Com a saída do CDS do Parlamento, o Chega passou a ser o único partido que tem na génese uma posição contra a legalização do aborto, ainda que nem todos os dirigentes estejam alinhados neste tema. O regresso do assunto ao debate público, nomeadamente pelo facto de o Supremo Tribunal dos EUA ter deixado em aberto a possibilidade de revogar a proteção do direito ao aborto, pode abrir portas a uma nova discussão em Portugal.

A Federação Portuguesa pela Vida vê com bons olhos que volte a haver espaço para se falar de um assunto que considera “não pacificado” e não tem qualquer reticência que seja o Chega a trazê-lo para discussão, ainda que, segundo Isilda Pegado, advogada e presidente da associação, haja um caminho que pode ser feito sem que se mexa na lei.

André Ventura revelou ao Observador que o Chega “não pretende retomar o debate e a iniciativa legislativa na presente legislatura”, tendo em conta que o tema não está em cima da mesa nem para a direção nem para o Conselho Nacional, o que afasta a possibilidade de o tema chegar ao Parlamento.

Mas nem todos os dirigentes do Chega veem a questão da mesma forma. Numa entrevista ao Observador, Diogo Pacheco Amorim admitiu ver “com todo o agrado” que o tema tenha voltado a ser discutido nos EUA e que possa voltar a sê-lo em Portugal.

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Questionado sobre se o partido pode agarrar essa bandeira, o ideólogo do Chega recorda que o partido “tem uma posição programática clara: a vida é inviolável desde o momento da conceção até ao momento da morte” e não fechou a porta à possibilidade: “No momento que acharmos adequado, estaremos nessa batalha.”

O que tem o Chega no programa

No primeiro capítulo do programa do Chega, em que se aborda a matriz moral do partido, o segundo ponto contém a questão do aborto, apesar de a palavra não aparecer nem por uma vez durante todo o programa, nem sequer o conceito de interrupção voluntária da gravidez.

“O Chega defende, nos termos constitucionais, a inviolabilidade da vida humana em todas as suas fases e dimensões, com todas as consequências jurídicas daí decorrentes.” A frase concisa reflete a ideia de que a vida humana é inviolável desde a conceção até à morte — exatamente a mesma que é defendida pelos movimentos pró-vida.

No Conselho Nacional do Chega, em Sagres, onde se discutiu amplamente o programa do partido, a questão do aborto esteve em cima da mesa porque havia quem considerasse que a ideia de “inviolabilidade da vida humana” era suficiente para resolver a posição sobre o aborto, mas havia a opinião contrária.

Foi o próprio presidente do partido que propôs a formulação que adquiriu consenso (e que ficou no programa), ao acrescentar à  “inviolabilidade da vida humana” a ideia de que esta deve ser garantida “em todas as suas fases e dimensões com todas as consequências jurídicas daí decorrentes”. Com esta versão, ficou de fora a “proposta de criminalização” que chegou a estar em cima da mesa e a ideia ficou apenas implícita.

Porém, o programa do Chega com que André Ventura foi eleito deputado em 2019 tinha uma proposta que envolvia o aborto. O intuito era que a este método fosse retirado o conceito de saúde pública, o que implicaria “o fim imediato dos apoios do Estado e da subsidiação quer do aborto, quer da mudança de sexo através do Serviço Nacional de Saúde, ou seja, pagos pelo contribuinte”. A iniciativa nunca chegou a ver a luz do dia e já não estava no programa para as legislativas de 2022.

Aborto a várias vozes no Chega

O Chega nunca escondeu que há diferentes forma de olhar para o tema do aborto dentro do próprio partido, com pessoas com visões mais conservadoras — como Rita Matias ou Pedro dos Santos Frazão — e outros dirigentes nem tanto.

André Ventura é um desses rostos mais moderados e, apesar de já ter admitido que não é “eticamente a favor do aborto”, diz-se incapaz de permitir que em Portugal “haja um processo crime contra uma mulher que abortou”.

O líder do Chega foi claro ao dizer, logo à partida, que não pediria uma revisão da lei do aborto pelo facto de não querer criminalizar quem o faz e, nos anos em que foi deputado único, não entrou qualquer iniciativa com este intuito.

A dirigente e deputada do Chega, Rita Matias, é uma das vozes que mais tem centrado o seu discurso, já por várias vezes e em vários eventos do partido, na defesa do valor da vida, na ideia de família tradicional e na condenação do aborto e da eutanásia.

“Não podemos ser o país que financia o aborto, mas que é incapaz de tirar uma parte do seu orçamento para financiar as famílias para que estas não queiram recorrer a esta falsa solução”, referia Rita Matias na II Convenção do Chega, enquanto num outro evento do partido sugeria que há mulheres a sofrer de “violência psicológica” e em que lhes é “impingido um aborto se tiver no ventre uma criança com Síndrome de Down”.

Pedro Santos Frazão é outro dos dirigentes do Chega que já mostrou ser contra o aborto e que, em declarações ao Observador, admitiu concordar com a ideia assumida por Diogo Pacheco Amorim. “É também a posição da matriz política do partido, a da defesa da vida desde a conceção até à morte natural”, afirmou.

A postura assumida por Diogo Pacheco Amorim é seguida por outros dirigentes do Chega que, ouvidos pelo Observador, admitem que gostariam de ver o tema a ser discutido em Portugal e que esse seria um bom caminho.

Porém, há quem pense exatamente o contrário: que não é o tempo de voltar a discutir o tema e que a luta deve ser feita de outras formas, nomeadamente com o trabalho de “defesa da vida e iniciativas que promovam as famílias, o apoio à natalidade e o aumento de crimes para violadores”. “Introduzir o tema agora só vai desviar a atenção”, referia uma das fontes do Chega ouvidas pelo Observador.

