Jeffrey Sonnenfeld, professor em Yale, escola de gestão em Connecticut, nos Estados Unidos, anda há 45 anos a estudar o desenvolvimento social das empresas e admite que ficou surpreendido com os setores que deram o primeiro passo na saída da Rússia. Acompanhou, criando uma lista que está em contínua atualização, de empresas com negócios na Rússia e a posição que tomaram depois da guerra na Ucrânia ter começado, a 24 de fevereiro. Hoje são cerca de 1.200 as empresas que deixaram, de alguma forma, de ter negócios naquele país.
O professor de Yale é uma das vozes mais críticas da Rússia, e tem estudado a evolução da economia daquele país e garante que não está como a Rússia tenta fazer crer. O rublo recuperou, mas com intervenções artificiais e sem liquidez nos mercados. Mas há sinais concretos que mostram, segundo Jeffrey Sonnenfeld, uma economia em sofrimento. Falta saber, conclui, quando é que a população russa chega ao ponto de dizer basta.
Como está a economia russa neste momento?
A economia da Rússia enfraqueceu dramaticamente. O que é surpreendente é que tanta gente na minha profissão e na vossa profissão não tenha percebido isso. Pessoas que não trabalham para Vladimir Putin e não estão, por isso, sujeitas à sua coerção estejam confusas com a propaganda e a distorção russa. E o que é surpreendente é que em relação às estatísticas do rendimento nacional — que têm sido usadas há quase 100 anos e mesmo a Rússia publica-as há 30 anos e com alguma confiança nos últimos 20 anos –, os macroeconomistas – e até, lamento dizê-lo, o FMI – não perceberam que não estavam a receber as estatísticas reais. Estavam a receber a cereja no topo do bolo [as melhores], mas as principais foram suprimidas, como as importações e exportações de petróleo e gás, o comércio geral com a Europa, as exportações de matérias-primas, as entradas e saídas de capitais, o desempenho das instituições financeiras por banco, e coisas dessas, e até informação que antes era obrigatória mensalmente e dados das companhias russas deixaram de ser divulgadas. Investimento direto estrangeiro, atividade creditícia, volume de passageiros e número de voos, coisas deste género, de repente desapareceram e ninguém questiona. Mas nós conseguimos esses dados.
Como é que consegue chegar a esses dados se não são publicados?
Por cada comprador há um vendedor no mercado global. Putin pensou que as pessoas talvez fossem demasiado preguiçosas. Se ele não nos quer dar os dados sobre as importações podemos ir a todos os países que vendem à Rússia e ver o que andam a mandar. E verificamos que caíram 50%. Surpreendentemente até a China cortou as suas importações. Estão a cair um pouco mais de 50% atualmente. É realmente surpreendente, mas claro é contra a sua narrativa. Há outras informações que a Rússia não conseguiu controlar. Até a TASS divulgou em abril, e o Pravda também, que entre 500 mil e 700 mil engenheiros saíram de forma permanente da Rússia. E até deve ser um múltiplo muito superior a isso.
Quanto é que estima que a economia russa tenha caído?
Vemos coisas que estão a afetar verdadeiramente a economia russa. Tinham cerca de 600 mil milhões de dólares de reservas em dinheiro, que poderia ser considerado um fundo para os dias de chuva, e já caiu mais de 80 mil milhões de dólares. E desses 600 mil milhões, cerca de 300 mil milhões estão congelados pela União Europeia, pelos Estados Unidos e outras jurisdições onde esses ativos estão depositados. Há uma boa hipótese de, no final, esse dinheiro ser transferido para a Ucrânia para ajudar na reconstrução. Portanto, a Rússia tem 300 mil milhões que pode movimentar, e o montante está a diminuir muito rapidamente. Estão também a ter défices de 2 a 3%. Muitos países até podem pensar que não é assim tão mau, mas não é assim tão mau se se conseguir que alguém os financie. Mas a Rússia é, neste momento, o único país que é totalmente não investível, porque entrou em default. Qualquer que seja a ideologia política ou as simpatias para com a Rússia, não vão investir no país neste momento, porque não vão ser pagos. Por isso não conseguem financiar a sua dívida e, por isso, as reservas monetárias vão continuar a secar.
Quantas empresas saíram da Rússia?
