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Esperava-se que o Presidente russo, Vladimir Putin, abordasse a questão da Transnístria, a região separatista da Moldávia que na quarta-feira pediu proteção a Moscovo. No discurso do Estado da Nação mais longo de sempre feito pelo chefe de Estado na Assembleia Federal russa — durou duas horas e seis minutos —, oportunidades não faltaram para falar sobre o tema que motivou preocupações no governo moldavo e no Ocidente. No entanto, o líder russo optou por ignorar o assunto.
No discurso, Vladimir Putin mandou vários recados ao Ocidente, repetindo ameaças nucleares contra os países europeus e contra os Estados Unidos. Depois, o líder russo analisou a situação económica no país e divulgou os planos que espera concretizar até 2030, mesmo que ainda não tenham tido lugar as eleições presidenciais na Rússia, marcadas para 17 de março. E, de forma inesperada, o Chefe de Estado falou sobre o futuro das “elites” russas — e quem espera que sejam os seus integrantes.
Em clima pré-eleitoral, Vladimir Putin deixou várias promessas de que a Rússia será um país mais rico, estável e seguro até 2030. O líder russo reconheceu que o país vive um “período difícil com provações e dificuldades”, mas ressalvou que existem “planos a longo termo”. “O programa definido neste discurso é objetivo. É o programa de um país soberano e forte que olha com confiança para o futuro. Para alcançarmos os nossos objetivos, temos recursos e grandes oportunidades.”
Putin insiste que não foi a Rússia que “começou a guerra” na Ucrânia e deixou várias ameaças nucleares ao Ocidente
No que toca à política externa, o discurso desta quinta-feira de Vladimir Putin não trouxe grandes novidades. O líder russo voltou a apontar o dedo ao Ocidente, acusando-o de querer transformar a Rússia num país fraco. E reiterou a ideia de que um ataque contra a Rússia levaria a uma resposta nuclear, acenando com o arsenal que dispõe.
Sobre o que diz ser a “operação militar especial” na Ucrânia, o líder russo assinalou que a “pátria está lutar pela sua soberania e segurança, defendendo as vidas do compatriotas no Donbass e na Novorossiya”. Esta última região engloba todo o sul da Ucrânia (parcialmente controlado pela Ucrânia), indo até Odessa, uma cidade que Vladimir Putin já adjetivou como sendo “russa”.
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Garantindo que o conflito é apoiado por uma grande maioria dos russos, Vladimir Putin sinalizou que o país continua unido no objetivo de conquistar territórios ucranianos. “As pessoas enviam cartas, roupas quentes para a frente; elas doam dinheiro das suas poupanças, algumas até modestas. Este tipo de assistência não tem valor — é a contribuição de todos para a vitória comum”, saudou o chefe de Estado, acrescentando que os “heróis na linha da frente e nas trincheiras sabem que todo o país está com eles”.
O apoio do Estado à guerra vai continuar, prometeu Vladimir Putin, que aproveitou para agradecer a “todos os partidos parlamentares” por estar unidos em redor dos “interesses nacionais”. E elogiou inclusivamente o “sistema político da Rússia”, que é um dos “pilares da soberania do país”: “Vamos continuar a avançar as instituições democráticas e resistir a todos os tipos de interferência eleitoral nos nossos assuntos internos”.
Em contraposição, o Ocidente adota “prática coloniais” que incentivam “conflito étnicos” em todo o mundo, incluindo na Rússia. Para Vladimir Putin, os países ocidentais “enveredam esforços para tornar a Rússia num espaço dependente, em declínio e a morrer” no seio da comunidade internacional. “Eles querem replicar na Rússia o que fizeram em numerosos países, incluindo a Ucrânia”, insinuou o Presidente, acrescentando que o Ocidente deseja “criar a discórdia na Rússia e enfraquecer o país de dentro”.
“Mas eles estavam enganados”, prosseguiu Vladimir Putin, afirmando que não foi a Rússia que “começou a guerra no Donbass”. “Como já referi muitas vezes, nós devemos erradicar o nazismo e alcançar todos os objetivos da operação militar especial, tal como devemos defender a soberania e assegurar que o nosso povo está seguro”.
