti, empresa química do grupo José de Mello, que tem um projeto denominado Lifthium Energy para eventual investimento no setor do lítio verde (produzido a partir da salmoura, por um processo de eletrólise) e construir duas refinarias até 2030.
Das duas minas com direitos de exploração atribuídos, apenas a de Montalegre prevê a instalação de uma unidade de refinação, mas com uma dimensão muito inferior. No caso de Boticas, a Savannah tem um acordo com a AMG Critical Materials para estudar a construção de uma refinaria de espodumena para carbonato de lítio em Portugal ou Espanha. Foi também assinado um projeto para exploração de lítio e outros minérios na serra da Argemela nos concelhos do Fundão e Covilhã.
O Governo anunciou esta semana a intenção de lançar concursos para a prospeção e exploração de mais áreas de lítio, um processo que estava na gaveta há vários anos, em parte por causa da forte oposição local às minas já autorizadas.
Uns elos à frente na cadeia do lítio, Sines foi o destino escolhido para o grupo chinês Calb instalar uma unidade de produção de baterias para carros elétricos. Este investimento da ordem dos dois mil milhões de euros encontra-se em fase final de licenciamento ambiental e promete criar 1.800 postos de trabalho. No entanto, o acesso à matéria-prima deverá ser assegurado por fornecedores chineses, ainda que a unidade de baterias fique instalada em território da UE. É uma forma de os grupos chineses contornarem obstáculos europeus à importação direta à agora poderosa indústria automóvel e de componentes chinesa.