No âmbito do nosso trabalho meticuloso feito por 42 investigadores, conseguimos mapear cerca de 1.200 companhias que saíram, que representam cerca de 40% do PIB da Rússia e em termos de postos de trabalho até já admitiram que representam cerca de 12% dos empregos diretos. É muito. São cerca de 5 milhões de pessoas diretamente, enquanto indiretamente qualquer macroeconomista, e até de forma conservadora, estimaria em três vezes mais, o que leva a que cerca de 45% das pessoas no ativo ou estão desempregadas ou estão a receber subsídios públicos, enquanto as reservas de capitais são queimadas para tentar enfrentar o desemprego massivo.
A Rússia não conseguiu substituir os produtos e bens que produziam ou vendiam essas empresas que saíram?
Não. Outra coisa que Vladimir Putin está a tentar fazer passar é o mito da sua autosuficiência. A Rússia não produz assim tanto. O que traz ao comércio global, enquanto exportador, são basicamente matérias-primas, com zero valor acrescentado. É como um sistema mercantil antigo, como teria sido uma colónia, que traz alimentos e combustíveis, só traz matérias-primas de gás e petróleo, cereais e fertilizantes. E só isso. Além do ciberterrorismo, que é algo que também exportam, mas que é algo que ninguém quer comprar.
Como é que a Rússia mantém a indústria a funcionar?
Está a parar. Vemos que os encerramentos estão a acontecer entre 20% e 70%, dependendo do segmento industrial. Analisámos setor a setor, e indústria a indústria e podemos ver como estão a abrandar. E em paralelo a inflação está a disparar para tentar manter as coisas em movimento. Haverá sempre algumas transferências apesar das sanções, embargos e saída de empresas, haverá sempre terceiros que, por exemplo, através da Turquia ou de outros países ou entidades, ou através do mercado negro consigam passar produtos, mas não se consegue gerir uma indústria com base nisso. Poderá ajudar algumas elites a conseguir determinados tipos de bens de luxo, e talvez alguém consiga um ecrã para um relógio da Apple, mas a maioria das peças de substituição não está disponível e só se consegue a preços exorbitantes. A inflação está entre 50% e 90% dependendo das peças que se procura porque há escassez de fornecimento e há riscos e, por isso, cobram muito dinheiro. Com a inflação e com a saída de talento – já referi, a TASS admitiu terem saído 700 mil engenheiros até abril, mas não sabemos o verdadeiro número, e até admito que alguém se meteu em maus lençóis por ter divulgado essa informação – é assustador. Temos pessoas na Rússia e na Ucrânia a darem-nos informações do terreno, e recebemos relatos de algumas das nossas pessoas no Uzbequistão que nos enviaram fotografias do volume de talentos que estão a chegar e o Azerbaijão, por exemplo, está a construir um grande centro tecnológico com exilados. Tentamos proteger as suas identidades e, por isso, não temos falado muito sobre o papel dos países-vizinhos, e alguns não são países fáceis para se viver mas são preferencialmente melhores do que a Rússia.
As categorias que foram definidas para os vários níveis de saída da Rússia das empresas
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O CELI (Chief Executive Leadership Institute), da escola de gestão de Yale, lançou em fevereiro uma listagem das empresas com negócios da Rússia e a sua atuação perante a guerra. A lista mantém-se em atualização. E dada a extensão e a diversidade de atuações, a equipa resolveu classificá-las por várias categorias.
Categoria A — significava que tinham saído completamente – “essa lista aumentou bastante”;
Categoria B — empresas que tinham temporariamente suspendido a atuação na Rússia, “que não está a crescer tanto”;
Categoria C — as companhias que fecharam parcialmente que “também não está já a crescer muito – talvez tenham pensado que iam comprar algum tempo junto do grande público o que não ajuda a tirar pressão sobre elas”;
Categoria D — as empresas que condenam as ações bélicas mas que a única coisa que fizeram foi adiar alguns investimentos futuros, “mas de forma muito vaga, não sabemos que investimentos e onde”;
Categoria F — as que continuam na Rússia em exploração.
O número de companhias a sair da Rússia continua a aumentar ou as 1.200 é um número máximo?
