Cinquenta anos depois, o direito ao aborto deixou de ser equivalente aos direitos previstos na Constituição norte-americana. Com a decisão do Supremo Tribunal conhecida esta sexta-feira, cada um dos 50 estados norte-americanos voltar a ser livre para legislar sobre o tema e a consequência já se adivinha: cerca de metade dos estados vão manter o direito ao aborto, mas a outra metade vai apertar as restrições ou até mesmo proibi-lo. Um processo que, na prática, não será feito à mesma velocidade em todo o país onde o vazio legal desta transição poderá vir a ser um verdadeiro “pesadelo”, como já preveem alguns especialistas.
A decisão agora conhecida por Dobbs vs Jackson é uma vitória para os republicanos — entre eles, Donald Trump que, apesar de já não se sentar na Sala Oval, foi quem nomeou para o Supremo Tribunal alguns dos nomes que iriam votar esta matéria. E o resultado não foi uma surpresa total — em maio, o Politico divulgou de forma antecipada (e sem precedentes) um rascunho daquilo que se antecipava que pudesse vir a ser a posição da maioria dos juízes do Supremo norte-americano, ainda antes da votação final.
“Abominável”. Supremo dos EUA pondera revogar lei do aborto que tem 50 anos. O que está em causa?
A publicação deste documento confidencial caiu em maio com uma bomba, mas aparentemente sem força suficiente para mudar o seu sentido. E o previsível aconteceu esta sexta-feira: os seis juízes da ala conservadora — Samuel Alito, Roberts, Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett (estes três últimos escolhidos por Donald Trump) — contra os três da ala liberal — Stephen Breyer (nomeado por Clinton), Sonia Sotomayor e Elena Kagan (ambas escolhidas por Obama) — revogaram a decisão tomada naquelo mesmo tribunal há 50 anos no caso “Roe v. Wade”, que considerou o direito ao aborto como um ponto incluído no direito à privacidade mencionado na Constituição.
Um princípio errado, de acordo com a decisão agora conhecida. “Consideramos que a Constituição não confere o direito ao aborto. Roe e Casey devem ser anulados, e a autoridade para regular o aborto deve ser devolvida ao povo e seus representantes eleitos”, lê-se. “A Constituição não proíbe os cidadãos de cada Estado de regulamentar ou proibir o aborto. Roe e Casey arrogaram essa autoridade. Nós agora anulamos essas decisões e devolvemos essa autoridade ao povo e aos seus representantes eleitos”, refere agora a Dobbs v. Jackson nas suas 213 páginas.
O texto do Supremo termina, aliás, com a mesma conclusão que o inicia: “O aborto acarreta uma profunda questão moral”. Os juízes têm consciência de que o tema divide os americanos, colocando num extremo quem concorda, no outro quem discorda e ainda noutro ponto de discussão os que concordam, mas com regras (e quais). Por isso consideram que deve ser cada estado a decidir o que fazer.
E a cinco meses das eleições intercalares nos EUA, onde o tema certamente será debatido, é o próprio Supremo a incitar à participação popular, sobretudo por parte das mulheres.
“A decisão devolve a questão do aborto a esses órgãos legislativos e permite que as mulheres de ambos os lados da questão do aborto possam interferir no processo legislativo, influenciando a opinião pública, pressionando os legisladores, votando e concorrendo a cargos. As mulheres não estão sem poder eleitoral ou político. Vale ressaltar que a percentagem de mulheres recenseadas e que votam, que é consistentemente maior do que a percentagem de homens. Na última eleição, em novembro de 2020, as mulheres, que representam cerca de 51,5% da população do Mississippi, constituíram 55,5% dos eleitores que votaram”, lê-se.
Os juízes deixam, porém, claro que com esta decisão não pretendem saber como o sistema político ou a sociedade vão responder a esta decisão que anula a Roe vs Casey. “E mesmo que pudéssemos prever o que vai acontecer, não teríamos autoridade para deixar esse conhecimento influenciar nossa decisão. Nós só podemos fazer nosso trabalho, que é interpretar a lei”, escrevem.
Os juízes que votaram contra, por seu turno, fizeram uma declaração de voto. “Ao anular Roe e Casey, este Tribunal trai seus princípios orientadores. Com pesar – por este Tribunal, mas mais ainda pelos muitos milhões de mulheres americanas que hoje perderam uma proteção constitucional fundamental – discordamos.”
Supremo Tribunal dos Estados Unidos acaba com o direito constitucional ao aborto no país
Cinco estados já baniram o aborto. O vazio legal e o caos que se adivinha nos próximos meses
Segundo o The New York Times, desde que a decisão do Supremo foi tornada pública, o aborto passou a ser punido já em cinco estados norte-americanos. Kentucky, Louisiana, Missouri e Dakota do Sul são quatro deles. O país divide-se agora assim: há 20 estados em que o aborto é proibido ou está prestes a sê-lo, dez em que ainda é incerto se vai ou não ser permitido e 20 em que o aborto será legal.
