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Joe Biden tomou posse com a mão em cima de uma Bíblia do século XIX que pertence à sua família

San Francisco Chronicle via Gett

Joe Biden tomou posse com a mão em cima de uma Bíblia do século XIX que pertence à sua família

San Francisco Chronicle via Gett

Sai Biden, católico em conflito com bispos. Vance pode ser "representação política" do "americanismo" anti-Papa que a Igreja dos EUA quer

O católico Biden entrou em conflito com os bispos de um país onde os conservadores têm grande peso — J.D. Vance pode ser o católico que se segue. Teólogo fala em fim do catolicismo conciliar nos EUA.

Quando foi eleito, no final de 2020, Joe Biden tornou-se apenas no segundo Presidente católico dos 231 anos de história dos Estados Unidos. O primeiro tinha sido John F. Kennedy, também do Partido Democrata, nos anos 60. De resto, a esmagadora maioria dos presidentes daquele país foram protestantes, inicialmente herdeiros da tradição anglicana britânica e, posteriormente, fiéis de diferentes denominações evangélicas. Mas, num país onde o cristianismo desempenha um relevante papel identitário — basta lembrar o “one nation under God” do juramento da bandeira ou o facto de a maioria dos presidentes tomar posse com a mão sobre a Bíblia —, a religião voltou a ser um tema quente para a presidência norte-americana com o católico Joe Biden, que entrou mesmo em rota de colisão com a hierarquia eclesiástica do país.

Na verdade, os Estados Unidos são um dos países do mundo onde a ala conservadora da Igreja Católica tem mais peso, uma tendência que se intensificou nos últimos anos com o regresso da discussão sobre o aborto, o principal tema fraturante a dividir a sociedade norte-americana. É a partir dos Estados Unidos que se têm levantado as mais audíveis vozes ultra-conservadoras contra o Papa Francisco — o cardeal norte-americano Raymond Burke, por exemplo, tem sido amplamente classificado como o líder da oposição ao Papa argentino.

Na campanha eleitoral de 2020, Joe Biden não só não escondeu a sua fé católica como a usou em seu benefício para angariar votos em alguns estados fundamentais para a decisão eleitoral — territórios do Midwest como Pensilvânia, Michigan ou Wisconsin, que Donald Trump tinha vencido em 2016 e que Biden conseguiu recuperar em 2020 — e para, de modo geral, chegar a um segmento religioso que já representa cerca de 20% da população norte-americana. Todavia, Joe Biden estava cada vez mais isolado também neste prisma religioso: favorável à legalização do aborto, foi alvo de críticas por parte dos bispos norte-americanos, que duvidaram abertamente da fé do Presidente, e representava já uma exceção no catolicismo norte-americano.

A desistência da corrida à Casa Branca anunciada este domingo marca definitivamente a inversão ideológica anunciada no plano religioso: se a candidata democrata à presidência for a atual vice-presidente Kamala Harris (que cresceu no contexto da Igreja Baptista), o único católico no boletim de voto deverá ser o candidato a vice-presidente pelo Partido Republicano, J.D. Vance, que representa um catolicismo bem diferente. Nas palavras recentes de um teólogo italiano, a desistência de Joe Biden pode mesmo significar o fim do catolicismo “inspirado e movido pelo Concílio Vaticano II”, em benefício de uma perspetiva católica “populista”, “imperialista” e com uma atitude de “suspeição” face ao Vaticano e ao Papa Francisco.

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epa11484678 Vice presidential nominee and Republican Senator from Ohio JD Vance speaks on the third day of the Republican National Convention (RNC) in the Fiserv Forum in Milwaukee, Wisconsin, USA, 17 July 2024. The convention comes days after a 20-year-old Pennsylvania man attempted to assassinate former president and current Republican presidential nominee Donald J. Trump. The 2024 Republican National Convention is being held 15 to 18 July 2024 in which delegates of the United States’ Republican Party select the party's nominees for president and vice president in the 2024 United States presidential election.  EPA/SHAWN THEW

J.D. Vance, candidato republicano a vice-presidente dos EUA, é católico

SHAWN THEW/EPA

A análise é do teólogo italiano Marcello Neri, académico do Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para o Matrimónio e a Família e colaborador de iniciativas da Santa Sé, que escreveu este domingo que “a renúncia de Biden à candidatura democrata às próximas eleições presidenciais encerra, simbolicamente, a época do catolicismo americano inspirado e movido pelo Concílio Vaticano II”.

“Biden representou o último suspiro de um catolicismo social não-individualista e apartidário”, escreveu ainda Marcello Neri, classificando a perspetiva de Biden sobre a fé católica como “capaz de abarcar e apoiar a complexidade do tecido social norte-americano sem se tornar rígido em posições identitárias, o que, em última análise, acaba por deixar uma parte da população sozinha a ter de lidar com a vida humana e social”.

