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Em junho de 2022, uma lei com mais de cinco décadas, que consagrava o aborto como um direito federal nos Estados Unidos, foi revertida. Agora, mais de dois anos depois, cabe aos estados decidir os limites do acesso ao aborto — uma posição defendida pelo Presidente-eleito Donald Trump. “As pessoas têm dificuldade em aceitar, mas isto não vai mudar. Nem ia mudar se Harris ganhasse.” As palavras são da professora de Direito Robin Fretwell Wilson, que está em Portugal com uma bolsa Fullbright e que participou recentemente numa conferência da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, onde deu uma entrevista ao Observador.
Especialista norte-americana em Direito de Saúde e Direito de Família, olha para o panorama político que se desenhou nos Estados Unidos desde a reversão do Roe v. Wade como mais dividido, o que deixa as pessoas “desconfortáveis”. Apesar dos sentimentos que esta decisão possa ter causado, Robin Fretwell Wilson nota que a Constituição prevê, “de forma genial”, que o bem-estar das pessoas esteja entregue aos estados. Cabe às pessoas organizarem-se para alterar aquilo de que discordam, seja no governo local ou federal, defende.
No entanto, a professora revela sentimentos contraditórios para os próximos quatro anos. Por um lado, defende que as pessoas estão “exaustas” para continuarem estes movimentos locais. Por outro, com todos os defeitos que lhe aponta, confia no sistema norte-americano, baseado nos freios e contrapesos.
Tema do aborto “pode ter sido um boomerang e ter prejudicado Harris” na campanha
Estas eleições foram as primeiras desde que o Roe v Wade foi revertido. Para além das presidenciais e das eleições para o Congresso, houve dez estados que votaram medidas sobre o aborto. Donald Trump venceu em alguns destes estados onde houve maiorias a favor do direito ao aborto. O aborto não é a prioridade quando as pessoas votam no Presidente?
Isso descreve claramente onde a América estava em relação ao aborto em novembro. Faço apenas uma alteração: tivemos eleições intercalares e referendos. O fio condutor de todos estes referendos, anteriores a novembro, foi que todos alargaram o acesso. O Kansas realizou um referendo que teria acrescentado à sua Constituição uma declaração que dizia que [o estado] não pratica o aborto e que foi rejeitada. Não olhamos para o Kansas como azul ou progressista: o Kansas “vermelho” disse não à restrição ao aborto.
O Arizona, por exemplo, é diferente, é um estado decisivo, podia ter caído para qualquer lado [nas presidenciais]. Muitas pessoas pensaram que, ao realizar um referendo sobre o aborto, iriam apelar às pessoas que se preocupavam com o aborto para votar em Harris. Portanto, temos este estado que às vezes vota vermelho, às vezes vota azul, e que votou em Trump. A pergunta está certa: como é possível se se preocupam com o aborto? Algumas pessoas acreditam que a questão do aborto “dividiu o boletim de voto”. Isto significa que as pessoas puderam dizer “sim” ao aborto — especialmente no Arizona, onde passaram, em menos de um ano, de proibição absoluta para 15 semanas, para as 24. Mas depois viraram à direita para votar sobre a economia ou sobre a imigração ou em qualquer outra coisa que os possa motivar a votar.
Os eleitores separam os candidatos das suas políticas? Preocupam-se com o aborto, mas não é a sua prioridade quando votam no Presidente.
A teoria no Arizona é que o referendo pode ter sido um boomerang e ter prejudicado Harris, que é a favor do aborto. Se o aborto não tivesse sido alargado a nível estadual, a única forma de o obter seria através do governo federal. Ao incluir o aborto na constituição estadual, ficaram livres de fazer que quisessem nas restantes eleições.
Portanto, Trump conseguiu o que defendeu durante a campanha eleitoral, de deixar que os estados decidissem?
Sim, e é difícil de as pessoas aceitarem, especialmente se tem efeito nas suas vidas — como jovens que não queiram pôr crianças no mundo. Os estados estão a tomar as decisões e isso não vai mudar. Nem ia mudar se Harris ganhasse. E digo isto porque passei uma semana do verão a aconselhar equipas do Congresso sobre um projeto para uma Lei Federal do Direito à Contraceção. Contraceção e aborto estão no mesmo campo. Falámos por que é que não é possível aprovar esta lei e aprendi que há cerca de 47 “Sim” ao aborto no Congresso, e há cerca de 47 ou 48 “Não” — estão empatados. No Senado, para aprovar uma lei [de emenda à Constituição], são precisos 60 votos. Em ambos os lados estão a faltar mais ou menos 13 votos. Não vamos conseguir nenhuma legislação nacional [sobre o aborto].