Nas contas do The New York Times, nos 20 estados onde haverá restrições há 25,5 milhões de mulheres em idade fértil e onde será permitido há 26,5 milhões. Um levantamento do Instituto Guttmacher feito em dezembro, quando o Supremo ouvia os argumentos do representante do estado do Mississipi, , referia que pelo menos 26 estados iriam banir a possibilidade de abortar livremente ou que vão adotar leis mais restritivas, como a do estado do Texas. Foram precisamente 26 os estados que pediram ao Supremo para revogar a decisão Roe vs Casey.
The Supreme Court's decision to overturn Roe v. Wade and give individual states the choice of banning or allowing abortions will immediately affect 13 states that have trigger laws. https://t.co/ppj1MChGaQ pic.twitter.com/SeYIUewsM8
— The New York Times (@nytimes) June 24, 2022
Mas o caminho não se fará de um dia para o outro. E, esta sexta-feira, o professor Greer Donley, da Faculdade de Direito da Universidade Pittsburgh, especializado em saúde reprodutiva, dizia isso mesmo ao Político. Pelo menos 13 estados prepararam pacotes legislativos antiaborto à espera da decisão do Supremo, mas há prazos e este limbo legal pode levar “ao caos total” a curto prazo. “Vai ser um verdadeiro pesadelo”, disse Donley. Nas suas contas, entre os 30 dias que a decisão do Supremo deve levar para entrar em vigor, mais a necessidade de levar os pacotes legislativos ao procurador para certificar e a sua entrada em vigor, pode levar um total de dois meses.
Noutros estados poderá ser necessário um processo judicial para perceber se as proibições de aborto que já existiam há 50 anos, antes do caso Roe, podem entrar em vigor, o que também pode levar semanas, ou meses. Isto significa que neste período de indefinição, o aborto será legal — como o caso do estado do Ohio por exemplo.
Por outro lado, poderá haver estados que querem legalizar o aborto, mas cujas leis anteriores ao Roe fiquem em vigor durante algum tempo também. “Ninguém provavelmente ficará feliz com o que acontecer imediatamente”, disse, por seu turno, Gracie Skogman,do Wisconsin Right to Life.
O aborto permanecerá legal nos restantes 27 estados, embora as leis nesses estados também não sejam uniformes.
a map for anyone needing information on where to get safe abortions right now pic.twitter.com/9WxEsbKWwq
— bibi (@belovcrs) June 24, 2022
Manifestações nas ruas: as vozes contra e a favor
Enquanto vários grupos de manifestantes foram saindo para as ruas em forma de protesto contra a decisão do Supremo, vista como uma regressão nos direitos que as mulheres conseguiram conquistar nos EUA, várias vozes públicas foram manifestando posições a favor e contra a decisão conhecida. A esperança agora parece estar mesmo focada nas eleições intercalares.
O Presidente Joe Biden sublinhou que o Supremo limitou um direito constitucional do povo americano. “Não só o limitou como o fez desaparecer”, disse, concluindo que agora a saúde das mulheres está em risco.
Se em maio a presidente da Câmara dos Representantes dos EUA veio a público dizer que revogar o direito ao aborto nos EUA seria um “ato abominável” e a “maior restrição de direitos nos últimos 50 anos” e que o Supremo estaria a “rasgar” a Constituição, agora, no coração do debate da legislação sobre o acesso às armas, Nancy Pelosi não mudou o discurso. “Esta decisão cruel é ultrajante e de cortar o coração. Mas não se enganem: os direitos das mulheres e de todos os americanos vão estar em votação em novembro”, sublinhou, referindo-se às eleições intercalares.
Perante a possibilidade de um país dividido, onde metade dos estados vai permitir o aborto e outros vão penalizá-lo, o Presidente da Câmara de Nova Iorque já abriu as portas às mulheres que quiserem abortar no seu estado. “Para aquelas que procuram abortos em todo o país: saibam que são bem-vindas aqui”, disse. “Faremos todos os esforços para garantir que os nossos serviços estão disponíveis”.
Aliás, várias empresas estão já a disponibilizar-se para pagar as despesas de deslocação dos seus empregados caso a intenção seja abortar, procurando assim onde o possam fazer. Disney, Dick’s Sporting Goods, Condé Nast, Intuit e Warner Brothers são algumas delas.
No sentido contrário, Mike Pence, o ex-vice presidente de Donald J. Trump, e o provável candidato presidencial republicano em 2024, elogiou a decisão do Supremo: “Hoje, a vida venceu”. “Ao revogar a Roe v. Wade, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos deu ao povo americano um novo começo de vida, e eu elogio os juízes da maioria por terem coragem nas suas convicções”, disse Pence, que sempre se opôs ao aborto. “Ao devolver a questão do aborto aos estados e ao povo, este Supremo corrigiu um erro histórico e reafirmou o direito do povo americano de se governar no nível estadual de maneira consistente com seus valores e aspirações.”
