São quatro contratos no valor total de 2,2 milhões de euros e um alegado esquema de emissão de faturas fictícias que levam agora a julgamento Luís Filipe Vieira, antigo presidente do Benfica, Domingos Soares de Oliveira, ex-CEO do clube, a Benfica SAD e outros seis arguidos. Depois do pedido de abertura de instrução, o Tribunal Central de Instrução Criminal entendeu, numa decisão conhecida esta terça-feira, existirem indícios suficientes para que todos os factos que constam na acusação sejam levados a julgamento. Em causa estão dezenas de crimes de fraude fiscal, falsificação de documento e branqueamento, num esquema de falsificação de contratos e emissão de faturas falsas que levaram à saída de mais de dois milhões de euros das contas do Benfica.
Arguidos e crimes
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SLB Futebol SAD
- Dois crimes de fraude fiscal qualificada;
Benfica Estádio Construção e Gestão de Estádios SA
- Um crime de fraude fiscal;
- 19 crimes de falsificação de documento;
Luís Filipe Vieira
- 3 crimes de fraude fiscal qualificada;
- 19 crimes de falsificação de documento;
Domingos Cunha Mota Soares de Oliveira
- 3 crimes de fraude fiscal qualificada;
- 19 crimes de falsificação de documento;
Miguel Ângelo Bernardes Moreira
- 3 crimes de fraude fiscal qualificada;
- 19 crimes de falsificação de documento;
Questão Flexível, Lda
- 3 crimes de fraude fiscal qualificada;
- 34 crimes de falsificação de documento;
José António Santos Bernardes
- 4 crimes de fraude fiscal;
- 34 crimes de falsificação de documento;
- 1 crime de branqueamento;
José Silva Raposo
- 15 crimes de falsificação de documento;
Paulo Alexandre Vicente da Silva
- 15 crimes de falsificação de documento;
Durante o debate instrutório, o tribunal ouviu 10 testemunhas e quatro dos nove arguidos — os restantes não quiseram prestar declarações, fazendo uso do direito a permanecer em silêncio. Ainda assim, o tribunal pegou nas declarações dos arguidos durante os interrogatórios e considerou que nenhum era válido, uma vez que negavam todos os factos da acusação. Apenas um dos arguidos, o gerente da CapInvest — empresa que serviu para emitir as faturas falsas — admitiu que estas eram fictícias, que terão sido emitidas sem que nenhum serviço tivesse sido prestado e que recebeu 2% de cada fatura emitida.
O processo Saco Azul do Benfica segue agora para julgamento ainda sem data, com Luís Filipe Vieira como principal arguido, e nasceu a partir da identificação de transferências avultadas, numa certidão extraída do Procedimento de Prevenção de Branqueamento, segundo a decisão instrutória a que o Observador teve acesso.
A saída de dinheiro das contas do Benfica através de contratos fantasma assinados por Vieira e Soares de Oliveira
Luís Filipe Vieira deixou o cargo de presidente do Benfica em 2021, quando foi substituído por Rui Costa. Seis anos antes, em 2015, assinou, em conjunto com Domingos Soares de Oliveira, o primeiro contrato com a Questão Flexível, Lda, empresa também arguida neste processo. Em 2016, os ex-presidente e ex-CEO do Benfica assinaram outro contrato e, em 2017, mais dois — todos para prestação de serviços de consultoria e assistência técnica informática.
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A empresa Questão Flexível, Lda prestava, de facto, este tipo de serviços. No entanto, considerou esta terça-feira o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, durante a fase de instrução foram encontrados indícios suficientes de que “os contratos em questão são aparentes e que com a celebração se visou, tão só e apenas, justificar a saída” de dinheiro das contas da Benfica SAD e da Benfica Estádio SA.
Além disso, nestas datas, a Questão Flexível Lda “não dispunha de recursos humanos que pudessem sustentar os serviços supostamente prestados” às duas empresas do Benfica. Segundo a decisão instrutória, só terão sido pagos ordenados a três pessoas, concluindo o tribunal que só José Bernardes, gerente da empresa e também arguido neste processo, a sua mulher e a técnica oficial de contas trabalhavam nesta empresa.
O tribunal quis também olhar para as contas bancárias da Questão Flexível Lda, tendo constatado que “as mesmas não evidenciam saídas de dinheiro que, eventualmente, pudessem justificar a existência de uma subcontratação de serviços por parte desta empresa a outra ou outras entidades para o suposto serviço prestado” ao Benfica.