“Odeio dizer isto, mas o Supremo Tribunal sempre esteve desligado da realidade do povo americano”
Se não se consegue olhar para a legislação nacional, tem de se olhar para a lei estadual. Nos pouco mais de dois anos desde que Roe v. Wade foi revertido, o que fizeram os estados de imediato e como têm estado a lidar com a reversão da decisão desde aí?
Imediatamente após Roe ter terminado, vimos pessoas a viajar para outros estados — do Missouri para o Illinois, da Florida para a Carolina do Norte. Também vimos estados a erguer “escudos”. Por exemplo, as pessoas temiam que, quando fossem do Missouri para o Illinois para um aborto, os médicos do Illinois pudessem ser responsabilizados ou culpados, o que é possível que aconteça sob uma lei estadual. Estados como o meu ou como a Califórnia ergueram escudos: um médico no Illinois não pode ser processado. Portanto, houve alguns movimentos para contornar bloqueios e flexibilizar o acesso ao aborto.
Por outro lado, aplicaram-se leis de aborto mais antigas. Não assistimos a uma deterioração lenta do acesso ao aborto. Vimos foi leis que sempre existiram e que não eram aplicadas a ressurgir depois de Roe ter caído. E todos os estados têm tentado navegar isso. Vimos os referendos — com estes dez estados, mais os das intercalares, foram 14. Depois temos estados que passaram [o direito] da Constituição federal para a constituição estadual desse estado. Um exemplo é a Florida, onde houve um litígio sobre a proibição a partir das seis semanas. O Supremo Tribunal da Florida disse que esta proibição poderia ser mantida, era consistente com a Constituição da Florida, mas que o povo da Florida é que devia decidir. O povo da Florida decidiu que deve manter-se [a proibição].
Mesmo assim, a maioria votou a favor. Mas a lei precisava de 60% dos votos para ser aprovada…
E teve 57%. Temos isso em muitos temas, em muitas constituições estaduais. Porque colocar alguma coisa na constituição de um estado é um assunto muito sério. Não que o aborto não o seja, mas queremos consensos da supermaioria quando acrescentamos algo tão difícil de mudar.
Estas lutas jurídicas que cada estado tem travado contribuíram para uma mudança na sociedade, na forma como as pessoas falam sobre o aborto?
Motivou muitas jovens a votar pela primeira vez e a envolverem-se. Penso nos meus assistentes de investigação, que ficaram devastados quando Harris perdeu, porque é muito, muito pessoal para eles. Sentiram que o seu futuro estava nas mãos desta eleição e estão desapontados. A nossa apreciação do processo político mudou e foi uma deceção amarga para muitas pessoas. Mas o nosso futuro não depende de uma única coisa. O Congresso está bloqueado, nenhum dos lados consegue chegar aos 60. Mas muitas vezes, nos Estados Unidos, pensamos que só o Congresso pode resolver alguma coisa, que precisamos de soluções mágicas. E as decisões ficam para o Congresso e nada acontece.
Portanto, os americanos tiveram de desviar o olhar para um governo que está mais ligado a eles e dirigir as energias para aí. Nesse sentido, é saudável. Motivou as pessoas a compreenderem que é preciso conhecer os legisladores estaduais, compreender os processos, estar presente, fazer alguma coisa.
Quando fala sobre deceção, podemos olhar para o Supremo Tribunal, que aprovou a reversão do Roe v. Wade? Em maio de 2022, um mês antes desta decisão, 61% dos americanos diziam que apoiavam o direito ao aborto. Neste caso, o governo federal, incluindo o Supremo Tribunal, está desligado da realidade do povo americano?
Odeio dizer isto, mas o Supremo Tribunal sempre esteve desligado da realidade do povo americano.