Para providenciar segurança ao povo russo, o Presidente russo enviou uma mensagem que extravasou as fronteiras da Rússia: “As armas nucleares estratégicas estão em prontidão de combate e a nossa habilidade de as usarmos está assegurada”, alertou Vladimir Putin, recordando o míssil balístico hipersónico Kinzhal e o navio de guerra Zircon equipado com um sistema de mísseis hipersónicos. Os dois são capazes de transportar ogivas nucleares.
Lamentando que o Ocidente “provocou conflitos na Ucrânia, no Médio Oriente e em outras regiões”, Vladimir Putin indignou-se pelas acusações ocidentais de que a Rússia vai atacar a Europa: “Conseguem acreditar? Todas as suas declarações são completamente sem sentido”. Notando “hipocrisia” nas suas atitudes, o chefe de Estado russo alegou que o Ocidente está a “selecionar alvos para atacar o território [russo] e a contemplar os meios mais eficazes de destruição”. “Até já começaram a falar da possibilidade de enviar contingentes militares para a Ucrânia.”
Por tudo isto, o Presidente russo deixou uma ameaça. Invocando a tentativa de conquista da Rússia por Napoleão Bonaparte e depois por Adolf Hitler, Vladimir Putin garantiu que quaisquer “potenciais agressores enfrentarão consequências muito mais graves”. “Eles devem entender que também temos armas — eles sabem isso — que são capazes de atingir alvos no território deles.”
Culpando o Ocidente por estar a “assustar o mundo com a ameaça de um conflito que envolve armas nucleares”, Putin vincou que isso pode significar o “fim da civilização”. “Eles não entendem isso?”, questionou, explicando que os líderes ocidentais não têm noção “dos horrores da guerra”. Vladimir Putin sublinhou ainda a “russofobia” que está a “cegar e estupidificar” as autoridades ocidentais. “Os Estados Unidos e os seus satélites destruíram o sistema de segurança europeu que está a criar riscos para todos.”
Na parte inicial do discurso em que atacou o Ocidente, Vladimir Putin mencionou apenas o nome de um país: os Estados Unidos da América (EUA). Mostrando-se disponível para colaborar com o país em termos nucleares, o líder russo disse que isso não acontece com mais frequência por conta das “políticas hostis” de Washington.
Denunciando o que caracterizou como “hipocrisia”, Vladimir Putin atacou os EUA por recentemente terem feito “alegações sem fundamento em particular contra a Rússia” relativamente aos supostos planos de que Moscovo colocaria “armas nucleares no espaço”. “Essas narrativas falsas, e esta história é inequivocamente falsa, estão destinadas a que nos envolvamos em negociações que apenas beneficiam os Estados Unidos.”
“Independência, autossuficiência e soberania”. Putin tem desejos para o futuro
O chefe de Estado russo dedicou grande parte do discurso aos problemas sociais e económicos da Rússia. A diminuição da taxa da natalidade — e os “desafios demográficos” — ocuparam alguns minutos.
“O principal propósito da família é ter filhos, é procriar, é trazer crianças ao mundo e assegurar a sobrevivência da nossa nação multiétnica”, definiu Vladimir Putin, aproveitando para criticar o Ocidente, em que os “padrões da família estão a ser deliberadamente destruídos”: “Nações inteiras estão a caminho da extinção e da decadência”. Pelo contrário, a Rússia “escolheu a vida”, sendo um “bastião dos valores tradicionais em que a civilização humana está baseada”.
Assim, o Presidente da Rússia considerou que as famílias do país devem ser apoiadas. “Uma família com muitas crianças deve tornar-se a norma, deve ser a lógica da filosofia social e o foco da estratégia do Estado”, declarou Vladimir Putin. Em concreto, o objetivo é assegurar o “crescimento sustentável da taxa de natalidade nos próximos seis anos”, estando a ser tomadas medidas para “apoiar famílias e melhorar a qualidade de vida”.