O ritmo é interessante. Começou com 12 empresas a 24 de fevereiro [dia da invasão da Ucrânia pela Rússia]. Estudo há 45 anos o comportamento social de empresas e, francamente, nunca teria antecipado que os primeiros a avançar para a saída fossem as grandes petrolíferas, as grandes tecnológicas e os serviços, setores que nunca estiveram na vanguarda dos direitos humanos ou de questões sociais. Quando falei com alguns dos CEO desses setores a sua principal preocupação era a de que as relações públicas criavam esta janela de fumo dizendo que as suas preces estavam com o povo ucraniano e que iam dar 2 dólares ou 50 cêntimos para ajudá-los a comprar novas almofadas ou qualquer coisa. Foi ridículo e não estavam a fazer nada. Não era uma coragem genuína. E vim a público, falei com a Fortune e com a NBC, e lancei a lista de quem estava a ser verdadeiro e de quem estava a falsear. Imediatamente, e de forma proporcional, as ações dos que mentiam e continuavam na Rússia caíram entre 14% e 33%, quando o mercado desvalorizou, nesse dia, apenas 4-5% nas maiores praças. Não sei se isso ajudou ou se foi coincidência, mas a lista disparou dessas 12 para 50, e a partir daí começou a debandada, até chegar às 500. Não conseguíamos acompanhar e os servidores da Yale crasharam quando começámos a aproximar-nos das mil. Rastreámos 1.300, mas realmente só 1.200 protagonizaram de alguma forma uma saída. Inicialmente concentrámo-nos nas grandes empresas e multinacionais, mas continuamos a encontrar mais companhias que não são russas a operar lá. Temos 42 pessoas na nossa equipa, mas temos uma rede estilo wikipedia de 200 pessoas – que não sabemos bem quem são nem as suas motivações nem temos a certeza das informações que nos enviam até as verificarmos. Muitas vezes até são trabalhadores das empresas que estão zangados. Mas revelam-nos companhias que nem sabíamos que lá estavam. Temos casos em que só agora estão a perceber que não deviam estar lá. O risco operacional e financeiro é muito elevado.
E o reputacional?
Muito elevado. É o mais elevado.
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Já há algum caso de uma empresa que tenha regressado?
Não temos informação de que alguma grande empresa tenha regressado. Os rumores saem, mas podemos imaginar a origem desses rumores… Para os céticos ideologicamente que dizem que estas companhias estão a fazer mal aos seus acionistas ao fazerem a coisa certa do ponto de vista moral e ético, eu digo que fazer o bem não é o oposto de fazer bem e que não estão a causar dano aos investidores. Ao categorizar estas companhias podemos demonstrar que as empresas que saíram de forma mais radical e completa foram recompensadas no desempenho bolsista e no seu desempenho financeiro.
Apesar das elevadas imparidades que tiveram de registar?
Exatamente. Nenhuma empresa registou mais imparidades do que a BP que fez uma provisão de 9 mil milhões; a Exxon de 5 ou 6 mil milhões; a Shell um pouco menos. A francesa Total não beneficiou de ter ficado lá. Nas nossas pesquisas podemos verificar, e analisámos setor a setor, que nada faz mais diferença do que a dimensão da saída, mais nenhuma variável tem tanta importância. As companhias que saíram estão a ter bons desempenhos. É interessante ver que muito poucas companhias tinham mais de 2% de receitas oriundas da Rússia e a maior parte tinha 1%.
A McDonald’s dizia que tinha 8%.
O exemplo do McDonald’s é interessante. Fui muito crítico por terem optado por ficar na Rússia inicialmente.
Recordo-me das críticas. Ao Washington Post chegou a dizer que essa permanência era uma gritante anomalia, e que era desconcertante para os pares…
Oh meu Deus. Penso que eles também se lembram. Mas dou-lhes muito crédito porque não se puseram na defensiva e nunca tentaram minar a minha legitimidade de os criticar e nunca tentaram contrargumentar com factos diferentes. Pensaram no assunto. A Fortune até publicou um artigo sobre como realizaram a sua reflexão interna até decidirem sair. E, ao contrário de muitas das cadeias de fast food que são controladas localmente via franchisings, no caso da McDonald’s a maior parte das unidades – penso que cerca de 860 – era detida por eles, podiam simplesmente ter saído, o que acabaram por fazer. O que é fantástico. Primeiro fizeram-no com uma suspensão temporária e continuaram a pagar aos empregados, mas agora saíram completamente. É um exemplo fantástico.