Mas o Roe v. Wade durou 50 anos…
E conseguiu permanecer precisamente por causa da realidade dos americanos. Com [o caso] Casey [1992] mudaram a estrutura de Roe de uma estrutura trimestral para uma que tivesse mais detalhes e considerasse os dois interesses em jogo — a “vida da mulher” e a da “criança por nascer”. Mas a juíza [Sandra Day] O’Connor e os seus colegas não conseguiam ver uma América onde algo tão profundo fosse novamente discutido. Depois temos a juíza Ruth Bader Ginsburg, que durante toda a sua carreira falou sobre Roe como algo que possivelmente causava um curto-circuito na vontade do povo. Por vezes, quando inscrevemos ou retiramos direitos da Constituição, ignoramos a vontade do povo. O trabalho do tribunal é tentar interpretar a Constituição. Esta é uma questão muito difícil, porque respeitamos algo a que chamamos stare decisis — a ideia de que a lei não deve ser como uma bola de pingue-pongue, deve ser estabilizadora.
Por outro lado, temos também no nosso esquema constitucional que o bem-estar geral das pessoas pertence aos estados. E isso foi particularmente genial, porque significava que um governo mais próximo do povo seria responsável perante o povo. Mas, muitas vezes, o governo não vem ao encontro [das pessoas], quer um acordo único no Congresso. Infelizmente, é um esquema profundamente desconfortável, porque me parece errado que algo tão pessoal como o aborto, a saúde reprodutiva, possa estar concentrado [no poder federal]. No Missouri, não há acesso. E depois, no Illinois, [as pessoas são] livres de fazer o que quiserem.
Eu ensino Direito da Família. Sabemos que as definições de casamento mudaram radicalmente de estado para estado — não me refiro ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, constitucionalizado em Obergefell —, mas, por exemplo, [na Vírginia] não se pode casar com o primo. Mas pode passar-se a fronteira até à Virgínia Ocidental e casar com o primo.
Estas diferenças entre estados tornam-se mais mais profundas? Um estado azul vai ficar mais azul e um vermelho mais vermelho? Teremos posições mais polarizadas?
O país, em alguns temas, está a tornar-se mais polarizado. Mas noutros uma experiência num estado estende-se a todo o lado. Um exemplo é o primeiro estado a ter o divórcio sem culpa, a Califórnia. A azul Nova Iorque foi um dos últimos estados a ter um divórcio unilateral sem culpa, porque há muitos casais ricos e foi uma tentativa de forçar esses casais a concordar com a dissolução do casamento, especialmente sobre a divisão do dinheiro. Agora todos os 50 estados têm divórcio sem culpa. Acho que sobra só um que obriga os dois lados a concordar, o Missouri, muito religioso e conservador.
Podemos olhar para outro exemplo. O Colorado foi o primeiro estado a permitir o livre acesso a cannabis, não apenas medicinal. E agora isso está a espalhar-se pela América. Mas também temos leis com as quais discordo profundamente a espalhar-se, incluindo algumas das leis prejudiciais para as pessoas trans, como a proibição de pessoas trans em desportos, mesmo que sejam crianças.
Como é que um movimento social ou algo que as pessoas pensam num estado se espalha e se transforma em lei? Como funciona este processo?
A ala socialmente mais conservadora está a copiar o que a esquerda sempre fez.
A esquerda foi um modelo para a direita em termos de ativismo?
Sim. Por exemplo, o movimento LGBT tem sido extremamente bem-sucedido e incrivelmente eficaz, não só no casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas na implementação de leis de não-discriminação nos estados. E fizeram-no de baixo para cima. O Arizona é um bom exemplo, porque não tem uma lei estadual anti-discriminação LGBT, mas em Tempe, Phoenix ou nos grandes centros urbanos existem leis municipais. Este movimento foi suficientemente inteligente para começar a partir de pequenos governos.
Isso pode ser aplicado a temas com que eu possa discordar — discordo da exclusão das pessoas trans do desporto, não é preciso excluir pessoas lidar com as coisas de forma ponderada. Mas estas leis espalharam-se porque os grupos pegam na lei e fazem cópias, a nível municipal e estadual. Foi o que o movimento LGBT fez e que agora o outro lado está a fazer, é olho por olho. O governador Newsom, na Califórnia, começou a reunir ideias uma Califórnia à “prova de Trump”.