Neri recordou ainda como Joe Biden, o segundo Presidente católico da história do país, não teve vida fácil com a hierarquia eclesiástica. O teólogo lembrou o “silêncio” dos bispos católicos norte-americanos depois do ataque ao Capitólio por apoiantes de Donald Trump, que mostrou explicitamente a “orientação política” dos bispos; assinalou como os bispos nunca deram um “verdadeiro apoio” à candidatura de Biden; e lamentou que, nos últimos anos, se tenha instalado na Igreja Católica norte-americana a tendência para se transformar num “bastião da verdade católica em termos seletivos e funcionais”.

Aborto, a fonte de tensão entre Biden e os bispos católicos

A tensão entre Joe Biden e os bispos católicos norte-americanos foi evidente desde o dia em que tomou posse, 20 de janeiro de 2021, com a mão sobre a Bíblia e com o tradicional recurso à expressão “So help me God”. No dia da tomada de posse, Biden citou Santo Agostinho e colocou uma fotografia com o Papa Francisco na Sala Oval. Tudo isto não terá sido bem visto por uma boa parte dos católicos mais conservadores: dois anos antes, um padre católico tinha proibido Joe Biden de comungar na sua paróquia. Tudo por causa de um único assunto, um tópico quente de um clima de guerra cultural, um tema tão fraturante e divisivo nos EUA que é capaz de, sozinho, definir o sentido de voto de um eleitor: o direito ao aborto.

A Igreja Católica opõe-se frontalmente ao aborto — e entre os católicos mais conservadores, não só nos Estados Unidos, esse é um dos temas-chave para decidir em quem votar numas eleições. Em 2020, Donald Trump fez campanha junto do eleitorado mais conservador com a promessa de reverter o célebre caso Roe v. Wade, que fez jurisprudência na justiça norte-americana e garantia proteção federal ao direito ao aborto. Joe Biden, por seu turno, manteve a sua posição favorável à legalização do aborto. Foi o suficiente para se tornar num alvo dos eleitores mais conservadores, mas também de uma boa parte da hierarquia eclesiástica nos Estados Unidos.

Logo no momento da tomada de posse de Biden, a Conferência Episcopal dos EUA publicou um comunicado de saudação ao novo Presidente que, como o Observador assinalou na altura, tinha duas vezes mais referências ao aborto do que à luta contra a pobreza — e quatro vezes mais do que à luta contra a pena de morte. O comunicado, que não foi unânime entre todos os bispos, classificava mesmo a luta contra o aborto como a “prioridade proeminente” da hierarquia católica. O documento foi publicamente criticado por alguns bispos, incluindo pelo cardeal Blase Cupich, de Chicago, um forte aliado do Papa Francisco — mas acabaria por fazer escola e por marcar decisivamente a posição da hierarquia da Igreja em relação a Joe Biden.

Posição do católico Biden sobre o aborto aprofunda discórdias na Igreja no dia da tomada de posse

A eleição de Joe Biden como Presidente dos EUA em 2020 aprofundou ainda mais a discórdia na Igreja Católica norte-americana — que nos últimos anos se transformou num bastião do conservadorismo anti-Papa Francisco. Ainda em 2020, a Conferência Episcopal dos EUA chegou mesmo a avançar com a ideia de redigir um documento nacional a proibir formalmente a distribuição da comunhão a todos os líderes políticos que defendam publicamente o aborto.

Apesar de não mencionar o nome de Joe Biden, era evidente que se tratava de uma reação ao novo Presidente dos Estados Unidos. Alguns bispos — designadamente aqueles que são mais próximos do Papa Francisco — manifestaram-se contra, avisando para o risco de polarização dos católicos e para a transformação de um sacramento numa arma. A tensão levou à intervenção direta do Vaticano, que se posicionou do lado de Joe Biden: um documento daquele género tornar-se-ia “fonte de discórdia”, disse o Vaticano, que pediu o diálogo dos bispos com os políticos sobre estes assuntos, mas rejeitou a imposição de uma norma nacional.

A carta do Vaticano foi ainda mais longe e avisou que os bispos estariam a cometer um erro se permitissem que passasse para o público em geral a ideia de que “o aborto e a eutanásia, por si só, constituem os únicos assuntos sérios da doutrina moral e social da Igreja que requerem a total responsabilização da parte dos católicos”. Um alerta na mesma linha do que tinha dito, numa entrevista ao Observador, o biógrafo do Papa Francisco, Austen Ivereigh, quando tinha sublinhado a “crítica muito poderosa” feita pelo Papa ao “trumpismo” e ao “populismo em geral”, pela sua “política baseada na guerra cultural, que tenta transformar um único assunto, neste caso o aborto, no único tema, sendo que tudo o resto é relativo a ele”.