Perante a plateia — em que estavam presentes os principais políticos russos — e em jeito de comício a menos de três semanas das eleições, Vladimir Putin lamentou a taxa de pobreza do país, indicou que vai criar mais apoios para famílias e investir na ferrovia. “Os planos são grandes e também são as despesas. Os investimento de larga escala estão a chegar à esfera social, demográfica, económica, científica, tecnológica e na área das infraestruturas.”
Ao mesmo tempo, houve uma tónica que esteve sempre presente no discurso anual de Vladimir Putin: a busca pela “independência, autossuficiência e soberania”. Numa altura em que a Rússia continua a ser alvo de múltiplas sanções — que deverão aumentar nos próximos tempos —, o Presidente russo frisou que o país deve “produzir bens de consumo em maior volume”: “Medicamentos, equipamentos, máquinas, veículos, entre outros”. “Não podemos fazer tudo, não precisamos de produzir tudo. Mas o governo sabe o que tem de ser aposta.”
Na mesma linha, Vladimir Putin disse ser “importante aumentar a produtividade” na Rússia e incentivar os setores tecnológicos. “Traçamos um objetivo: em 2030, o volume de investimentos em indústrias-chave deve aumentar até 70%”, enfatizou, acrescentando que é “necessário criar todas as condições para que pequenas e médias empresas se desenvolvam”.
Na área da Saúde, o Presidente russo não deixou de abordar um dos principais problemas do país: o alcoolismo. Elogiando que já se atingiram “resultados positivos” — “diminuiu-se significativamente o consumo de álcool” —, Vladimir Putin diz quer continuar a “melhorar a saúde da nação”.
Um futuro da Rússia por Putin: uma “nova elite” mais militar e as críticas aos oligarcas
Na parte final do discurso, Vladimir Putin voltou a recordar os feitos dos combatentes na Ucrânia. “Eu olho para aquelas pessoas corajosas, às vezes jovens, e, sem qualquer exagero, posso dizer que o meu coração está cheio de orgulho daquelas pessoas. Estas pessoas, claramente, não nos abandonarão, não nos desapontarão, não nos trairão”, afirmou o Presidente russo, no que parece ser uma alusão ao antigo líder do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, que tentou uma rebelião militar que abalou o regime russo.
No entender do chefe de Estado, são estas pessoas que devem assumir “posições de liderança” em várias áreas, desde a educação à política. “São estes heróis e patriotas que às vezes são modestos e reservados; eles não se gabam dos sucessos, não gritam slogans barulhentos”, descreveu Vladimir Putin, realçando que são estas pessoas que “nos momentos de viragem na história assumem responsabilidades”. “É a estas pessoas, que pensam no país, a quem pode ser confiada a Rússia no futuro.”
Esta foi uma das poucas vezes em que Vladimir Putin quebrou o tabu sobre o futuro da política da Rússia quando deixar o poder. Depois, o líder russo aproveitou para deixar críticas aos oligarcas que enriqueceram nos anos 90, logo após a queda da União Soviética. “Sem qualquer mérito para a sociedade, julgam-se um tipo de casta com direitos especiais e privilégios, especialmente aqueles que encheram os bolsos em todos os tipos de desenvolvimentos que sofreu a economia nos anos 90″, atacou o Presidente, assegurando: “Eles definitivamente não são a elite”.
Vladimir Putin não tem dúvidas de que a “elite real” são pessoas que “servem a Rússia”: “Trabalhadores e guerreiros que provaram a sua devoção ao país”. Deste modo, o chefe de Estado inaugurou uma nova iniciativa a que deu o nome de “O Tempo dos Heróis”, em que militares que participaram na guerra da Ucrânia vão poder fazer parte num “programa especial” para formar novos líderes, que se poderão tornar “ministros e chefes de regiões”.
Novamente agradecendo aos militares, Vladimir Putin ligou a implementação de todos os planos que apresentou esta quinta-feira aos “soldados, oficiais e voluntários — todos aqueles que estão a lutar na linha da frente com coragem e determinação a defender a pátria”. “São eles que estão a criar as condições absolutamente necessárias para o futuro do nosso país e para o nosso desenvolvimento.”
“A Rússia é uma grande família”, proclamou no final o Presidente russo, que parece já saber quem a vai liderar quando tiver um dia de sair do cargo.