Para os habitantes da província espanhola de Zamora, Pozo Muerto não passava de uma paragem de autocarro. Se não fosse isso, era apenas o local onde o rio Tera desaguava no Lago de Sanábria. Nunca tinha havido algo que os levasse a pensar no sentido literal do nome. Até 27 de dezembro de 2019.
Aproveitando a calmaria que se seguia à confusão do Natal, dois cidadãos galegos foram dar um passeio à beira da água. Tinham na sua agenda apenas o contacto com a natureza, mas acabaram por se deparar com algo estranho naquele cenário. Um corpo a boiar ao largo do conhecido Pozo Muerto, localizado na região de Castela e Leão.
Do que conseguiram ver, tinha vestido umas calças pretas, uma camisola castanha clara, um casaco de lã e umas botas, aparentando ter cerca de 70 anos. No entanto, não quiseram analisar muito mais. Preferiram deixar essa missão para as autoridades.
A Guardia Civil chegou pouco depois. Os agentes retiraram o homem da água e procuraram por algo que o identificasse. Revistaram os seus bolsos ensopados em busca de algum tipo de documento e varreram os terrenos na esperança de por ali haver “uma viatura estacionada ou abandonada nas imediações”, como referiu a Guardia Civil em comunicado. Contudo, a única coisa que encontraram foi um maço de cigarrilhas da marca Handelsgold.
O silêncio que marcou os primeiros sete meses da Operação Handelsgold
As cigarrilhas da marca alemã eram, até então, a única pista que a Guardia Civil de Zamora tinha. O conteúdo da caixa, no entanto, não dava qualquer indício de quem era a vítima ou as causas para ter ido ali parar.
Os agentes chegaram a colocar a hipótese de suicídio em cima da mesa, mas acabaram por descartá-la, quando examinaram o corpo e detetaram “sinais de que tinha sido atacado”, como relataram os meios de comunicação social espanhóis.
A autópsia veio a confirmar as suspeitas. “Havia indícios suficientes para concluir que tinha sofrido uma morte violenta“, revelou aos jornalistas o capitão Eduardo Vicente, chefe da Unidad Orgánica de Policía Judicial de la Comandancia de la Guardia Civil de Zamora, no final de dezembro. “Tinha morrido por afogamento. Asfixia por submersão”, garantiu.
À incógnita sobre a identidade da vítima somaram-se outras. Além de perceber quem tinha matado aquele homem, as autoridades tinham de compreender as razões para o homicídio. E não era pelo maço de cigarrilhas que lá iam chegar.
Apesar de as amostras de ADN terem sido logo recolhidas, a correspondência só aconteceu em julho de 2020 — tendo a pandemia sido a maior culpada pelo atraso. O match das amostras do corpo de Pozo Muerto fez-se com uma amostra anterior, recolhida no Reino Unido.
Através da base de dados da Interpol, as autoridades de Zamora descobriram que o corpo pertencia a Jaime Gomes, um homem de nacionalidade portuguesa que tinha residido nas ilhas britânicas e que tinha lá antecedentes criminais.
A investigação tinha, finalmente, um ponto de partida, que evoluiu quando a Guardia Civil descobriu que o homem tinha residência em Verín, na província de Ourense, situada a cerca de 92 quilómetros do Lago de Sanábria, e também em Chaves, no distrito de Vila Real.
A partir daí, os agentes procuraram por conhecidos de Jaime Gomes e “a investigação centrou-se na pessoa que lhe prestava cuidados e no seu companheiro de casa”, como dá conta o jornal La Opinión de Zamora. “Além disso, os agentes descobriram que a vítima tinha contas bancárias em comum” com uma cidadã portuguesa, pelo que “estabeleceram mecanismos de coordenação com a Polícia Judiciária” (PJ).
A mulher, perceberam entretanto as autoridades espanholas, além de manter “uma relação sentimental” com a vítima, também já tinha antecedentes por “crimes violentos e contra a saúde pública” em Portugal. Tratava-se de Ana Cristina Alves. Ou melhor, “Sete Línguas”, como é conhecida em Chaves.
Aliciava os reformados à porta dos bancos e assaltava-os nos “encontros” amorosos
A alcunha de Ana Cristina Alves, de 49 anos, não tem origem no domínio de vários idiomas. Nasce, sim, da conversa que dava aos reformados à porta dos bancos, precisamente no dia em que recebiam as pensões. Nessa altura, a mulher convencia os homens a ir participar em “encontros” amorosos, onde, segundo apurou o Correio da Manhã, aproveitava para os assaltar. Terá sido isso que fez com Jaime Gomes.