McDonald’s russo agora é “delicioso e ponto final”. 15 unidades reabriram na Rússia
A teoria do McDonald’s como arma de paz
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Thomas Friedman, jornalista laureado com três Pulitzer, colunista do New York Times sobre política internacional, cunhou a teoria sobre a paz capitalista dizendo que dois países que tivessem McDonald’s nunca entrariam em guerra, argumentando que um país quando chegasse ao desenvolvimento económico em que a classe média garantisse a existência de uma rede da cadeia de fast food – tornando-se um país McDonald’s – deixaria de estar interessado em lutar.
Jeffrey Sonnenfeld acredita que esta guerra é um exemplo da ingenuidade da teoria que acabou a ser conhecida como “os arcos dourados da diplomacia”, numa alusão ao logótipo da McDonald’s. “Isso nunca foi verdade, nem mesmo quando [Friedman] a escreveu”, dando exemplos em África, Médio Oriente, Europa Central e agora a Leste. A Rússia tinha 860 unidades da McDonald’s e a Ucrânia cerca de 160.
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“É uma noção simplista”. Jeffrey Sonnenfeld, que se assume capitalista, sugere que se alguma vez foi verdade de que as marcas ocidentais – como a Levis, McDonald’s, Denim – desafiaram o regime soviético, esse período já passou.
O que levou essas empresas a ficarem inicialmente?
Penso que muitas decidiram ficar, de forma bem intencionada, porque não queriam que parecesse que estavam a acrescentar pontos de fricção com a Rússia. Havia muita gente, em janeiro, que argumentava que não estávamos em guerra com o povo russo, estávamos a atacar a liderança. Mas penso que as pessoas, de alguma forma, são alvos nesta campanha, o que não quer dizer que queiramos que elas sofram. Este é, aliás, um dos casos raros em que as saídas das empresas é combinada com sanções governamentais. Do ponto de vista dos Estados Unidos, as sanções falharam em Cuba ou na Coreia do Norte porque foram parciais, não foram abrangentes e não tiveram associadas saídas das empresas. Havia uma série de escapes à volta que prejudicou as sanções. Há vários exemplos, desde o Chile, Argentina, Líbia – a Líbia foi diferente da Primavera Árabe porque as pressões económicas é que fizeram cair Kadafi e não foram as questões ideológicas ou religiosas –, o mesmo com Ceausescu, na Roménia, Jaruzelski, na Polónia, ou Erich Honecker, na Alemanha de Leste. Foram esforços bem sucedidos, pouco sangrentos, de acabar com tiranos. Na Alemanha de Leste houve cerca de 90 mortes, o que é terrível, mas não é comparável ao massacre que estamos agora a ver. Portanto é possível este trabalho em conjunto, mas a população tem de se aperceber que a principal fonte dos seus problemas e o inimigo do povo é o seu próprio líder, Vladimir Putin. Neste caso temos muita a gente – muitos peritos militares até – a considerá-lo a pessoa mais perigosa que alguma vez pisou a terra – mais do que Gengis Khan, Adolf Hitler, ou Átila o Huno – pelas capacidades que tem de uma guerra termonuclear e pelo facto de os Estados Unidos e a Rússia terem 90% das 12.700 ogivas nucleares que existem mundialmente. Putin está a fazer esta demonstração de força e isso pode ser muito sério, podemos estar a falar do armagedão. Não devemos pensar no mundo todo a juntar-se num esforço militar. [É melhor] Se podermos ter um esforço pacífico, como o exemplo de Mandela ou Gandhi, que conseguiram mobilizar a sociedade civil. Obviamente resultou na Índia e na África do Sul.
As sanções estão a resultar?
Sim.
O que resulta mais, as sanções ou a saída das empresas, ou é difícil separar as duas, como referiu?
É o tipo de pergunta parecida com aquelas que as crianças fazem: o que é mais importante o coração ou o cérebro. São ambas importantes e há complementaridade entre as sanções e a retirada das empresas. Penso que muitos diplomas e decisores económicos não perceberam a importância do setor privado.
Quem está a ajudar a Rússia?