Eutanásia, o outro tema que o Chega não esquece

Ao contrário da questão do aborto — em que o partido de André Ventura parece sozinho no Parlamento —, o Chega votou a eutanásia ao lado do PCP, de 63 deputados do PSD (incluindo o líder parlamentar, Paulo Mota Pinto, e dirigentes como José Silvano e Ricardo Batista Leite) e de sete deputados do PS (Joaquim Barreto, Romualda Fernandes, Raquel Ferreira, Cristina Sousa, Pedro Cegonho, Maria João Castro, Sobrinho Teixeira).

O Chega quis ir mais longe, não quis deixar passar o momento em branco e apresentou ainda uma proposta de referendo. Apesar de ter sido chumbada, como era previsível, a proposta mereceu 77 votos a favor e duas abstenções, com a maioria dos deputados do sociais-democratas a levantarem-se ao lado da bancada de André Ventura.

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O assunto “não pacificado”

Isilda Pegado, da Federação Portuguesa pela Vida, considera que este não é um tema encerrado, que é um “assunto não pacificado” e que está na ordem do dia de várias instituições. Para a advogada, é uma questão que “pode voltar a ser reacendida”.

A responsável acredita que há mulheres “forçadas” a abortar por falta de condições económicas, sociais ou pressões entidades patronais e que “a oferta que existe é pôr fim à vida do filho”.

Além de frisar que deve ser feita uma avaliação do que tem sido o aborto em Portugal, Isilda Pegado acredita que a sociedade não está tranquilizada com esta opção e que a quantidade de movimentos cívicos sobre o tema mostram esse desconforto. Mais do que isso, aponta para a juventude, que diz estar “muito interessada no assunto”.

A Federação Portuguesa pela Vida recebeu o Chega, a pedido do partido, no âmbito do tema da eutanásia, mas Isilda Pegado admite que “é indiferente” que seja o partido liderado por André Ventura ou qualquer outro a trazer o tema.

Aos olhos da responsável, a alteração à lei “não é o primeiro passo a dar”, mas sim a necessidade de criar mecanismos e políticas de apoio à maternidade, à gravidez e que desincentivem o aborto.

A discussão nos EUA que recuperou o tema

Em 1973, os EUA tomaram a decisão histórica de reconhecer o direito constitucional ao aborto. Agora, quase 50 anos depois, o Supremo Tribunal prepara-se para anular a decisão.

O documento em causa, escrito pelo juiz conservador Samuel Alito, foi divulgado pelo jornal Politico e revelava que processo Roe vs. Wade, que há quase meio século sustentava que a Constituição dos EUA protegia o direito da mulher a fazer um aborto, era “totalmente sem mérito desde o início”.

A ideia de que esta lei deve ser “derrubada” está a ser analisada e negociada no Supremo Tribunal e, caso isso aconteça, os EUA regressam ao que existia antes de 1973, quando cada estado era livre de proibir ou autorizar a realização de abortos.

Espanha vai em sentido oposto

Já em Espanha, foi aprovado um conjunto de medidas onde está incluído o aborto a partir dos 16 anos sem autorização dos pais.

A proposta de lei surgiu no seguimento de uma série de medidas que a ministra da Igualdade, Irene Montero, adiantou no final de fevereiro. Sobre o aborto, a governante frisou que “interromper voluntariamente a gravidez será garantido em todos os hospitais públicos”.

“É imprescindível que todos os centros clínicos com serviço de ginecologia e obstetrícia contem com profissionais que garantam a interrupção voluntária da gravidez, respeitando também o direito à objeção de consciência”, assegurou a governante.

A medida foi tomada na mesma altura em que Espanha se tornou no primeiro país europeu a ter uma baixa menstrual, à semelhança do que já acontece em países como a Coreia do Sul e o Japão. Neste país, estima-se que um terço das mulheres sofre de dor acentuada durante a menstruação e o valor é ainda mais elevado se for contabilizada também a dor pré-menstrual.

O juiz com posições polémicas sobre o aborto

A questão do aborto voltou a ser tema em Portugal quando, nas últimas semanas, foram conhecidas algumas das posições de António Almeida Costa, que acabou chumbado na candidatura a novo juiz do Tribunal Constitucional.

Nas décadas de 80 e 90, o jurista rejeitou a legalização da interrupção da gravidez — em qualquer circunstância —, argumentando com a existência de “investigações médicas” que permitiriam concluir que as mulheres que eram “violadas raramente engravidam”, uma vez que “a experiência demonstra que, muitas vezes, o violador é, ele próprio, estéril devido a outros comportamentos sexualmente aberrantes”.

As informações, que apareciam num estudo norte-americano, baseavam-se em experiências realizadas em campos de concentração nazis e levaram o professor universitário a referir que as teorias afastavam, “desde logo, a indicação ética ou criminológica como fundamento para a legalização do aborto”.

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O nome do jurista acabou por ser chumbado cinco vezes, sempre com a mesma votação: seis a favor, quatro contra, confirmaram os juízes através do voto secreto. António Almeida Costa era candidato a ocupar o lugar de Pedro Machete como juiz conselheiro do Tribunal Constitucional e precisaria de sete dos dez votos dos juízes eleitos pela Assembleia da República para ser escolhido.

Apesar deste chumbo, sabe-se que sempre houve juízes conservadores no Tribunal Constitucional que eram contra a prática da interrupção voluntária da gravidez e que encontram espaço na Constituição para justificar a opção.