Como tudo começou
É preciso recuar a março de 2018 para entender o que está a acontecer nos EUA. Foi por esta altura que o estado do Mississipi, à revelia da decisão de há 50 anos, aprovou uma lei a proibir o aborto a partir das 15 semanas. Nessa lei o estado clamava que o aborto é “uma prática bárbara, perigosa para a paciente materna e humilhante para a profissão médica” e não previa qualquer exceção para casos de violação ou de incesto. Assegurava, no entanto, que, em casos de emergência médica ou de “deficiência fetal grave”, o aborto podia ser praticado além das 15 semanas.
A única clínica onde é possível esta prática clínica no Mississipi, a Jackson Women’s Health Organization, avançou com uma contestação em tribunal para que a lei não fosse aplicada, por ser inconstitucional.
Em novembro desse ano, na decisão que assinou, o juiz Carlton W. Reeves (apontado para o Tribunal Federal, em Jackson, a capital do Mississipi, por Barack Obama) afirmava que a lei violava a 14º Aditamento da Constituição norte-americana, em que se consagra o direito à decisão sobre a vida privada dos cidadãos — um conceito que, 40 anos antes, para Blackmun, enquadrava também o direito ao aborto. Na decisão de 2018, Reeves desafiava assim o Supremo a pronunciar-se. “O estado optou por aprovar uma lei que sabia ser inconstitucional para endossar uma campanha de décadas, alimentada por grupos de interesse nacional, para pedir ao Supremo que revogasse o ‘Roe v. Wade’”. “Este tribunal segue a Constituição dos EUA e os comandos do Supremo e não os cálculos falsos da legislatura do Mississipi”, afirmava o juiz, deixando mesmo algumas palavras sobre as alterações recentes na composição do Supremo Tribunal.
Antes de chegar ao Supremo, o caso foi ainda apreciado por um tribunal de recurso em New Orleans. E logo aqui começaram as divisões: dois dos três juízes concordaram com a primeira instância, um terceiro votou contra: “Não há nada na Constituição que fale no direito ao aborto”, escreveu este juiz, apresentando um argumento seguido por aqueles que defendem a revogação da decisão “Roe v. Wade”.
O caso arrastou-se até dezembro de 2021, quando o representante do estado do Mississipi apresentou e os seus argumentos ao Supremo. O projeto dessa decisão foi divulgado em maio, a seis meses das eleições intercalares nos Estados Unidos. Uma fuga de informação só repetida quando tinha sido, aliás, a decisão “Roe v. Wade” e que está a ser investigada.
O que é o caso “Roe v. Wade”
Jane Roe foi o pseudónimo que Norma McCorvey usou para apresentar queixa num tribunal do Texas contra as leis antiaborto então em vigor. O processo contou com advogadas Linda Coffee e Sarah Weddington, que já se dedicavam a casos do mesmo género e que, em 1970, formalizaram uma queixa contra o então procurador distrital de Dallas, Henry Wade, por causa das leis anti-aborto no Texas.
Na alegação do caso em que pretendiam garantir o direito de McCorvey a realizar um aborto, as advogadas diziam que “Roe” tinha sido violada. A decisão de primeira instância deu logo razão a “Roe”, mas, na prática, a lei do estado do Texas não foi revogada. O caso acabou por chegar ao Supremo Tribunal de Justiça norte-americano em 1973 e fez história ao fixar jurisprudência sobre esta matéria, conferindo às mulheres a liberdade para decidir abortar até cerca das 23 semanas e proibindo os estados de legislar de forma contrária. Seria a primeira despenalização do aborto para os 50 estados do país.
Segundo o juiz Harry Blackmum, que assinou esta decisão final, a maior parte das leis antiaborto norte-americanas violavam o “direito constitucional à privacidade”, integrado no conceito de liberdade previsto no 14.º aditamento à Constituição norte-americana. Todas as leis estaduais e federais que contrariavam o aborto tiveram que ser revogadas, depois de uma decisão aprovada com sete votos a favor e dois contra. Esta acabaria por ser considerada a decisão mais controversa do Supremo, como os acontecimentos mais recentes mostram.
Esta tese de Harry Blackmum é contestada pela configuração atual do Supremo norte-americano, que lembra que a “Constituição não faz referência ao aborto, e tal direito não é implicitamente protegido por qualquer disposição constitucional”. O juiz Samuel Alito Jr., que redigiu o texto, considera mesmo que esta decisão esteve longe de trazer um consenso nacional sobre o aborto e que devem ser os estados a decidir como legislar. “A conclusão inevitável é a de que o direito ao aborto não está profundamente enraizado na história e nas tradições da nação. Pelo contrário, uma tradição ininterrupta de proibir o aborto sob pena de punição criminal persistiu desde os primeiros dias do direito comum até 1973″, escreveu, segundo o rascunho divulgado em maio pelo político.