Mais logo, e já não falta muito, haverá uma primeira explosão no Estádio da Luz (de aplausos e assobios) e para qualquer dos milhões de pessoas que seguirão esta noite o clássico entre Benfica e FC Porto: o anúncio oficial das equipas. Porque até aí, por muito boa vontade ou poderes visionários que se tenha, é tudo especulação. Mas além dos 11 titulares e sete suplentes de cada equipa, há uma figura em foco. Ou duas: os treinadores, Rui Vitória e Nuno Espírito Santo. Eles desenham o jogo dentro das quatro linhas para poderem escrever a própria história fora delas. São diferentes, sem serem extremos opostos, mas têm pontos em comum e chegam até a complementar-se.
Rui Vitória, de 46 anos, tem uma particularidade que poucos ou nenhuns treinadores da Primeira Liga se podem orgulhar: nunca foi despedido, a meio ou no final de cada temporada que leva no principal escalão. Mas, antes do banco, houve uma carreira dentro das quatro linhas. Modesta, curta mas inspiradora para o que se seguiria, fosse no futebol (começou por treinar o Vilafranquense e passou depois para os juniores do Benfica) ou nos estudos (licenciou-se em Educação Física na FMH). Chegou ao Benfica em 2015, com a difícil missão de substituir Jorge Jesus. Esteve por um fio, agarrou-o e bateu recordes: conseguiu a maior pontuação de sempre no tricampeonato dos encarnados. Demorou a chegar ao clube do coração, mas é com ele perto da boca que vai defendendo as águias dos ataques. Rui Vitória, como se percebe, representa hoje o que é “ser Benfica”.
Nuno, de 43 anos, deve ter provavelmente um dos rácios mais elevados a nível de encontros realizados como futebolista e troféus conquistados, mesmo tapado por nomes como Vítor Baía ou Helton. Após ter despontado no V. Guimarães (onde também conviveu com outro monstro, Neno), reforçou o Deportivo da Corunha naquela que foi a primeira transferência de sempre daquele que hoje é considerado o melhor agente do mundo: Jorge Mendes. Passou pelo Dragão duas vezes, tendo na última criado a mítica expressão “Somos Porto”, no seguimento dos castigos após incidentes no túnel da Luz após o clássico. E foi essa a ideia sempre reforçada desde que chegou ao comando dos azuis e brancos. Viveu tempos difíceis no clube, viu lenços brancos, mas manteve o discurso positivo e de guerreiro, algo que viria a capitalizar em créditos junto dos adeptos após a atual série de bons resultados.
Muito diferentes: a carreira como jogadores
Rui Vitória era médio. E tinha a alcunha de “pé de chumbo”. É preciso explicar mais? Já deve ter percebido a ideia. Ainda assim, elogiavam-lhe a garra e a veia competitiva típica de um ribatejano “à séria”. Jogou até aos 32 anos, sempre em escalões secundários. Após duas épocas no Fanhões, mudou-se para o clube que mais marcaria o percurso nos relvados, o Vilafranquense. Nas últimas quatro temporadas, antes de terminar a carreira de futebolista, ainda esteve no Seixal, no Casa Pia e no Alcochetense.
Em paralelo, o atual técnico do Benfica sempre revelou uma especial apetência para o treino, para o pensamento, para a veia de professor. Que chegou a ser, durante algum tempo, antes de pedir uma licença sem vencimento quando rumou ao Norte para orientar o P. Ferreira. Licenciado em Educação Física na Faculdade de Motricidade Humana, deu aulas na área e tinha como hobby… tocar bateria.
Enquanto Rui Vitória apenas conheceu aquela versão mais complicada do futebol, dos pelados e do jogo mais de luta, Nuno Espírito Santo viveu uma experiência quase oposta e andou pelos maiores palcos do futebol europeu. Nascido em São Tomé e Príncipe, seria no V. Guimarães que o antigo guarda-redes iria começar a ganhar o seu espaço no futebol. Aos 18 anos já fazia parte do plantel dos vimaranenses, mais a aprender com um professor de grande nível: Neno. Foi depois emprestado ao Vila Real, voltou e foi lançado de forma mais consistente em 1994/95. Duas épocas depois, terminou o torneio de futebol nos Jogos Olímpicos de 1996 no quarto lugar e transferiu-se para o então fortíssimo Deportivo da Corunha, naquela que foi a primeira grande operação que Jorge Mendes conduziu como empresário.