Com o ex-emigrante, no entanto, a relação não terminou com o primeiro roubo. Ana Cristina Alves, residente na freguesia da Madalena, no concelho de Chaves, ofereceu-se para ser sua cuidadora, tendo depois a relação evoluído para algo mais.
“A suspeita dava apoio à vítima, que requeria cuidados habituais”, revela o inspetor-chefe da PJ de Vila Real, António Torgano, ao Observador. “O idoso estava convencido de que ela era sua companheira.”
Ana Cristina Alves chegou mesmo a viver com Jaime Gomes no Reino Unido, antes de este se ter mudado para Espanha. E esta mudança deu também uma nova alcunha à arguida. A partir desse momento, os moradores de Chavespassaram a chamá-la “Cristina Espanhola”.
Na pequena aldeia de Verín, a forma como Ana Cristina Alves lidava com Jaime Gomes não passou despercebida aos vizinhos. Segundo o Correio da Manhã, os vizinhos garantiram — após a descoberta do corpo — que o homem era “maltratado” e que até “chegou a dormir na rua”.
Em Jaime Gomes, apurou a investigação, o que atraía “Sete Línguas” seria, não uma, mas duas pensões “suculentas”. Além de receber uma pensão em Portugal, “a vítima também era paga pelo Estado britânico” num valor equivalente a 800 euros.
“Mesmo após a morte da vítima, a suspeita continuou a receber a pensão”, explica António Torgano. Isso levou a que Ana Cristina Alves e os dois homens suspeitos de serem cúmplices do crime acumulassem mais de 35 mil euros entre o momento da morte de Jaime Gomes e o desfecho da operação.
O “interesse económico”, contudo, não foi logo a primeira hipótese colocada pela Guardia Civil. “Inicialmente, pensámos em algum tipo de amizade relacionada com o tráfico de droga, um ajuste de contas. Ou como um bode expiatório para uma questão de droga”, disse o Tenente Carlos Val, chefe da investigação da Guardia Civil. No entanto, ao ver os antecedentes criminais dos suspeitos, a PJ não teve dúvidas.
De Chaves a Zamora por pensões “suculentas”
Para matar o companheiro, Ana Cristina Alves terá contado com a ajuda do amante, Francisco António Gonçalves, de 70 anos, também conhecido como “Chico”, e do companheiro de casa, António Carlos Gomes, de 63 anos, apelidado “Marinheiro”.
“Estavam todos em Chaves, tendo o início do crime ocorrido cá”, reforçou o inspetor. “Os três suspeitos convenceram a vítima a ir até Espanha para um passeio. A meio — não sabemos onde, se em Portugal ou Espanha — amordaçaram-no e meteram-no no porta-bagagens do carro“. O carro acabou por seguir para o Lago Sanábria, onde foi “concretizado o homicídio”, conta ao Observador.
Quando questionados sobre o seu paradeiro, contudo, “Sete Línguas”, “Chico” e “Marinheiro” disseram que Jaime Gomes tinha desaparecido de casa no início do dezembro.
Ana Cristina Alves e Francisco António Gonçalves acabaram por ser detidos, depois da execução de um mandado de detenção europeu, a 17 de agosto de 2023, pela PJ de Vila Real. Nesse momento já António Carlos Gomes se encontrava preso por outros crimes — tendo cadastro criminal ligado ao alcoolismo e à desobediência, segundo o Observador conseguiu apurar.
Os três foram presentes ao Ministério Público e o Tribunal da Relação de Guimarães declarou a sua extradição, apesar de se terem “oposto inicialmente”, segundo informou António Torgano. Os dois primeiros, que tinham antecedentes criminais ligados ao “roubo e furto”, foram extraditados num prazo de dez dias. Já o terceiro só se juntou a eles, na prisão A Ama, em Pontevedra, a 1 de dezembro.
Os suspeitos foram acusados de “crime de homicídio”, segundo o que a Guardia Civil de Zamora revelou ao Observador, e vão ser julgados na Audiencia Provincial de Zamora, não havendo para já data para o início do julgamento.
As autoridades espanholas chegaram a deter uma quarta pessoa, que acabou por ser libertada, após terem constatado que “apenas mantinha uma relação de amizade com os três detidos e que não estava ligado de forma alguma ao ato de homicídio”.
A vítima, Jaime Gomes, continua sepultada no cemitério de Zamora, na zona dos “Desamparados”. No entanto, a embaixada britânica em Madrid conseguiu contactar a filha, residente no Reino Unido, que deverá pedir a trasladação do corpo.