Ele consegue fazer isso, legalmente?
Não sei, o governo federal tem muita influência nos gastos. Não sei como pode ser à prova de Trump, ou à prova de Harris, ou do que quer que seja.
À prova do poder federal?
Sim. O governo federal tem muito dinheiro a inundar o sistema, e tudo o que tem de fazer é ligar uma regra ao dinheiro para levar os estados a fazer o que quer que seja. Mas se [Newson] tiver sucesso, o Illinois poderá copiá-lo, como aconteceu com a primeira lei escudo para o aborto. Estamos a ver mais ativismo a nível nacional de grupos que estão a usar os estados para tentar moldar a cultura.
O “bastão do dinheiro”: “O governo federal está a intervir em coisas que não precisa e a usar o seu orçamento para conseguir o que quer”
A preocupação das pessoas com o aborto e outros temas obriga a repensar a organização do governo federal? Como disse, o Congresso está bloqueado neste tema e considera que o Supremo está desligado da realidade…
Nas últimas eleições, a única pessoa que falou em acabar com essa obstrução [de exigir uma maioria de dois terços ao Congresso para fazer emendas à Constituição] e mudar a regra no Senado foi Harris, a ideia não vinha de Trump. Mas agora [os democratas] dizem: graças a Deus que não acabámos com esta regra.
Porque os republicanos conseguiram a maioria?
Sim, mas não os 60 [a supermaioria]. O mesmo dispositivo que restringiu políticas não-consensuais pode restringir a próxima administração. Sobre repensar o governo federal, vem-me outra coisa à cabeça: a lei que ajudei a criar sobre a inclusão de atletas transgénero foi usada pela administração Biden, através de regras do Departamento de Educação. As regras estavam ligada ao dinheiro: se a questão dos balneários não fosse tratada como decidiu o governo Biden, o financiamento era cortado. No Texas, eram mais de 4 mil milhões de dólares. [O governo] podia simplesmente ameaçar [os estados]: “Ou seguem as nossas instruções ou ficamos com 4 mil milhões de dólares”. Este é um grande “bastão” para o governo federal usar.
Mas o “bastão do dinheiro” pode ser utilizado…
…por ambos os lados, sim. Mas o que vimos recentemente…
Estamos a falar pós-Roe v. Wade?
Especialmente, mas também durante toda a minha vida adulta. Temos estados a dizer que preferem não ter fundos do Departamento de Educação a serem “espancados” desta forma. Neste momento, são os governos republicanos que dizem isto, mas em breve vai alterar-se. O Trump escreverá uma regra e dirá: se não fizerem à nossa maneira, não vos damos dinheiro. E a Califórnia dirá: não queremos o vosso dinheiro.
O governo federal está a intervir em coisas que não precisa e a usar o seu orçamento para conseguir o que quer. E isso não é saudável, esteja quem estiver ao comando. É um lugar perigoso. Trump está a dizer que se vai livrar do departamento [da Educação], por isso poderemos ver alguma retração do governo federal.
Os movimentos populares podem vir a ser adversários do poder do governo federal? Ou o ativismo não é suficiente?
Todos os movimentos sociais já o fazem. [No aborto,] os dez referendos e os quatro que os antecederam são, por definição, ativismo de base. Até porque não se consegue colocar uma medida nos boletins a não ser que centenas de milhares de pessoas assinem. Vamos ver mais disso. O meu medo é que as pessoas fiquem exaustas. Seria ótimo se pudéssemos eleger pessoas que concordassem connosco e incluíssem tudo em leis federais. Não sei se os americanos têm a energia necessária para se defenderem a si mesmos e a um mundo mais decente. Ir às câmaras estaduais testemunhar é um trabalho árduo. A democracia dá trabalho. Podemos estar a pedir demais aos americanos.
Olhando novamente para o Roe v. Wade, acha que a decisão do Supremo Tribunal abre aqui um precedente para outras decisão sobre liberdades civis?