A vida em Espanha não foi fácil, sobretudo pela presença do camaronês Songo’o no plantel, e pouco ou nada jogou durante duas épocas. Foi emprestado ao Mérida e ao Osasuna antes de chegar pela primeira vez ao FC Porto como aposta forte de José Mourinho, numa equipa que já tinha Vítor Baía. Jogou pouco, não foi um titular indiscutível, mas ganhou, além de campeonatos e taças, uma Liga dos Campeões, uma Taça UEFA e uma Taça Intercontinental. De currículo, estava falado. E seguiu para a Rússia, o El Dorado da altura. Ainda esteve no Desportivo das Aves antes de regressar ao Dragão, onde terminou a carreira em 2009/10, agora à sombra de Helton.
Diferentes: a forma como subiram como treinadores
Rui Vitória subiu a pulso na carreira: depois de começar no Vilafranquense, foi trabalhar com os mais novos, passando para os juniores do Benfica (perdeu um campeonato na última jornada frente ao Sporting à data comandado por Paulo Bento), mas provou que também era capaz de lidar com os mais velhos e os quatro anos de trabalho no Fátima, que subiu duas vezes à Segunda Liga, valeram-lhe uma oportunidade no P. Ferreira.
Ficou na sétima posição do campeonato, conseguiu chegar à final da Taça da Liga (perdeu com… o Benfica) e deu novo salto na carreira, desta vez para o exigente V. Guimarães, onde passou quatro temporadas. Aí, foi por duas ocasiões à Europa e conquistou uma inédita Taça de Portugal, vencendo na final… o Benfica. Já estava “prometido” aos encarnados numa altura em que se falou sobre a possível saída de Jesus, mas só à segunda confirmou a passagem para a cadeira de sonho, numa transição que não foi fácil pelos resultados nos primeiros meses.
Com o tempo, e sobretudo depois de um triunfo em Braga numa partida onde as águias marcaram dois golos cedo e agarraram-se ao resultado, estabilizou e conseguiu consolidar um tipo de liderança totalmente diferente em relação ao que Jorge Jesus exercia: mais calmo, a atrair menos atenções, focado na relação próxima com os seus jogadores. Agarrou os mais velhos do grupo, deu palco aos mais novos da formação. Ganhou a aposta, ao ponto de ter sido campeão com o maior número de pontos de sempre conseguido numa Primeira Liga a 18 equipas. Sem empresários a puxarem por ele, com uma equipa técnica de que não prescinde. Fez o seu caminho e encontrou a Luz.
Já Nuno acabou por ter um início de carreira como treinador muito marcada pela ligação de muitos e muitos anos com o empresário e amigo Jorge Mendes. E além de ter começado mais tarde do que o homólogo encarnado, também porque teve mais anos de carreira como treinador, começou como adjunto nas equipas técnicas de Jesualdo Ferreira no Málaga e no Panathinaikos, como responsável dos guarda-redes.
Em maio de 2012, no seguimento da saída de Carlos Brito, é apresentado como novo treinador principal do Rio Ave, clube com quem o empresário português também tem ligações estreitas e que ajudaram os vila-condenses a darem o salto em termos de Primeira Liga. Em duas épocas, o atual técnico do FC Porto mostrou capacidade para atingir bons resultados, conduzindo a equipa à final da Taça da Liga e da Taça de Portugal (ambas perdidas frente ao Benfica de Jorge Jesus).
Com o Rio Ave nas competições europeias, chegou o grande desafio: o Valencia, outro conjunto com quem Jorge Mendes trabalha bastante e que apostou no técnico português para render Juan Antonio Pizzi e diminuir o fosso em relação ao trio Real Madrid-Barcelona-Atlético de Madrid. E a primeira época até terminou com bons resultados, tendo chegado ao quarto lugar do campeonato (renovou contrato a meio desse trajeto). No entanto, um início de segunda temporada desastroso acabou por ser fatal a Nuno, que rescindiu em novembro de 2015, após uma derrota com o Sevilha.
Na tentativa de quebrar o jejum de três épocas sem títulos, a administração da SAD do FC Porto, em especial Pinto da Costa, apostou no treinador com o intuito paralelo de ter alguém que soubesse o que é a mística do clube. Assim, foi resgatar o autor da famosa frase “Somos Porto”, numa conferência de imprensa que contou com todo o plantel azul e branco em 2010 no seguimento dos castigos a Hulk e Sapunaru depois do caso do túnel da Luz. “Administração, staff, jogadores e toda a gente que gosta do FC Porto continua e continuará a ser FC Porto. Vamos ganhar sempre e cada vez mais. Somos Porto e estamos unidos, não se esqueçam disso! É a nossa mensagem para todo o país”, destacou. O carisma demonstrado aí valeu-lhe uma ultrapassagem na luta pelo lugar que era de José Peseiro. Agora, quer passar da teoria à prática.