No recente encontro entre Putin e Erdogan [Presidente da Turquia], a Turquia aceitou comprar gás pagando em rublos. Pode a Turquia ou a China mudar o jogo em relação à economia russa?
É um ponto muito crítico. É outra das razões para o falhanço das sanções noutros países, porque havia habitualmente um país aliado. Não estavam totalmente isolados.
Estes dois aliados são muito grandes…
A China representa 95% do comércio para a Coreia do Norte que não existiria na sua atual forma se não fosse a China. E Cuba sobreviveu com algum comércio aberto com países da América Latina, com a América do Sul e alguma América Central, mas principalmente através da Rússia. Agora a questão é saber se a China vai apoiar a Rússia. A Rússia se quiser pode tirar o gás à Europa. Não tanto à Península Ibérica, mas certamente à Alemanha, à Áustria, à República Checa, que são muito dependentes do gás russo até ao momento, cerca de 43% de dependência do gás. Mas a Rússia vende-lhes 85% do seu gás. Agora a Europa está a receber mais da Noruega e dos Estados Unidos do que da Rússia. É extraordinária a decisão da Europa de voluntariamente cortarem 15% no consumo de gás.
Acordo no gás para um inverno sem dramas. Com tantas exceções quem vai cortar 15%? E chega?
É mais difícil para a Rússia substituir os compradores europeus do que à Europa substituir o vendedor Rússia?
Sim. Ninguém quer aquele gás. A produção de gás na Rússia caiu mais de um terço, cerca de 35%. O petróleo é outra grande questão. A China pode comprar; a Índia tem comprado, mas não precisa dele. Os cofres da Índia estão relativamente cheios. A Europa anunciou recentemente o seu armazenamento de gás para o próximo inverno e está em 72-73%% da capacidade, acima do que estava em agosto do verão passado. Parece bastante promissor. No petróleo, a Rússia é um dos maiores produtores da OPEP+, mas é também o menos eficiente. Custa-lhes [produzir] quatro vezes mais [estima-se em cerca de 30/40 dólares por barril]. Houve analistas, como a JP Morgan, a dizer que o preço do barril iria atingir os 400 dólares… atualmente não está sequer nos 100 dólares, está em cerca de 90 dólares. E se continuar a cair ou se ficar a este nível, com o teto que a Europa em conjunto com os Estados Unidos quer colocar para o preço do petróleo russo vai ficar difícil para a Rússia fazer dinheiro. Porque em vez de serem dois, três ou quatro dias de trânsito para entregar o petróleo vendido à Europa, vai passar a demorar 34 dias até à Ásia, o que vai retirar qualquer margem de lucro que possa ter. E há um outro ponto crítico. A China e a Rússia têm um acordo em que o petróleo russo é vendido com um desconto de 35 dólares por barril, o que significa que não há qualquer rentabilidade.
E a Turquia?
Uma das coisas que me preocupa é o que Erdogan poderá estar a fazer em termos monetários e de fluxos financeiros. Mesmo que esteja aí uma brecha continua a ser impossível a qualquer banco russo estar num centro financeiro global, mas poderá ajudar com a compra de matérias-primas ou em alguma coisa que permita ao Sberbank e a outros bancos tornarem-se mais funcionais. Erdogan está loucamente a tentar fazer esse caminho independente. Mas não consigo ver que queira forjar algum tipo de aliança de acesso aberto com Putin e penso que ele continua a querer fazer parte da NATO. Por isso, acho que alguns líderes ocidentais deviam, em privado, falar com Erdogan, de forma firme, sobre eventuais sanções comerciais à Turquia se não acompanhar o resto do mundo na punição a este selvagem e catastrófico massacre massivo a civis inocentes.
Quais os produtos que neste momento estarão, segundo as fontes que tem, mais em falta na Rússia, daqueles que importam do Ocidente?
Podemos falar, obviamente, de bens de luxo. Mas fora dessas áreas mais exóticas, os componentes tecnológicos estão sob grande pressão e há um grande debate sobre a aviação porque haverá peças de substituição que estão a entrar sorrateiramente e estão a chegar lá. A Reuters escreveu um artigo sobre a paralisação de aviões e como as duas maiores companhias russas – a S7 e a Aeroflot – pretendiam continuar a aumentar o tráfego, mas com menos aviões. Podemos imaginar esses aviões com excesso de trabalho. Os aviões paralisados estão, agora, a ser desmontados para serem retiradas peças. Não sabemos quanto tempo mais isto é sustentável, ou se a Turquia ou outras entidades estão a enviar as peças, ou até se a Airbus ou a Boeing estão a furar as sanções – eu já perguntei aos líderes dessas companhias e eles insistiram que não. Mas as peças, que têm de ser continuamente substituídas, podem estar a chegar através de terceiros ou de esquemas ilegais.