Esse foi o grande medo logo a seguir a Dobbs. O juiz Clarence Thomas afirmou que precisávamos de acabar com algo chamado “devido processo substantivo”, que nos deu o casamento entre pessoas do mesmo sexo com Obergefell, os contracetivos com Griswold, o casamento interracial com Loving v. Virginia, a proibição da sodomia no caso Lawrence v. Texas. Muitas destas decisões são da autoria do juiz Kennedy e foi uma forma de revisitar o conflito entre Thomas e Kennedy sobre os direitos. Ironicamente, a única coisa que o juiz Thomas não invoca ao dizer que precisamos de retirar todo este devido processo substantivo é Loving, porque o próprio juiz Thomas está num casamento interracial.
Ele disse isto logo a seguir a Dobbs e as pessoas ficaram com medo. Portanto, o Congresso entrou em ação e, em quatro semanas, escreveram uma lei que diz que, se alguma vez houvesse uma decisão como a de Dobbs sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, que as pessoas do mesmo sexo que se casassem não poderiam “perder” os seus casamentos. Não disseram que o Mississipi devia ter casamento entre pessoas do mesmo sexo, que tem uma lei que diz que isso não existe. Se um Dobbs alguma vez acontecesse sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, um casal do Mississippi podia vir ao Illinois — onde é uma lei de consenso –, casar e voltar para casa. Os estados e o governo federal têm de o reconhecer.
Muitas pessoas dizem que devíamos ter forçado o Mississipi a mudar a sua lei matrimonial, mas se o fizéssemos isso, teríamos muitos problemas. Comecei esta conversa dizendo: não se podia casar com um primo na Virgínia, mas é possível na Virgínia Ocidental. Não queremos tentar mudar todas as leis do casamento nos 50 estados. Os 50 estados discordam profundamente sobre o casamento, sobre todo o tipo de coisas. Quem é o proprietário da propriedade da relação? A Califórnia diz que ambas as partes são proprietárias. Mas 47 estados dizem que quem tem o seu nome no imóvel é o proprietário. E só no divórcio é que há divisão.
Ou seja, os estados encontram maneiras de se sobrepor, mesmo tendo um Supremo Tribunal que possa discordar.
Sim, é precisamente isso, está contemplado no nosso projeto constitucional. O tribunal pode dizer que uma lei não está de acordo com a Constituição, tal como fizeram em Dobbs. Mas não escrevem leis, isso é o Congresso. Os americanos estão a renovar uma habilidade, a ter de aprender um conjunto de competências que perdemos, porque tantas coisas foram levadas aos tribunais que tivemos de parar de as defender através do Direito. E agora, que temos Trump, haverá muitas pessoas que querem que os tribunais restrinjam o governo federal.
Essa é uma possibilidade?
Sim, no último mandato o Supremo Tribunal decidiu o caso Loper-Bright, sobre uma regulamentação da EPA, a Agência de Proteção Ambiental. O tribunal decidiu que a EPA não devia ser sustentada na sua regra, porque o Congresso redige a regra que a agência deve implementar. Mas a agência reporta ao Presidente. Ao dizer que o que importa é o que o Congresso disse, surge uma estrutura futura de que as agências dirigidas por Trump também não receberão essa deferência. Os freios e contrapesos que estão no nosso sistema são bons porque se aplicam a quem está no comando. Vamos ver este Supremo “conservador” a restringir a administração Trump.
O comércio de guerras culturais entre EUA e Europa. “Somos exportadores, mas também consumidores”
Falou de uma América polarizada, com muitas posições diferentes. Especificamente para o aborto, isso é resultado de uma tendência global? Ou estamos a falar de algo específico dos Estados Unidos?
Uma das coisas que pedi às turmas que ensino em Portugal foi relatórios de países [europeus] sobre barrigas de aluguer, a eutanásia… Aprendi muito sobre a variabilidade na Europa e coloquei as leis sobre aborto na Europa num gráfico — há quase tanta variabilidade como nos Estados Unidos.
Mas [a Europa] não é um só país como os Estados Unidos.
Mas também tem salvaguardas, como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que canalizam as leis para os Estados-membros. Não é muito diferente do nosso governo federal — os nossos 50 estados são os estados-membros. Esta variabilidade sugere que os EUA não são um caso isolado. Em Portugal já ouvi que era difícil conseguir sequer acesso ao aborto até às 10 semanas. E se tivessem tentado durante as 12 ou 15, não conseguiriam. Também temos isso. A proibição de 6 semanas na Florida é diferente da proibição de 24 semanas na Virgínia.