Muito parecidos: A forma como abordam hoje os grandes jogos
Os técnicos têm sempre uma certa tendência para colocar o dedo no jogo através das opções iniciais. Sobretudo nestes encontros, ditos grandes. Mesmo sabendo que, no final, correm o risco de serem avaliados numa escala que vai entre os mestres da tática e os inventores (num sentido pejorativo). Ainda assim, um e outro são de arriscar.
E quando falamos de arriscar em equipas grandes, que lutam pelo primeiro lugar, isso significa uma escolha entre manter a cilindrada do costume (trocar apenas jogadores, a haver mexidas) ou colocar uma mudança abaixo. Em termos internos, Rui Vitória parece ter aprendido a lição do ano passado: quando optou por ter mais cautelas com o Sporting e o FC Porto (colocando Samaris e Fejsa ou André Almeida como duplo pivô do meio-campo), teve como epílogo a derrota; quando jogou com um trinco e uma unidade mais construtora à frente (Pizzi ou Renato Sanches), perdeu de forma injusta com os dragões e foi ganhar a Alvalade no jogo que decidiria o título.
Esta época, em termos internos, o técnico dos encarnados não mais voltou a utilizar essa fórmula sem sucesso, colocando sempre Pizzi como ‘8’. Ganhou na Luz o dérbi, empatou nos descontos o clássico no Dragão. Mas, curiosamente, essa utilização foi feita na Champions – nos últimos 15 minutos na Turquia com o Besiktas, que levou ao empate; com o Nápoles, que levou à derrota; e com o B. Dortmund, que levou à goleada. Mas isso é lá fora; na Primeira Liga, Vitória tem assumido. E tem ganho.
No caso de Nuno Espírito Santo, nota-se um claro cuidado em adaptar a equipa inicial ao tipo de jogo em causa. Algo que não se pode retirar das primeiras partidas do FC Porto com Sporting e Benfica qualquer conclusão – claramente os dragões andavam à procura da consolidação de um modelo, de tal forma que mudou três jogadores do meio-campo e ataque (e respetiva estratégia) em dois meses e meio. Agora, sobretudo com a entrada de Soares, estagnou por completo. Começou a ganhar. Mas muda.
E aqui, as alterações não têm a ver com o adversário mas mais com as características que a partida pode trazer. Exemplo prático: contra o Sporting, também pela surpresa que poderia causar, Nuno Espírito Santo jogou com cinco unidades de pendor ofensivo do meio-campo para a frente (e ganhou); contra o Boavista, três jornadas depois, foi Soares a perder André Silva na frente para haver um reforço do meio-campo. Essa imprevisibilidade é até um trunfo na antecâmara de um jogo grande.
Iguais: malditos confrontos contra o rival
Será muito curioso verificar o resultado deste clássico à luz de Rui Vitória. Expliquemos: se o Benfica ganhar, o técnico ficará na história como aquele que mais cedo conseguiu a vitória 50 pelos encarnados na Primeira Liga; se o Benfica empatar ou perder, manterá a malapata frente aos dragões, a quem nunca conseguiu vencer desde que assumiu o comando das águias. Mas, se virmos o histórico de Vitória do Vilafranquense até hoje, o cenário fica mais adensado: em 16 partidas realizadas contra os azuis e brancos, soma cinco empates e 16 derrotas.
Mas recuperemos apenas as partidas no Benfica contra o FC Porto: no ano passado, perdeu no Dragão à sexta jornada por 1-0 (André André, 86′) e repetiu o desaire na Luz, à 22.ª ronda, por 2-1 (Mitroglou, 12′; Herrera, 28′ e Aboubakar, 65′). Na presente temporada, registou-se uma igualdade a uma bola (Diogo Jota, 50′ e Lisandro López, 90+2′).
Curiosamente, esse clássico de 2016/17 foi o único de Nuno Espírito Santo frente ao Benfica no comando dos dragões, o que confirmou também uma regra semelhante à de Rui Vitória: nunca ganhou aos encarnados. E aqui as contas ainda são piores: em sete jogos, perdeu seis, todos quando estava a orientar o Rio Ave.
Por isso, também para o atual técnico joga-se muito esta noite. Até porque não foram muitos os treinadores que passaram pelo banco do FC Porto e não conseguiram vencer o Benfica desde que Pinto da Costa é presidente.