Noutro ponto, quando olhamos para os produtos de consumo poucos russos comprarão carros nacionais. E a venda de carros estrangeiros caiu 95%, o que é bastante dramático.
Energia e alimentação. Rússia “não tem mais nada”
Estamos a falar do impacto das sanções para a Rússia, mas e o impacto no Ocidente?
O maior desafio é energia e alimentação. Na energia vimos um pico nos preços em abril mas muito disso foi movido por histeria. Claro que o aumento dos fornecimentos dos Estados Unidos ajudaram a tirar alguma pressão e vimos a OPEP a libertar mais produção. O preço do petróleo, entretanto, baixou e a distribuição de gás está a ser resolvida, com a liquidificação e todas as outras alternativas que estão disponíveis. Ou seja, as questões da energia estão a ser muito bem endereçadas. Só os Estados Unidos têm 3.557 novas plataformas de perfuração de petróleo e gás que foram autorizadas em terrenos federais, que é um terço acima do que a anterior administração, de Donald Trump, que era pró-combustíveis fósseis, permitiu. E isto está a acontecer sob a Administração de Joe Biden, o que é de salientar, o que até conduziu a alguma controvérsia com as autorizações de plataformas offshore no golfo do México e no Alasca. Portanto, estamos confiantes na questão da energia.
E na alimentação?
Em relação à alimentação, os dados mostram que há um problema. Mas verificámos – já apresentámos as conclusões ao Departamento do Estado que ficaram surpreendidos e ao Departamento do Tesouro – que o problema alimentar é um pouco diferente do que tem sido divulgado. Não há dúvidas de que há um problema em África e há agora o debate se esta é a seca mais severa em 40 ou em 70 anos, da Etiópia ao Djibuti. Mas isso é independente, não tem nada a ver com a Ucrânia. Aliás, o abastecimento mundial pode subir este ano 4%, mesmo que a Ucrânia não produzisse nada. Os Estados Unidos e outros países grandes produtores de cereais tiveram uma super campanha. Mas o que é mais surpreendente é que estimava-se que a Ucrânia [este ano] tivesse uma produção de 45 milhões de toneladas de cereais, mas tem quase o dobro. No mês passado tivemos uma conferência em que Zelensky esteve presente, via zoom, mas foi a primeira vez que trocou ideias com CEO – das outras vezes em que esteve em conferências fez um discurso – mas aqui foi um diálogo aberto. E essa conversa foi precisamente sobre as preocupações da Rússia estar a bombardear ferrovias, infraestruturas logísticas e de armazenamento e estar a dificultar as plantações e as colheitas. Mas apesar dessas contrariedades, a Ucrânia está, na verdade, acima na sua produção de alimentos, estando a rivalizar com a Rússia que era três vezes maior em termos de produção. Por isso, se o Governo garantir passagem segura dos navios será fantástico. Há alimentos. A parte mais difícil é garantir a distribuição equitativa para as pessoas que estão a sofrer, especialmente em África. Este é um problema persistente e que tem de ser endereçado. E esta é que é a questão. A Ucrânia não tem nada a ver com isto. A Ucrânia está a fazer mais para melhorar a situação alimentar mundial. Fazer chegar lá os alimentos é o fardo do resto do mundo.
A Rússia está a fazer uma guerra alimentar?
Sim. E estão a tentar usar isso da mesma forma que o fizeram com a energia e os combustíveis. Mas está a fazer ricochete, está a cair sobre ele. E já não tem mais nada para vender. Se tirarmos da equação o trigo da Rússia, o que coloca dificuldades ao resto do mundo, a Rússia colapsa, porque não tem mais nada. Não conseguirão fazer muito dinheiro com o ciberterrorismo. A questão é saber qual é o ponto de inflexão no sofrimento russo para decidirem que já basta.