Então não acha que existe uma tendência global que possamos identificar em relação ao aborto?
Uma tendência global mais permissiva?
Estava a perguntar em ambas as direções, mas os Estados Unidos anularam uma decisão de cinco décadas. Estamos a caminhar em direção a visões mais conservadoras?
No ano passado, estive num painel sobre o aborto em Itália, em que um colega falou sobre como Dobbs pressionou a França a agir para dizer não queriam algo como Dobbs.
Então a anulação do caso Roe v. Wade pode ter um efeito contrário?
Isso aconteceu. Em França, foi invocado no plenário da legislatura da Assembleia. Se houver uma inclinação de algum tipo, podemos estar a exportar as nossas guerras culturais. Preocupo-me com isso, especialmente em relação às questões transgénero que tenho visto muito nos últimos anos, onde trabalhei muito para garantir que as pessoas trans fossem respeitadas. Em diferentes domínios, as guerras culturais são mais poderosas quando colocam a segurança de uma pessoa contra a de outra. É assim que funcionam os diálogos ou debates sobre atletas transgénero. Isso está a ser exportado para todo o mundo. Há uma marcha lenta da direita contra valores mais liberais ou mais progressistas.
Isto começou nos Estados Unidos? São o principal exportador?
Sim. Mas também somos consumidores destas guerras culturais — elas atravessam o Atlântico. Podem ser apenas a Europa e a América a trocar estas guerras. Estamos a ver estas coisas em África e noutras partes do mundo? Não sei. O meu receio é que [os EUA] sejam apenas uma “empresa” exclusivamente de exportação e que não estejamos a ser bons líderes. Parte disso pode ser [relacionado com] as redes sociais, que não respeitam limites geográficos — penso nas coisas em torno de Andrew Tate e na masculinidade tóxica. Também estamos a importar isso para os Estados Unidos… Portanto talvez não seja apenas uma exportação. Estamos a perder a capacidade de encontrar lugares onde todos possamos viver juntos pacificamente, a que chegamos através do diálogo ou do compromisso. Não é apenas nos EUA.
Olhando para o futuro, para onde vê as lutas legais e as guerras culturais em torno dos direitos reprodutivos a caminhar?
No prazo muito imediato, no dia 20 de janeiro Trump fará nomeações e as pessoas serão empurradas da administração das agências. Vimos o mesmo na administração Obama, Biden, Bush, Clinton, todos eles vieram e varreram as pessoas de alto nível. Trump vai mudar isso e arrancar até os funcionários públicos de base. Ele pode alegar que está a fazer isto por causa de Elon Musk e da necessidade de um governo mais eficiente. A administração seguinte fará a mesma coisa e assim continuará. Ele trará de volta pessoas da primeira administração para fazerem muitas das mesmas coisas em relação à saúde reprodutiva que fizeram da última vez — o Gabinete dos Direitos Civis irá pegar na ideia de [objeção de] consciência e colocá-la em esteroides.
Existe alguma hipótese de o direito ao aborto voltar a ser um direito federal?
Não enquanto eu for viva. A não ser que se acabe com a regra dos 60 votos [para emendar a Constituição]. Mas acabar com essa regra para isto implica acabar com ela para outros temas. Poderia haver um esquema de empacotamento judicial, em que acabam com essa [forma de votação], passam a maioria simples e aumentam o tamanho do Supremo Tribunal para 15. Escolhem pessoas de quem gostam, eles dizem que sim. Acho que ninguém faria isso — espero que não o façam, porque é uma mudança muito radical. Não radical no sentido de ser demasiado progressista, mas radical porque é muito grande.
Gostava de estar a ser mais otimista. Normalmente, penso que podemos comprometer-nos com qualquer coisa e repará-la se nos unirmos. Mas na verdade, nós, os americanos, temos um consenso hipermaioritário sobre o aborto, tal como disse, somos 61%. Sempre o fizemos, desde 1973: os americanos acreditam que se faz um aborto deve ser precoce, exceto em casos de violação, incesto e vida da mãe. Os americanos conseguem matraquear isto de cor. Se queremos um consenso, temos de encontrar estas visões maioritárias e construir a partir daí. Mas queremos soluções perfeitas e temos dificuldade em construir a partir de pequenas mudanças.