Para o juiz de instrução, Luís Filipe Vieira e Domingos Soares de Oliveira não só estavam a par do “esquema gizado” como o plano “foi da iniciativa de Luís Filipe Vieira”. E terá sido o ex-presidente a dar conhecimento dele a Domingos Soares de Oliveira e a Miguel Moreira — na altura, diretor financeiro do Benfica e também arguido neste processo. Só há um ponto que o tribunal assume não ter apurado: em que momento Luís Filipe Vieira apresentou o tal plano aos outros dois arguidos.
Mas o tribunal foi mais longe e olhou também para os depoimentos dos interrogatórios de Luís Filipe Vieira, Domingos Soares de Oliveira e Miguel Moreira. Nessa altura, os três arguidos negaram qualquer acusação, mas nenhum deu, lê-se no despacho, “uma justificação minimamente credível para suscitar dúvidas quanto à valoração” que o tribunal fez das provas analisadas.
Serviços contratados já teriam sido prestados por outras empresas
Outro dos pontos que levou o tribunal a considerar que existem indícios suficientes para levar o processo Saco Azul do Benfica a julgamento é o facto de existirem naquela altura — nas datas em que foram celebrados os quatro contratos com a Questão Flexível Lda –, outros contratos com outras empresas para o mesmo fim.
Aliás, na decisão instrutória é referido o testemunho do presidente do conselho de administração da empresa Arquiconsult — Sistemas de Informação SA, que na altura estava responsável pela implementação de software, tendo este dito que a manutenção anual das licenças e os serviços de manutenção estavam adjudicados a outra empresa que não a Questão Flexível.
“Nunca ouviu falar na empresa”, lê-se nas transcrições do testemunho. A testemunha referiu ainda que os quatro contratos celebrados e que fazem parte do processo “são vagos”, que os valores são muito superiores aos praticados habitualmente e que “não é normal existir mais do que uma empresa/entidade a prestar o mesmo serviço, até por uma questão de responsabilização perante o trabalho realizado”.
O regresso do dinheiro às contas do Benfica
Das testemunhas ouvidas durante a instrução, destaca-se uma bancária que terá sido a gestora de conta da empresa Questão Flexível e que admitiu, durante a inquirição, que, “a partir do mês de maio de 2017, esta conta passou a registar créditos avultados, seguidos de débitos de valor semelhante, em numerário, no balcão onde a conta está domiciliada“.
Estes débitos em numerário são, no fundo, a segunda parte do alegado esquema que deu origem a este processo. Depois de os cerca de 2,2 milhões de euros saírem das contas da Benfica SAD e da Benfica Estádio SA, a Questão Flexível Lda terá recebido faturas da CapInvest — também arguida neste processo — para que o dinheiro pudesse regressar ao universo do Benfica. Ou seja, segundo a decisão instrutória, e tal como já constava na acusação, a CapInvest emitiu faturas à Questão Flexível por serviços “que nunca existiram”, para que a Questão Flexível pudesse emitir cheques e para que o valor pudesse ser posteriormente levantado.
O gerente da CapInvest era José Raposo — outro arguido –, que durante o debate instrutório admitiu que estavam em causa “faturas falsas, que não suportavam qualquer serviço, tendo salientado que, em conformidade com o acordado, recebeu 2% dos valores constantes em cada fatura”, sustenta a decisão instrutória.
Mas há, no entanto, mais um arguido: Paulo Silva, amigo de José Raposo. Como amigo, terá convencido José Raposo a emitir as faturas e seria também a si que José Raposo entregava o dinheiro que sobrava depois de subtrair a comissão de 2%. “Nunca exigiu explicações a Paulo Silva, nomeadamente quanto à origem e destino do dinheiro, sendo sua convicção que todo este procedimento apenas servia para que José justificasse a saída do dinheiro da sua conta, voltando a tê-lo em numerário, sem rasto”, acrescenta o documento.
Além de José Raposo, também Paulo Silva tirava uma comissão de 2% e José Bernardes, da Questão Flexível, Lda, recebia 7% da fatura. Assim, “o clube ficava com 89% do valor da fatura sem IVA”, dinheiro que seria entregue por José Bernardes diretamente a Miguel Moreira, então diretor financeiro do Benfica.