Na guerra entre Joe Biden e os bispos, o Vaticano interveio para defender o Presidente dos EUA

A proibição nacional não avançou, mas a tensão entre Joe Biden e os bispos norte-americanos nunca se dissipou totalmente — com o tema do aborto sempre no centro da discórdia. Em junho de 2022, quando o Supremo Tribunal dos EUA (com uma maioria conservadora criada pelas nomeações de Donald Trump no período 2016-2020) revogou a proteção federal do direito ao aborto, a Conferência Episcopal dos EUA comemorou aquele que classificou como “um dia histórico” para o país, enquanto, de forma diametralmente oposta, Joe Biden lamentou “um dia triste” para os Estados Unidos e prometeu repor aquela proteção legal se voltasse a ser eleito Presidente.

Ao longo dos últimos anos, o peso da ala conservadora da Igreja Católica cresceu nos Estados Unidos. Uma reportagem recente da Associated Press dava conta justamente deste fenómeno nacional: as gerações de católicos progressistas do pós-Concílio Vaticano II (1962-1965) têm, gradualmente, dado lugar a novas gerações de fiéis, mais conservadores, mais politizados, mais adeptos das missas em Latim, que não viveram os tempos pré-Concílio, mas que procuram recuperar ritos e modos de pensar desses tempos. Dentro da cúpula eclesiástica, há inúmeros bispos e cardeais norte-americanos a juntar-se aos mais ferozes críticos do Papa Francisco. Tudo isto à medida que o aborto se transformou no mais divisivo assunto da sociedade norte-americana contemporânea, marcando irremediavelmente um fosso entre democratas e republicanos.

Um novo “americanismo católico” com Vance e Trump

Como notava esta semana o jornal Crux, Joe Biden nasceu em 1942, o que significa que tinha 23 anos na altura do encerramento do Concílio Vaticano II. Por isso, Biden faz parte da geração de católicos que testemunharam as transformações do concílio — das mais visíveis, como as alterações ao modo de celebrar a missa (em várias línguas e com o padre voltado para a assembleia), às menos evidentes, como a promoção do diálogo ecuménico e inter-religioso.

Para o teólogo Marcello Neri, “a Igreja Católica norte-americana tem agora no candidato republicano à vice-presidência, J.D. Vance, a representação política daquilo que sempre procurou, começando assim uma nova era de americanismo de uma Igreja que, ao contrário do que aconteceu na viragem do século XIX para o século XX, não é olhada com suspeição por Roma, mas assume o peso e a responsabilidade de se apresentar a si própria como a força motriz de uma suspeição católica em relação ao Vaticano (e em particular em relação ao Papa Francisco)”.

Supremo norte-americano revoga direito ao aborto. Vazio legal nos próximos meses pode tornar-se “um pesadelo”

Neri acusa o projeto conservador de querer distanciar “a Igreja americana do atual pontífice”, mas também de abandonar “a doutrina social da Igreja Católica como um todo”, recorrendo ao “uso discricionário do mesmo conceito teológico de tradição” para criar uma Igreja que “tem muito pouco a ver com a proclamação do Evangelho”.

No entender do teólogo italiano, a escolha de Joe Biden como Presidente dos EUA “pôs a nu um catolicismo que, na sua maioria (sobretudo entre as gerações mais jovens) e em grande parte dos bispos, escolheu o caminho do isolacionismo provincial”, ou seja, uma tradução religiosa da ideia de um país “que acredita que só pode ser grande se cuidar exclusivamente de si próprio”. Neri considera que “este catolicismo não-conciliar é intimamente imperialista”, promovendo apoios milionários a algumas “bolsas de resistência ao pontificado de Francisco” com o objetivo de transformar “o universalismo católico da Igreja numa mega-seita global” com sede nos EUA.

“A saída de Biden da cena política apresenta-nos, simbolicamente, a descida a um americanismo católico, populista e excludente”, diz ainda o teólogo. Trata-se, acrescenta, de um “catolicismo onde não há espaço para a alegria do Evangelho, mas apenas para a raiva do ressentimento, habilmente manipulado por uma parte da sociedade norte-americana que vê Trump como um Messias que vai regressar para tornar a América grande novamente”.

A saída de Joe Biden deixa agora os católicos norte-americanos de olhos postos em J.D. Vance, o candidato a vice-Presidente pelo Partido Republicano. Nascido numa família protestante e sem grande prática religiosa na infância, Vance converteu-se ao catolicismo já na vida adulta e foi batizado em 2019. Hoje é visto como um símbolo da “Nova Direita” dos EUA, conservadora, católica e populista. Sobre o aborto, Vance já se posicionou frontalmente contra — e em 2021 chegou mesmo a dizer que até as vítimas de violação e de incesto deviam ser impedidas de abortar.

Quem é realmente J.D. Vance, o vice que já foi muito crítico de Trump? E o que representa a sua escolha?

Como lembra o The New York Times, Vance apoiou a decisão do Supremo Tribunal dos EUA de reverter o caso Roe v. Wade e, quando se candidatou ao Senado em 2022, defendia a proibição do aborto. Mais recentemente, porém, tem procurado aproximar-se da posição de Donald Trump — defendendo que se trata de uma matéria, essencialmente, da esfera de competência dos estados e não se opondo ao recurso à pílula do dia seguinte.

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